As guerras civis em África deixaram vários rastos de destruição e incalculáveis danos humanos e institucionais, o que reflectiu, para sociedades em desenvolvimento e com processos políticos com inúmeros reveses, um cenário que exigia não só a elaboração de estratégias de desenvolvimento por parte dos governos africanos, mas também a avaliação das opções disponíveis e adequadas para esses países em termos de Assistência Oficial ao Desenvolvimento.
O início da década de 2000 foi sem dúvida um período bastante desafiador para o continente, mas que também coincidiu com a inauguração do Fórum de Cooperação ChinaÁfrica, o FOCAC.
Tendo sempre patente o seu passado colonial e a sua matriz socialista, características essas partilhadas com vários governos africanos, e a consciência de que o desenvolvimento das Nações com valores compartilhados é necessário e indispensável para o seu próprio desenvolvimento, a China trouxe uma nova filosofia de relação e cooperação, o que se traduziu em novas modalidades de Assistência Oficial ao Desenvolvimento, que no seu entender, nem sempre precisavam ser concessionais em termos financeiros, tal como as abordagens tradicionais.
O modelo da China de Assistência Oficial ao Desenvolvimento contemplou vários elementos como projectos completos, concessão de bens e materiais, cooperação técnica, cooperação para o desenvolvimento de recursos humanos, envio de pessoal médico, ajuda humanitária emergencial, programas voluntários em países estrangeiros e perdão da dívida.
Diante dos vários problemas com que se deparavam os Estados africanos, desde financeiros à falta de infra-estruturas críticas, o FOCAC e o pacote de Assistência Oficial ao Desenvolvimento da China representaram para aqueles Estados não só uma pluralidade de opções na busca de parcerias no sistema internacional, mas sobretudo uma alternativa natural, lógica e viável dados os empecilhos burocráticos do centro do sistema internacional.
Embora haja ainda hoje vozes críticas sobre a filosofia de relação e cooperação da China, o que se ignora ou sempre se ignorou, pelo menos para os críticos, são as circunstâncias próprias dos Estados africanos que não eram compatíveis com as exigências do modelo “standard” da OCDE, muitas delas eivadas de preconceitos, estigmas e um certo complexo paternalista.
Embora o estoque de Assistência ao Desenvolvimento e de Investimento Directo Estrangeiro dos europeus e dos Estados Unidos em África tivesse sido maior nas duas últimas décadas, as modalidades chinesas de Assistência ao Desenvolvimento e Investimentos Directo Estrangeiro da China mostram-se mais significativas e expressivas a nível de todo o continente, num contexto de marginalização dos Estados africanos pelo Ocidente.
É claramente perceptível o diferencial das modalidades chinesas de Investimento Directo Estrangeiro e de Assistência ao Desenvolvimento e o interesse de Pequim (muito favorável para a África) no desenvolvimento de infraestruturas críticas no continente, havendo uma impressão digital da China no esplendor das várias metrópoles africanas.
A construção de ferrovias, portos e demais infraestruturas através de empréstimos de bancos de investimentos chineses transformou as cidades africanas e permitiu dinamizar o seu crescimento económico e desenvolvimento social, tendo feito com que desaparecessem relativamente os vestígios físicos das guerras civis em muitos países de África.
A nível de projectos completos, um dos importantes itens do pacote de Assistência Oficial ao Desenvolvimento da China, destacase a primeira ferrovia transnacional completamente electrificada de África, que ligou a Etiópia ao mar índico através do Djibuti. Este projecto, construído por empresas chinesas, dinamizou significativamente o comércio e a economia do Djibuti e da Etiópia, especialmente para este último que é um país sem costa e que tem a ferrovia como porta de entrada, tendo grande parte das suas exportações e importações passando por ela.
No Quénia, a ferrovia de Bitola, também construída por empresas chinesas, ligou as duas maiores cidades (Mombaça e Nairóbi) fazendo delas grandes centros comerciais e logísticos.
Em 2022, na Nigéria, a empresa chinesa China Civil Engineering Construction Corporation concluia a primeira fase de uma infraestrutura ferroviáriaque pela primeira vez atravessou duas cidades nigerianas, a povoada Okokomaiko, em Lagos, e Marina, um projecto que também dinamizou bastante a mobilidade.
A China Road and Bridge Corporation construiu em Moçambique a maior ponte suspensa de África que ligou a cidade de Maputo à Catembe, incluindo ainda uma ligação rodoviária entre Catembe e Ponta de Ouro uma área que faz fronteira com a África do Sul.
Avaliando o potencial de criação de emprego desses projectos de infra -estrutura, assim como outros dentro de África construídos por empresas chinesas, as competências desenvolvidas por trabalhadores e empresas locais durante a implementação dos projectos podem ser sempre utilizadas em empregos posteriores e sucessivos, reflectindo assim não só o potencial de geração de emprego ao se construir uma infraestrutura, mas também a progressiva qualificação dos trabalhadores e empresas.
No projecto da ferrovia Adis Abeba-Djibuti, segundo um executivo da filial etíope da China Engineering Construction Corporation, mais de 2000 mil pessoas foram capacitadas e certificadas em várias áreas da construção de ferrovias, manutenção e gerenciamento de segurança.
O executivo Guo Chongfeng também havia referido que a empresa contratada para a administração da ferrovia Adis Abeba-Djibuti formou cerca de 100 pessoas locais na China, evidenciando uma miscelânea entre os projectos e a cooperação e assistência técnicas.
A nível de perdão de dívidas, um outro item do pacote de Assistência ao Desenvolvimento da China, segundo dados da Universidade de Estudos Internacionais Johns Hopkins, desde 2000 a China já cancelou pelo menos 3,4 mil milhões de dólares em dívida até 2019, uma medida que com certeza serviu como uma almofada de ar fresco para vários governos africanos que se depararam com problemas financeiros e económicos, situação agravada ainda mais com a recessão económica que se registou na última década.
O móbil de acção da China também se registou em vários casos de inadimplência de empréstimos, não tendo por isso exercido o seu direito de confiscar activos, e isso é amplamente notável nos vários acordos de empréstimos estudados por investigadores ao redor do mundo.
Um think thank indiano produziu em 2017 um meme sobre a suposta “armadilha da dívida chinesa” que foi depois amplamente reproduzido em vários artigos e até por políticos norte-americanos fomentando a ideia de que a China teria emprestado milhões aos africanos para posteriormente tirar vantagens diplomáticas e estratégicas.
Obviamente, os valores da China e a visão com que Pequim enxerga a África e o Sul Global em geral desmentem e anulam toda essa narrativa. Os sucessivos perdões de dívida falam por si só e Pequim recusa-se a ver as relações internacionais através de uma perspectiva meramente Hobbeseana, trazendo entretanto uma perspectiva mais construtivista com a ideia do “Caminho chinês para a Modernização: o Caminho a Seguir”, um conceito que se traduz na ideia de que todas as Nações têm o direito de se industrializar de acordo com a sua própria formação cultural, histórica e social, sem que seja forçado a seguir o modelo e as normas políticas, económicas, sociais e culturais ocidentais.
Se há duas décadas a África estava com um excesso absurdo de lacunas em infra – estruturas, sem acesso aos mercados globais de capitais devido à relutância e marginalização por parte de investidores privados e instituições financeiras de investimento ocidentais, hoje o quadro é relativamente diferente muito por conta da auxílio da China e dos seus bancos de investimentos que não obstante a todos os riscos associados, cooperaram de forma aprofundada com os Estados africanos na sua reconstrução e equilíbrio entre a necessidade de financiar a economia, cumprir com as obrigações orçamentais e manter sustentáveis os rácios do serviço da dívida.
Os ganhos do modelo da China de Assistência ao Desenvolvimento, além das infra-estruturas, dos recursos humanos, da ajuda sanitária, dos empréstimos e perdões de dívidas, devem ser também vistos a partir dos significados colectivos que a política externa de Pequim vem desenvolvendo para com a África em função da experiência colonial compartilhada, dos valores ideológicos, da não ingerência nos assuntos internos de cada Estado.
O FOCAC 2024 foi uma oportunidade para a África e os chefes de Estado e de governo participantes do fórum analisarem a orien tação internacional das suas políticas externas e a forma como vão lidar com os novos desafios e com que parceiros podem contar, num contexto em que vários países da OCDE voltaram a sua atenção para África, agora que suas potencialidades se tornam expressivas após um longo período de investimento e de dedicação por parte da China.
A China anunciou no FOCAC de Setembro deste ano que a Ajuda ao Desenvolvimento para os próximos três anos será caracterizada por um plano de acção de 10 pontos. Em termos globais, no âmbito do plano de acção 10 pontos, Pequim vai disponibilizar 36 mil milhões de yuans de apoio de capital para África e 210 mil milhões de yuans de empréstimos para os países africanos e as empresas chinesas vão investir cerca de 70 mil milhões de yuans em África.
Comparativamente a tudo o que se já alcançou nas sociedades africanas em termos de mudança económica, tecnológica e consequentemente social à luz da cooperação China-África, é preciso que os chefes de Estado e de governo repensem as suas prioridades e orientação internacional, seus valores e identidade e sempre com base a sua vontade soberana, optarem pela via que mais lhes permitir gozar do “direito de se industrializar” de acordo com a sua formação cultural, histórica e social.
Por: João Quitongo