“O africano dança” é o título de um vídeo polêmico que muito circulou pelas redes sociais há alguns meses, o qual critica seriamente a aparente falta de comprometimento do povo africano com coisas (mensagem subliminar do vídeo) “mais importantes” como a educação, desenvolvimento econômico, infraestrutual, industrial, humano e integração regional.
Embora a mensagem que o vídeo veícula seja digna de alguma consideração (de que a vida não se resume em dançar), ela chega a ser, a meu ver, traiçoeira e perigosa, a medida que também tenta fazer parecer que o africano tem um desinteresse confesso e inalienável pela ciência, pelo desenvolvimento, pelo progresso, pelo conhecimento, por um lado, e tenta equiparar essa proclividade africana para dançar a um vício, semelhante ao consumo de drogas e/ou alcoolismo, por outro.
A habilidade africana de dançar é divina, intrínseca a sua natureza e indissociável deste povo.
O africano foi raptado para os EUA e lá deu à luz o hip-hop na sua forma de “breakdance”, ao Samba, a Salsa e a Rumba na América do Sul. Isto para não mencionar outros, muitos outros.
Levem o africano a lua e ele dará à luz um estilo de dança fazendo recurso a gravidade daquele satélite. O que o autor do vídeo falha em perceber é que o africano não é subdesenvolvido porque dança, o africano dança para se expressar e para não ter de focar nas suas malambas, se concordarmos que a dança tem algo de libertador e liberador a seu respeito.
Nas lavras do Planalto Central, as mulheres Ovimbundu pisam o milho em movimentos coreografados ao som da canção que inspirou a atemporal música “Morainha” dos irmãos Almeida.
Neste pisar cadenciado e dançado, elas realizam o seu ofício ao passo que entoam em uníssono: “tingoo, tingoo, tingoo, kacine katingoka, okumolã ofule.
Em “O Homem Que Plantava Aves”, o autor Gociante Patissa fala de uma aldeia recôndita, distante do nosso tempo, onde os antepassados celebravam ao ritmo quente do batuque, agradecendo aos deuses pelo êxito nas caçadas e por regressarem incólumes para as suas casas.
A aldeia confundia-se com um verdadeiro festival de artes performativas, numa dança em casamento com a representação, ao compasso de «ukongo», com a presença imprescindível do «ocinganji», figura mística que possui, dentre outras, a capacidade de dialogar com o além, a qual também dança, como não podia ser diferente. Bem alerta o provérbio: “se quiseres dez anos de prosperidade, planta árvores. Mas, se quiseres cem anos, forma e educa pessoas.”
Ora, talvez somente não vejamos porque não olhamos nem procuramos o suficiente. A nossa Áfrca tem formado e educado pessoas.
Pessoas que causam impacto, fazem a diferença, contribuem para o desenvolvimento do continente e do mundo.
Não nos esqueçamos do belo exemplo que é a Dra. Adany Costa, doutorada em Práticas Internacionais de Conservação da Vida Selvagem pela Universidade de Oxford, engajada na expedição científica destinada a proteção da vida e espaços selvagens ao longo da Bacia do Okavango, expedição documentada pela National Geographic, o que a conferiu o prêmio Jovens Campeões da Terra, galardoada pelas Nações Unidas, tendolhe sido também atribuída a medalha da Ordem de Mérito Civil de 1º Grau pela Presidência da República de Angola, tornando-se pouco depois Ministra da Cultura, Turismo e Ambiente, à data a mais jovem da história do país.
Paulo da Conceição Carvalho foi o primeiro angolano a tornar-se membro da Coorte Colegial da Universidade de Oxford, um colégio de investigadores, e o único africano a ser convidado a participar num colóquio sobre o “Nacionalismo Cristão Ressurgente Racializado”, também realizado pela renomada Universidade britânica.
Marco Romero, engenheiro angolano, foi recentemente destacado para um programa de intercâmbio na NASA, Space X, Blue Origin e outras agências espaciais. Nós temos cérebros, pessoas competentes, capazes e comprometidas com o desenvolvimento nas mais distintas áreas do conhecimento.
Tudo que se precisa fazer é criar oportunidades e estimular nos mais jovens a vontade de fazer igual ou melhor, e fazê-lo, porém, dançando.
Sim, o africano dança. Dança tanto e tão bem que cidadãos de todo o mundo, inclusive aqueles que nas palavras do autor do vídeo acima referido fazem ciência, constroem coisas, lêem e escrevem livros pagam para aprender a dançar como ele, pois reconhecem tratar-se de uma habilidade ímpar e inefável. Acredito que estejamos no limiar de uma revolução cultural nunca antes vista.
O maior festival contemporâneo de celebração da cultura africana denominado AfroNation, teve lugar em solo Europeu (Portugal), com maior adesão de pessoas ocidentais que africanas.
O Semba e a Kizomba são dos estilos de dança que mais exportam o nome de Angola no mundo, juntamente com o Afrohouse e o Afrobeats nigeriano com maior expressão na camada jovem, todos contribuindo para o aumento do turismo cultural no continente.
Em ocasião da apresentação pública do seu livro “Um Deus Que Dança”, o Cardeal José Tolentino Mendonça cita Michel de Certeau, o qual disse que “o orante é uma coreografia de gestos”, ao que remata o Cardeal: “não rezamos apenas com palavras, mas com o que somos.”
O Africano é, sem sombra de dúvidas, um presente para o mundo, o povo escolhido como receptáculo de laivos do divino, de uma moção temperada, ritmo electrizante, cadência sublime e ginga transcendente, seus mecanismos de oração.
É-o à semelhança de um Deus que dança.
Por: EDUARDO PAPELO