A inegável superioridade de Homero, escreveu Carpeaux, deve-se muito às inúmeras tentativas fracassadas de imitação do poeta cego, na sua Ilíada e na Odisseia.
Facto que faz de Homero o fim último inatingível da poesia, como é Dante com a sua “terza rima”. Mas que dizer de Camões e os Lusíadas?
Seria o lusitano igualmente impossível de se imitar? Coloquemos a questão de outro modo: seriam Homero, Virgílio, Dante e Camões ainda modelos possível de serem imitados?
A resposta é claramente negativa, conforme nos comprova Cervantes, ao escrever o seu Dom Quixote no género que acabava de nascer, ainda que com muitas características particulares do épico.
Tanto é assim que, no mundo moderno, imitar Homero só foi possível no género típico da modernidade, o romance. E isso o fez James Joyce com muitos êxitos no romance Ulisses.
Outras tentativas de continuação do género surgiram e, com exceção do Fausto de Goethe, quase nenhuma sobreviveu e isso se deve a muitas razões.
A principal é que os épicos muito serviram como textos de consolidação dos estados exaltados e nos nossos tempos os estados e as nações encontram-se já bastante consolidadas na sua maioria. Um outro motivo de grande realce é a supremacia que alcançou a prosa desde o século XVIII no lugar da poesia.
Em Angola o único épico que conhecemos até então é a Lança Ardente, de Samuel Pequenino. Sobre o autor, algumas considerações: nascido em 1948, em Moçambique, é, à semelhança de Luandino, filho de Angola, o que a sua obra testifica. Adquiriu a nacionalidade angolana em 1980 e se instalou no Kuito.
Em 1969 licenciou-se em Filosofia, em Roma. Alguns anos mais tarde concluiu o mestrado em Psicologia Aplicada à Educação e em 1977 regressa a Roma onde se doutorou em Filosofia.
Por fim, em 1988, licenciouse em Sociologia. Homem de vasta erudição, foi de muita relevância no cenário intelectual do Bié e não só. Escreveu, dentre vários títulos, A comadre, A grande caminhada e Lança Ardente.
Publicado no início do novo século, Lança Ardente entra nesta categoria dos épicos esquecidos com o género. Em 888 oitavas, Pequenino narra a história dos reis e dos povos de Angola, as lutas pela independencia e os seus heróis, seguindo o mesmo modelo dos Lusíadas: invocação, proposição, dedicatória e narrativa.
Dez sílabas métricas para cada verso, com as seis primeiras rimas cruzadas e as duas últimas emparelhadas, invoca a Kianda em vez das ninfas do Tejo.
O autor promete, como escreve no primeiro verso da terceira estrofe, “abrir as cortinas do passado” – É a epopeia de Angola, desde a metade do século XV até finais do século XX.Não há na nossa literatura quem o tenha equiparado neste sentido.
O livro é de imenso valor estético, antropológico e histórico. Se aproxima dos Lusíadas pela forma externa, mas muito se afasta e difere pelo conteúdo.
A oralidade como instrumento de transmissão da história, característica própria dos povos bantu, assume outra forma em versos.
De igual modo não se falou sobre Ngola Kiluanje, Mandume ou Agostinho Neto, com a mesma carga emotiva que somente a poesia nos pode proporcionar. O seu estilo é, diria Mathew Arnold, simples, rápido e directo.
Falta-lhe a nobrez e se a tivesse estaria mais perto da Eneida. O autor que pretende abrir as cortinas do passado, cria também novas janelas para o futuro de Angola. Mais exaltados são livros como o romance autobiográfico A comadre.
Neste, é visível no personagem Arouca as aventuras e desgostos da vida de Samuel Pequenino. Passe-se, igualmente, a conhecer muito da sua biografia ao citar Luandino Vieira, Balzac, Castelo Branco e tantos outros.
As reuniões em seu quintal fazem-nos lembrar dos luxosos salões de Londres e de Paris. A alusão aos terroristas segundo a PIDE e às reuniões em que se discutia Marx e Engels são próprias da literatura da época, que ainda era instrumento de luta anticolonial.
Apesar de bem escrito, o romance é pobre de episódios e acontecimentos, recorrendo o autor a inúmeras repetições e, mais ainda, Pequenino peca ao fazer interrupções na narrativa para exarar lições de moral, o que na literatura nunca deve ser trabalho de quem escreve, mas de quem lê.
Voltemos a questão inicial: nos nossos dias, é lícito imitar os modelos antigos de poesia, tão antigos como se de seres de outro mundo se tratasse?
A esta pergunta só posso responder da seguinte maneira: quantos leitores hoje estariam dispostos a ler poemas épicos? E dentre os dispostos, quantos aceitariam em suas bibliotecas livros que não fossem já o cânone do género?
Eis a questão! É caso para dizer que Samuel Pequenino é dos maiores escritores da nossa literatura e, se Lança Ardente não fosse escrita quando a epopeia já se tinha esgotado, seria Pequenino para nós o que Camões é para Portugal.
Se Lança Ardente é em Angola e até mesmo no Kuito livro de pouca legibilidade não é culpa do autor ou do género em que escreve, mas dos leitores que já não podem ler narrativas em versos.
Não falhou quem escreveu como Camões. Falhamos todos nós, que não mais podemos ler no0 estilo de Camões.