1 . Nos passados dias 23 e 24 de Maio, os deputados à Assembleia Nacional aprovaram, na generalidade e por unanimidade, as duas propostas de lei sobre a institucionalização das autarquias locais, sendo uma da iniciativa legislativa do grupo parlamentar da UNITA e outra, da do Executivo.
Com esse acto quase inédito, pois foram raríssimas as vezes em que a maioria e a oposição parlamentares convergiram tão ampla e reciprocamente em sentido de voto, parece anunciar-se o fim do impasse em cuja origem esteve a ausência de consenso relativamente à anterior proposta de lei, submetida pelo Executivo em 2018, que, por não ter sido definitivamente aprovada naquela legislatura, viria a caducar.
E uma vez posto termo ao impasse, não tardará a cair por terra um dos pretextos utilizados para a não calendarização da implementação das autarquias locais até à data.
2. Agora, espera-se que, em sede do debate na especialidade, as duas propostas de lei sejam, com a mesma diligência, bom-senso e ampla convergência, harmonizadas, permitindo assim dar continuidade à conclusão da aprovação do chamado pacote legislativo autárquico.
Na verdade, depois da aprovação final global de uma possível proposta de lei única sobre a institucionalização das autarquias locais, pouco ou nada mais restará para que o referido pacote esteja enfim concluído, na medida em que não é expectável que as demais leis em falta, aliás também já aprovadas na generalidade, designadamente a Lei do Estatuto Remuneratório dos Titulares dos Órgãos e Serviços das Autarquias Locais e a Lei Orgânica da Guarda Municipal, venham a suscitar maiores divergências, suficientes para originar um novo impasse.
3. Mas, não obstante essa boa notícia, veiculada por todos os meios de comunicação social e saudada pela opinião publicada como um passo decisivo rumo à concretização da descentralização político-administrativa, não há, bem vistas as coisas, motivos bastantes para que o pessimismo da razão dê lugar ao optimismo da vontade.
Noutras palavras, apesar de o MPLA ter alegado, na voz de mais um dos seus deputados, que o seu voto favorável à proposta de lei do grupo parlamentar da UNITA se deveu tanto à identificação de pontos convergentes com a proposta de lei do Executivo quanto ao repto lançado pelo Presidente da República no sentido de se acelerar a aprovação da legislação autárquica, revela-se por demais improvável que o País venha a ter o poder local autárquico ainda na presente legislatura, isto é, que a eleição e a entrada em funcionamento dos órgãos representativos autárquicos venham a ter lugar antes das próximas Eleições Gerais, tal como almejado por boa parte da sociedade civil.
4. Essa improbabilidade tem, desde logo e sobretudo, a ver com a persistência da controversa questão do gradualismo, questão que, vale a pena lembrar, foi a principal causa do dissenso que impediu a aprovação da anterior proposta de lei.
Ao insistirem na tese segundo a qual a implementação faseada das autarquias locais, na perspectiva do gradualismo territorial, assegurará uma transição responsável da administração local do Estado para a administração local autárquica, de acordo com a sua proposta de lei, o Executivo e o MPLA simplesmente reiteram a sua posição inicial.
Da mesma maneira que, ao insistir na tese diversa de que só a implementação das autarquias locais em todos os municípios e em simultâneo garantirá o respeito pelo princípio da igualdade e o desenvolvimento equilibrado do território nacional, conforme consta da sua proposta de lei, a UNITA tão-somente reafirma a sua posição de partida.
5. Ora, com a aprovação das duas propostas de lei, assiste-se, antes de mais, ao reemergir de duas posições divergentes acerca da forma e do timing de implementação das autarquias locais. O gradualismo subsiste como uma linha vermelha, de parte a parte.
O que, diga-se de passagem, era fácil de prever, tendo em conta que a revogação do n.º 1 do artigo 242.º da Constituição, procedida no âmbito da revisão pontual sob proposta do Presidente da República em 2021, não alargou a discussão sobre o gradualismo, mas sim limito-a ao debate parlamentar, fazendo com que o ónus da protelação da implementação (faseada ou simultânea) das autarquias locais deixasse de ser apenas do Executivo para, desde então, ser partilhado com a Assembleia Nacional, mais ou menos à semelhança do que, por outros meios, José Eduardo dos Santos havia feito em 2011.
6. Logo, esperar que a maioria e a oposição parlamentares ultrapassem a divergência em torno do gradualismo nos moldes em que o tentaram na última legislatura é o mesmo que esperar resultados diferentes de quem insiste em fazer igual.
Ou seja, fica muito difícil perceber como, em sede do debate na especialidade, se chegará a uma plataforma de entendimento sem que essa questão fraturante seja antes equacionada com negociação política, e não com hermenêutica jurídicoconstitucional ou declarações de boas intenções de qualquer uma das partes.
De pouco adianta o Executivo e o MPLA, por um lado, e a UNITA, por outro, manifestarem-se deveras empenhados no reforço da democracia participativa ou na consolidação do Estado democrático de direito, como se ouviu das intervenções nos dias 24 e 25 de Maio.
O que importa e urge saber, neste momento, é em que medida as partes estão dispostas a fazer concessões para que a descentralização siga o seu curso, ou antes, para que a Assembleia Nacional saia do estado de letargia legislativa no que à legislação autárquica diz respeito.
7. Escusado será dizer que, com ou sem negociação, acrescidas são as responsabilidades da maioria, a quem, em homenagem a um dos mais sagrados princípios da democracia, se requer a construção de um consenso genuíno, baseado na consideração pela posição da minoria a propósito de uma matéria de tamanha relevância para a vida colectiva.
De outro modo, não restará outro caminho senão alargar verdadeiramente a discussão sobre o gradualismo, sendo o povo, em vez dos seus representantes, chamado a decidir pela implementação faseada ou simultânea das autarquias locais mediante a convocação de um referendo à luz do artigo 3.º da Constituição.
8. É facto que, recentemente, em reacção à pressão exercita pela UNITA, que o acusa de dar o dito pelo não dito em relação à marcação das primeiras eleições autárquicas, João Lourenço, nas vestes de Presidente do MPLA, admitiu a possibilidade de tais eleições terem lugar tão logo os deputados concluam a aprovação da legislação autárquica.
No entanto, e como veio a confirmar-se por ocasião da apresentação da proposta de lei do Executivo, essa possibilidade não pressupõe que as autarquias locais serão implementadas em todos os municípios ao mesmo tempo mal as condições legais estejam criadas, posto que, para o discurso oficial, subsistem enormes constrangimentos, nomeadamente carências em termos de capacidade institucional, de infra-estrutura e de recursos humanos em parte significativa da administração local, que devem ser mitigados em antecipação à autarcização dos municípios em causa.
Isto significa, na melhor das hipóteses, que, nos cálculos do Executivo e do MPLA, para que as autarquias locais transitem do texto constitucional para a realidade de todos os municípios, serão necessários, no mínimo, mais cinco anos, que é o tempo que falta para o prazo de dez anos que o Executivo fixou após a consulta pública da sua proposta de legislação autárquica no segundo semestre de 2018.
9. Daí que, de acordo com o discurso oficial, a desconcentração, consubstanciada na transferência de atribuições e competências da administração central para a administração local do Estado, em particular para as administrações municipais, deve continuar a ser privilegiada em detrimento da imediata descentralização.
A desconcentração tornou-se, por conseguinte, a antecâmara da descentralização, como se esses dois modelos distintos de governação passem a representar estágios de um mesmo e único processo evolutivo que conduziria as comunidades locais da menoridade à autonomia, dando assim razão a quem visse na posição do Executivo e do MPLA uma forma de paternalismo do Estado pós-colonial para com as comunidades locais, à semelhança daquele que, no passado, foi o paternalismo do Estado colonial para com as então designadas comunidades indígenas. 10.
Sucede, porém, que, ao longo de todos estes anos, a acção governativa não tem cumprido o que o discurso oficial tem prometido quanto à criação das condições materiais ditas indispensáveis à implementação das autarquias locais.
Sem recuar a antes de 2017 e para ficar num único exemplo, note-se que, de 2018 para cá, o Executivo apenas concluiu e inaugurou duas das seis infra-estruturas destinadas às instalações das autarquias locais que prometeu construir.
Só assim se explica o facto de o grupo parlamentar do MPLA julgar oportuno recuperar e materializar o “Plano de Tarefas Essenciais para a Preparação e Realização das Eleições Gerais e Autárquicas” de 2015, numa espécie de auto-crítica involuntária em que o partido dos camaradas parece tentar convencer ninguém mais do que a si mesmo de que é possível fazer em cinco anos aquilo que não foi feito em mais de duas décadas.
11. Eis talvez um dos motivos pelos quais a UNITA, sem negar os mencionados constrangimentos que se verificam na administração local, defenda que eles podem e devem ser debelados no quadro das autarquias locais, e não mais no quadro das administrações municipais pela via da desconcentração, de modo que o gradualismo territorial deixaria de ser uma opção em favor do gradualismo funcional.
Até que ponto esse argumento é proporcionalmente válido para os actuais 164 ou para os futuros 325 municípios, é algo que só a existência das autarquias locais poderá atestar.
De qualquer modo, há que admitir que a pressão levada a cabo pelo partido do galo negro com vista a deslegitimar a posição do adversário e, ao mesmo tempo, reafirmar a sua, tem, ainda que em parte, surtido o efeito desejado: quanto mais se retarda a instauração do poder local autárquico, mais cresce, na consciência cidadã, a percepção de que o MPLA é o seu principal responsável, dado que, apesar da retórica reformista, tem demonstrado sérias dificuldades, quer do ponto de vista ideológico quer do da acção governativa, em desfazer-se da herança centralista e, por força disso, em reconhecer a capacidade das populações para tomarem à sua responsabilidade a gestão dos interesses que lhes são próprios. 12.
Tudo indica que, a certa altura e não sem certo apelo populista, a UNITA transformou a reivindicação em prol das autarquias locais no carro-chefe da sua guerra de posição, uma estratégia que consiste na conquista do poder através da reprodução discursiva da vontade geral de mudança e da obtenção de consenso entre os mais diversos sectores da sociedade civil em relação às soluções para os problemas estruturais que a Nação enfrenta.
É uma luta político-partidária de desgaste, por isso lenta, mas que, a partir de uma leitura realista da correlação de forças, não perde de vista o objectivo final.
Nas palavras do próprio Adalberto Costa Júnior, pode-se compará-la ao trabalho de remoção de uma velha árvore de grande porte, já incapaz de dar frutos e gerar sombra: “começa-se cortando os ramos, depois o tronco e, no final, é ainda desejável retirar as raízes que se encontram dispersas debaixo da terra”.
13. De resto, a indesmentível e paulatina perda de hegemonia pelo MPLA, a despeito da manutenção do poder, é um claro indicador de que a UNITA pode vir a ser um partido hegemónico (isso se ainda não o é) antes mesmo da conquista do poder, graças fundamentalmente à desilusão causada por sucessivos incumprimentos de grandes promessas, algumas das quais anunciadas no memorável discurso de 26 de Setembro de 2017, como é o caso da implementação das autarquias locais.
Por: OSVALDO S. DA SILVA