Sagrada Esperança é uma obra poética munida de sensibilidade sem igual, da autoria de Agostinho de Neto, de pendor denuncialista, nacionalista, negritudinista, apelativo, e chamamento ao povo do musseque e não só para tomarem consciência da sua condição socio-cultural, a fim de lutarem pela liberdade, recorrendo ao pretérito para buscar a essência cultural africana, devido à opressão ocidental, evidenciada no desenvolvimento político e cultural existente no universo africano, que sempre foi negada pelo ocidente: Não te voltes demasiado para ti mesma / vem comigo África de calças de fantasia / desçamos à rua / e dancemos a dança fatigante dos homens… (2016, p. 68); Cheios de injustiças / caladas no imo das suas almas / e cantam / com gritos de pretesto… (2016, p. 51).
Assim, a obra em causa apresenta uma construção estética branca e simples, estruturada em composições de práticas estilísticas repleta de imagens e metáforas, sendo irregular em quase todos aspectos literários padronizados: a liberdade nos olhos / o som nos ouvidos / das mãos ávidas sobre a pele do tambor… (2016, p. 67).
O tom irônico e eufemista assumido pelo sujeito poético perfila por todos os poemas e aponta para a consciencialização, pois é por via dessa ironia e deste eufemismo, das colocações aparentemente tolas, mas carregadas de sapiência que o sujeito poético revela os efeitos da colonização, o racismo, e os sentidos são explorados a todo momento, cores, sons, cheiros, brilhos, e ecos cooperam para a formação e construção ou reconstrução da consciência social africana: As terras sentidas de África / nos ais chorosos do antigo e do novo escravo / no suor aviltante do batuque impuro / de outros mares / sentidas… (2016, p. 76).
Historicamente, a obra enquadra-se na época da civilização colonial, apesar de disso, importa salientar que a mesma é intemporal, não só devido o foco da sua abordagem conteudística, como também, pelo facto de estar enraizada tanto no pretérito, no presente como futuro das sociedades africanas.
Ao passo que no domínio da periodização da Literatura Angolana enquadra-se no quarto período, situado entre 1948 e 1960, porquanto se testífica a formação da literatura de Angola e ao mesmo tempo o nascimento de movimentos de reivindicações sociais e culturais, com base em Gonga (2018).
Percebe-se a tamanha pertinência da referida obra no mosaico literário africano, e em particular angolano, mais do que ter sido uma anestesia para aleviar a dor do povo escravizado, foi a luz que veio ressuscitar a esperança do povo para se libertar do regime colonial: Sou / eu minha Mãe / a esperança somos nós / os teus filhos /partidos para uma fé que alimenta a vida… (2016, p. 25).
Contudo, Sagrada Esperança é uma digna clássica da primeira colecção da Literatura Angolana. A poesia netiana na Sagrada Esperança centra-se completamente num olhar ao negro homem, consciente de sua cultura, conhecedor do seu pretérito e senhor da sua voz, dimensionando ainda mais a riqueza e singularidade do movimento negritudinista, apresentando um vasto oceano de problemas que afligem o homem angolano, bem como o africano em geral.
Além disso, Neto em todo instante manifesta a preocupação e o compromisso que tem com o seu povo, com a sua pátria e a necessidade desse mesmo povo em reconhecer suas raízes culturais e a sua história: Velho farrapo / negro / perdido no tempo /e dividido no tempo! / com o espírito bem escondido / pobre negro!… (2016, p. 41).
Atinente as temáticas trazidas na obra, pela abrangência, destacase as seguintes, a forte identificação com o povo negro espalhado pelo mundo, mas, acima de tudo, pelo carácter universal, presente em grande parte da sua obra poética em causa, o sofrimento causado pela colonização, o preconceito racial é recorrente, a liberdade, a alienação, as saudades, esperança, entre outros: A quitandeira. / muito sol / e a quitandeira à sombra / da mulemba. / É forçado a obedecer / a Deus e aos homens / perdeu a pátria / e a noção de ser… (2016, p. 38); à bela pátria angolana / nossa terra, nossa mãe / havemos de voltar… (2016, p. 115); Amanhã / entoaremos hinos à liberdade… (2016, p. 25); Saudades- dizes na carta de ontem / quando nos veremos / breve ou tarde? Diz-me amor! (2016, p. 99).
Em função disso, é profundamente marcada pela conscientização, consciência esta alcançada através da redescoberta dos valores do homem africano, da força e da resistência que o povo imprimiu desde a primeira investida colonial, a rejeição da assimilação e submissão cultural, são factores que marcam o desejo que Neto buscou insistentemente que é a igualdade e o respeito para seu povo: As minhas mãos colocaram pedras / nos alicerces do mundo / mereço o meu pedaço de pão… (2016, p. 52).
Além deste incontestável valor, a poesia netiana transcende a cor da pele, a raça e a região, comunica-se com as múltiplas vozes dos que, assim como ele, sofreram a dor cálida da opressão ocidental, ou seja, o homem oprimido da Sagrada Esperança deixa de ser propriamente o homem angolano, torna-se o homem universal.
Entretanto, a poesia netiana torna-se um património para a Humanidade: O choro durante séculos / e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas / e das hemorragias dos ritmos das feridas de África… (2016, p. 106); Vamos com toda a Humanidade / conquistar o nosso mundo e a nossa paz… (2016, p. 69); E entre a angústia e a alegria / um trilho imenso do Níger ao Cabo… (2016, p. 63).
Por: FELELÉ D’ PAPEL