E é verdade que colocando de parte algumas universidades e institutos da/na capital, que têm a Musicologia como uma área de estudo não muito séria, mas que é de louvar pela iniciativa, o que temos noutras províncias, como é o caso da do Huambo, são fragmentos científicos encontrados nos cursos médios e superiores das escolas missionárias católicas [e noutras fora dela], onde a mesma ocupa o espaço de ‘disciplina ou cadeira auxiliar’ como se fosse um perpétuo caxico em pés perante os homens [os patrões] que se fingem estar de joelhos perante Deus.
O que se estuda não é Musicologia, mas sim Música. Portanto, estuda-se o objecto fora da sua ciência, o que, numa tradução acérrima, configura um divórcio entre a raiz e o caule da planta. Mas, então, o que é a música? Para responder esta interrogação vamos nos ater ao que nos diz o musicólogo inglês Beard, quando numa abordagem dissímil, escreve: “se a Musicologia é o estudo académico da música, esta é o objecto da Musicologia.
Ou melhor, enquanto a música é a arte de se comunicar com a combinação de som e tempo, a Musicologia abrange uma ampla gama de tópicos, desde a análise de estruturas musicais e estilos até o estudo do contexto cultural e histórico da música”. Assim, é-nos possível compreender a dimensão genérica desta disciplina para o estudo da música, não o inverso.
É uma área de estudo que deve ser refletida e que não a deixemos somente nas mãos dos aspirantes a críticos literários, pois estes dominam e amam mais o seu ofício, a ‘obra literária’.
Da mesma maneira, é desgosto quando se nota, numa sociedade que se acha intelectual, verificar escassez de registos escritos de grandes, vendáveis e verdadeiros compositores locais e que teriam constituído a ‘Old School Music’ não só do ponto de vista da expressividade musical, como também, da literária.
E, claro, um desses compositores seria Viñi Viñi. Numa edição do Jornal de Angola, reportada aquando do passamento físico do autor e que nos parece a única fonte escrita sobre a sua discografia e biografia, lemos, há tempo, que “Viñi Viñi [General Viñi Viñi] tinha sido criptónimo artístico de António Venâncio.
Nascido na província do Humbo, conhecido pela arte do ‘bem cantar’ e tido como o cantor do ‘povo’. Habituado a acasalar a harmonia melódica com a letra, sempre retratou o quotidiano da maioria dos angolanos.
Ademais, notabilizou-se no mundo do canto e da composição musical na década de 80, com participação em diversos concursos, entre os quais, o da Melhor Canção Política no tempo do Monopartidarismo”.
“A morte de um Herói” dedicado ao guerrilheiro Apolinário, “Trititi” e “Cakuma” são, sem sombra de dúvida, até aos dias actuais, temas vivos do acervo musical do finado artista.
Ti Chiny, cantor e compositor da província do Huambo, seu homólogo e companheiro de luta e palco, reforça dizendo que “o músico contou com variadíssimas faixas musicais e três CD’s publicados e, tristemente, Venâncio morre aos 48 anos de idade, na cidade de Havana, capital de Cuba”.
Dá para ver que, de tudo exposto até agora, o mais temos feito para honrar o seu esforço artístico foram apenas biografias. Não é possível que com a dimensão que a a letra ‘Cakuma’ levanta ninguém a tenha visto de modo diferente.
Mas, digo-vos de passagem que, por exemplo, para uma Micro Análise da construção poético-musical, ‘Cakuma’ apresenta-nos temas universais e transversais que o tornam clássico na abordagem e no tempo, desde o paralelismo dos factos até ao valor semântico que conota.
A morte, a fome, a guerra, o sofrimento e a saudade configuram um dos muitos sonantes temas retratados pelo autor. Por outra, a Língua, a linguagem e o sotaque com o qual o autor retrata os infortúnios da sua gente demarca uma autoctonicidade que espelha, por meio da glotonatividade, a identidade e raiz da cultura Ovimbundu.
Embora houvesse rastos deixados pelo colonizador sob ponto de vista linguístico, Viñi Viñi apresentanos, nesta canção, um hibridismo proporcional e passivo, na medida em que faz um casamento entre a sua língua nativa e a do colonizador [a portuguesa], introduzindo nos seus dizeres, lexemas da mesma língua. Nisso, basta que nos deparemos com os seguintes versos:
Oguerra inena usuke, onjala kwenda olofa / Asuku atate, atokepi, oguerra ehi, ohali ehi […] / AMÃE, Cakuma! […] / Omolã ohepo lyakata, etimba osima lyokulumba / Papai utwe pu pu pu, okusoka owaki kahupwi / Mamãe oyangayangako okusanga eci cilia omalã vaye / Cisupako, kwenda otana, ati ‘meninos de rua’.
Entretanto, assim como outras e pouquíssimas composições músico-poéticas, ‘Cakuma’ mais do que um grito de socorro à divindade e culto à pátria, é um testemunho vivo à liberdade do povo angolano, das amarraras do portugalismo e, sobretudo, do egoísmo político por parte dos movimentos de libertação aquando do dilema registado em quem, depois do português, poderia assumir o volante do comboio do país [na altura]. Esta divergência partidário-ideológica culminou com a ‘guerra intestina’.
Viñi Viñi, também partícipe dessas atrocidades, serve-se da referida canção [numa altura do Neonacionalismo angolano] para protestar com pureza a angústia que a guerra, o sofrimento, a fome nos trouxe, traz e no pode trazer, como se faz interrogar no seguinte excerto: Asuku atate, atokepi / Oguerra ehi, ohali ehi?. Aí, para terminar e aproveitando a deixa de Viñi Viñi, o ‘até quando?’ deve ser o ponto de partida para resolução dos diversos problemas como o de uma alérgica “Cientificidade Musico-Literária”.
Por: ALIENADO DE PAPEL