O secretário-geral da ONU considerou ontem que a invasão russa da Ucrânia ou os conflitos em Gaza e no Sudão, onde o Direito internacional é ignorado, mostram que o mundo está a sofrer uma “epidemia de impunidade”
“O mundo assiste impassível à morte de civis, na sua maioria mulheres e crianças, que são mutilados, bombardeados, expulsos das suas casas e a quem é negado o acesso à ajuda humanitária”, lamentou António Guterres, discursando no Fórum Económico Mundial, em Davos, Suíça, onde líderes políticos e económicos de todo o mundo se reúnem no início de cada ano.
Esta impunidade, afirmou, é uma consequência da atual fragmentação da comunidade internacional, face à qual são necessárias “instituições e quadros multilaterais e mecanismos eficazes de governação global”, defendeu.
Guterres reconheceu, no entanto, que o sistema multilateral nascido após a Segunda Guerra Mundial, do qual a Organização das Nações Unidas é um dos principais expoentes, necessita de reformas profundas. “Não podemos construir um futuro para os nossos netos com um aparelho criado pelos nossos avós”, sustentou.
Neste sentido, o secretáriogeral destacou que em setembro as Nações Unidas vão organizar a chamada ‘Cimeira do Futuro’, centrada na procura de soluções para os grandes desafios que o mundo enfrenta actualmente, entre os quais apontou as alterações climáticas e os desafios da inteligência artificial.
“A cimeira irá considerar reformas essenciais à arquitetura financeira global [também nascida após a Segunda Guerra Mundial com o sistema de Bretton Woods] para que responda aos desafios de hoje e represente o mundo de hoje, incluindo muitos países do Sul Global que ainda eram colónias quando esse sistema foi criado”, disse.
Guterres apelou também para reformas no Conselho de Segurança da ONU, outro pilar fundamental do atual sistema multilateral, “para prevenir e resolver conflitos, reequilibrar as relações geopolíticas e dar aos países em desenvolvimento uma voz proporcional na cena mundial”.
Sobre o conflito em Gaza, insistiu na necessidade de um cessarfogo imediato e na implementação de um processo baseado numa solução de dois Estados, “a única forma de reduzir o sofrimento e evitar uma extensão do conflito que incendiaria toda a região”.
O antigo primeiro-ministro português advertiu para os riscos colocados pelo atual desenvolvimento da inteligência artificial (IA), que está nas mãos de empresas tecnológicas “que procuram lucros com um desprezo imprudente pelos direitos humanos”.
Estas empresas também não têm em conta a privacidade individual ou o impacto social destes desenvolvimentos, afirmou Guterres, que disse aos líderes que “cada nova melhoria na IA generativa aumenta o risco de graves consequências não intencionais”.
Guterres salientou mesmo que o desenvolvimento ilimitado da inteligência artificial constitui uma das “ameaças existenciais” do mundo atual, a par do aquecimento global, depois de o Fundo Monetário Internacional (FMI) ter alertado, num relatório recente, que esta tecnologia vai aumentar a desigualdade.
O chefe da ONU sublinhou, em contrapartida, que a inteligência artificial também tem potencial para ajudar no desenvolvimento sustentável, ou no desenvolvimento de sistemas de governação adaptados ao mundo de hoje e que possam tecer redes multilaterais. “Precisamos urgentemente que os governos trabalhem em conjunto com as empresas tecnológicas para criar redes de gestão de risco para o desenvolvimento contínuo da IA, redes que controlem e monitorizem os danos futuros”, afirmou.
Sobre as alterações climáticas, Guterres insistiu que a transição para as energias renováveis deve avançar e afirmou que “o abandono dos combustíveis fósseis é essencial e inevitável”.
Guterres criticou a indústria dos combustíveis fósseis que, comentou, “acaba de lançar mais uma campanha multimilionária para travar o progresso e manter o petróleo e o gás a fluir indefinidamente”.
O secretário-geral alertou que, ao ritmo atual de emissões, o planeta está a caminhar para um aumento de três graus na temperatura média global em relação aos níveis pré-industriais, muito mais do que o limite de perigo (1,5 graus) considerado pelo Acordo de Paris.