Pessoas não devotas a Deus estão sujeitas a uma “discriminação severa” em 85 países, segundo um novo relatório apresentado no Parlamento Europeu.
No Paquistão, de acordo com a BBC, em Abril passado, um universitário acusado de blasfémia contra o Islão teria sido espancado até à morte, segundo relatos, por uma multidão de colegas no campus. Algumas semanas antes, nas Maldivas, um blogueiro conhecido por apoiar o secularismo e fazer anedotas com a religião foi encontrado morto, com sinais de apunhalamento, no seu apartamento.
E no Sudão, o activista pelos direitos humanos Mohamed al- Dosogy foi preso depois de solicitar oficialmente que, na sua carteira de identidade, o registo da sua religião constasse “ateu”. Estes são apenas três exemplos daquilo que a União Internacional Humanista e Ética (IHEU, na sigla em inglês) considera uma crescente tendência global de discriminação, pressão e ataques contra ateus e cépticos quanto à religião em todo o mundo. No seu relatório “Freedom of Thought” (“Liberdade de Pensamento”) de 2017, a organização registou casos de “discriminação grave ou severa” contra pessoas não religiosas em 85 países pelo mundo.
E em sete destes lugares – Índia, Malásia, Maldivas, Mauritânia, Paquistão, Sudão e Arábia Saudita – os não religiosos foram “activamente perseguidos”, segundo a organização. A IHEU – um guarda-chuva para mais de 120 grupos humanistas, ateus e seculares de mais de 40 países – apresentou as suas constatações ao Parlamento Europeu. “[Esta] tendência preocupante vai contra um direito humano básico, que simplesmente nãoestá a ser garantido pelos governos”,
afirmou à BBC o director-geral da IHEU, Gary McLelland. O direito à liberdade de pensamento, religião ou crença está protegido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 – que inclui a liberdade de mudar de religião e expressar a fé, ou a falta dela. “Muitos países fecham os olhos para esta norma internacional”, acrescentou McLelland.
Violações ‘graves’
Dos 85 países listados como perigosos para aqueles que não se identificam com as religiões, 30 estão na pior situação no ranking, com “violações graves” relatadas nos últimos 12 meses. Os incidentes variam de execuções extrajudiciais à pressão apoiada pelo Governo, incluindo também o desaparecimento de supostos blasfemos. Em 12 desses países, a apostasia – termo que denomina a troca ou o abandono de religião – é punível com a morte, afirma o relatório. No nível seguinte, há 55 países onde a discriminação é considerada “severa”.
Isto pode ocorrer com o controlo religioso por meio de leis e tribunais, doutrinação fundamentalista em escolas públicas ou da prisão por críticas a certas crenças – embora vários países, como a Alemanha ou a Nova Zelândia, pertençam a esta categoria por manterem activas leis arcaicas para a blasfêmia e delitos afins, ainda que raramente as apliquem. “Muitos dos países com as manifestações mais graves de discriminação têm maioria muçulmana (ou regiões de maioria islâmicas dentro de nações multirreligiosas, como o Norte da Nigéria)”, diz McLelland. “A discriminação tem maior probabilidade de acontecer onde as regras têm motivação religiosa e a liberdade de expressão é muito restrita. Isto é um reflexo da situação, e não um julgamento por parte do relatório”.
Um problema ocidental também
No entanto, casos de discriminação contra pessoas não religiosas também foram registados em países europeus e nos Estados Unidos. Este é o caso em lugares onde o nacionalismo conservador e o populismo estão em ascensão. “Nos Estados Unidos, a discriminação e a aversão às pessoas não religiosas tornaram-se comuns”, diz Lois Lee, pesquisador em estudos religiosos da Universidade de Kent. “Em pesquisas recentes, os ateus aparecem entre os grupos que geram mais desconfiança”. Em áreas com forte presença religiosa e caráter social conservador no Sudeste dos Estados Unidos – o chamado “Cinturão da Bíblia” – a hostilidade contra indivíduos não religiosos aumentou, de acordo com relatos locais.
Em um exemplo recente, uma escola no Kentucky foi investigada após queixas de que alguns professores perseguiam estudantes não-cristãos. Lee diz que o que acontece pode ser explicado pelo facto de que um número crescente de pessoas agora define a sua identidade por meio das suas crenças religiosas – e isso inclui o ateísmo. “A política de identidades mudou parcialmente de nações e etnias para a religião”, disse à BBC. “Esta é agora uma questão mais sensível e, portanto, um alvo mais frequente para a discriminação”.
Ateísmo em expansão
É claro que a perseguição a ateus ao redor do mundo não é um fenómeno novo. Em 2014, o blogueiro Mohamed Cheikh Ould M’khaitir recebou uma sentença de morte na Mauritânia por supostamente cometer apostasia. A sua sentença foi recentemente reduzida para dois anos de prisão. Na Arábia Saudita, outro blogueiro, Raif Badawi, está preso desde 2012 por “insultar o Islão por meio de canais eletrónicos”, apesar de existir uma mobilização internacional para a sua libertação. Um estudante de direito do Bangladesh que expressou o seu ponto de vista secular na Internet morreu após um ataque perpetrado por extremistas religiosos em 2013.
A lista continua No entanto, para muitos analistas, a razão para o aumento no registo destes casos é que, embora a religiosidade esteja aumentando no mundo, também é crescente o número de pessoas que não se identificam com crença alguma. O centro de pesquisas Pew Research Center estima que o número absoluto de pessoas sem filiação religiosa (ateus, agnósticos e aqueles que não se identificam com nenhuma religião em particular) aumentará em todo o mundo para 1,2 biliões em 2060, ante 1,17 biliões hoje – embora o crescimento previsto não seja tão rápido como o de fiéis de algumas religiões. “Os não religiosos são hoje a terceira maior população por categoria de crença no mundo”, diz Lee.
“E nem sequer temos um vocabulário específico para nomeá-los, apenas uma identidade negativa”. “Em alguns países, os governos frequentemente vêem os ateístas como pequenos grupos, mas é precisamente por causa das ameaças que eles podem sofrer que eles não se revelam como ateus. Então, há também um problema de invisibilidade”, acrescenta McLelland. Críticos ao relatório argumentam que a metodologia pode deixar a desejar ao tentar retratar uma realidade precisa. Por exemplo, um país secular com uma divisão clara entre Igreja e Estado, e com leis que proíbem explicitamente a discriminação baseada na religião, pode ter um desempenho mau por causa de apenas uma subcategoria (se o Estado patrocina escolas religiosas ou dá isenções fiscais às igrejas). “As realidades no mundo e o grau de infracção variam enormemente, é difícil fazer uma comparação”, declarou Lee.
Em todo o caso, os não religiosos tendem a não estar sozinhos nos países onde as violações graves são gritantes – os crimes contra ateus não são “eventos desconectados, mas parte de um padrão”. “Como podemos ver no relatório deste ano, os direitos humanos tendem a ficar em pé ou a cair juntos”, escreveu o presidente da IHEU, Andrew Corpson. “Quando os não religiosos são perseguidos, geralmente isto é um indicativo de que as minorias religiosas (ou outras minorias, como as de gênero) também são. Não se trata de uma coincidência”.