A Procuradoria-Geral da República (PGR) intentou, recentemente, uma acção judicial contra a Assembleia Nacional (AN) por considerar que esta violou a Constituição ao atribuir “super-poderes” ao Comandante-Geral da Polícia Nacional
O processo, registado com o número 855- C/2020 no Tribunal Constitucional, resulta do facto de os parlamentares, por via da Lei de Bases sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional (LBOFPN), terem atribuído ao comissário-geral o estatuto de “mais alta autoridade na hierarquia da corporação” e “poderes para responder directamente ao Presidente da República”.
Isto, na qualidade deste ser o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas, sem passar pelo titular do Ministério do Interior, órgão do Executivo de que a Polícia Nacional (PN) é dependente. Para a PGR, deste modo, por acto legislativo de natureza infraconstitucional, o titular de uma instituição do Estado foi colocado a responder directamente ao Presidente da República, como se de entidade com responsabilidades política e institucional se tratasse.
O que contraria, em seu entender, o estabelecido no artigo 139.º e o n.º 3 do artigo 201.º da Constituição da República de Angola, que determinam quais as entidades respondem política e institucionalmente perante o Chefe de Estado. “Ao determinar que o Comandante-Geral da Polícia Nacional responde perante o Presidente da República e Comandante-em- Chefe, consubstancia uma forma de promoção de paridade entre ele e o Ministro do Interior”, diz a PGR, num documento enviado ao Tribunal Constitucional.
Para demonstrar a gravidade do assunto, a Procuradoria salienta que a PN é um órgão executivo directo do Ministério do Interior, pelo que cabe a este departamento ministerial, responsável pela ordem interna e segurança pública, auxiliar o PR na condução e direcção desta corporação. Razão pela qual, considera que este modelo, que classifica de atípico, de responsabilidade directa do Comandante-Geral da PN ao Presidente da República, uma fonte de um conflito de inconstitucionalidade que carece de ser sanado.
O acontece com o modelo de dependência directa da Polícia Nacional ao Presidente da República. Para sustentar o seu ponto de vista, a PGR recorreu ao n.º 2 do artigo 105.º da CRA que determina que “a formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são definidos na Constituição”. Pelo que, qualquer competência que não esteja nela definida é inconstitucional.
No entender da PGR, ao aprovar tais disposições legais, a Assembleia Nacional, enquanto órgão de soberania, atribuiu a outro órgão de soberania, competências legais não previstas na Constituição. “As normais constitucionais não prevêem a competência do Presidente da República, enquanto Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas, dirigir superiormente a Polícia Nacional”, diz. A PGR entende ainda que se está a estabelecer uma equiparação entre a Polícia Nacional e as FAA. “É caso para concluir que a referi- da norma viola o princípio constitucional da autoridade suprema do Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas”.
Os argumentos de razão da Assembleia
Em cumprimento da norma processual, a Assembleia Nacional foi notificada pelo Tribunal Constitucional a se pronunciar a respeito e assim o fez, esclarecendo que os “super-poderes” atribuídos ao Comandante-Geral da Polícia Nacional decorrem, unicamente, da interpretação lógico-sistemática de normas estabelecidas na própria Constituição. No seu ponto de vista, para o Presidente da República exercer as suas competências legais tem que se posicionar no topo da hierarquia da PN. “A Constituição não obriga nem faz menção a que o Presidente da República exerça as suas competências por intermédio de um auxiliar, como seria o ministro de Estado ou um ministro”, diz num documento a que OPAÍS teve acesso.
A Assembleia salienta ainda que a Polícia Nacional, enquanto instituição republicana, tem existência anterior a qualquer ministério, ou seja, existe por força do poder constituinte, ao passo que os ministros ou ministérios existem por decisão do poder constituído. Por entender existir uma má interpretação da PGR, explicou que a Polícia Nacional integra a Administração directa do Estado e, por conseguinte, é parte integrante da Administração Pública.
“Ainda que a doutrina assim não nos ensinasse, o posicionamento do artigo 210.º da Constituição, sob a epígrafe (Polícia Nacional), do Título V «Administração Pública», não nos deixaria dúvidas”, diz. Para dissipar todas as dúvidas, a Assembleia recorda que ao abrigo da Lei Mãe, o Presidente da República tem como competência dirigir os serviços e a actividade da administração directa do Estado, civil e militar, superintender a administração indirecta e exercer a tutela sobre a administração autónoma.
“Não entende, esta Assembleia Nacional, que o artigo 6.º da LBO- FPN viola o princípio da atribuição constitucional de competências aos órgãos de soberania”, frisou. Acrescentou de seguida que “na verdade, a Assembleia não atribuiu nova competência ao Presidente da República, apenas densificou as competências que a Constituição lhe confere”. Esclareceu ainda que tendo o poder de legislar sobre a organização e o funcionamento da PN, jamais a colocaria a subordinar-se a um ente sem consagração constitucional, cuja existência depende do poder discricionário do Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo (TPE).
Isso por, enfatizou, os ministros, enquanto auxiliares do TPE, não têm poderes próprios, mas sim poderes delegados. “Os poderes dos ministros são aqueles que o Presidente da República, discricionariamente, entende delegar”, justificou. Por outro lado, a Assembleia esclareceu que a sujeição directa do Comandante-Geral da PN ao Presidente da República não consubstancia nem visa, na sua essência, uma forma de promoção de paridade entre este e o ministro do Interior.
Isso tendo em conta que os ministros são auxiliares do TPE, ao passo que o Comandante-Geral e os segundos Comandantes são nomeados pelo PR, nas vestes de Comandante- em-Chefe das FAA, para o exercício de funções que lidam com a segurança pública e nacional. “É entendimento da Assembleia Nacional que, ainda que a LBO- DF nada dissesse, da interpretação das normas da Constituição, sobre competências do Presidente da República, concluir-se-ia que a Polícia Nacional depende sempre deste, a quem deve obediência, sem necessidade de nenhum intermediário”, esclareceu. Para finalizar, a Assembleia sublinhou que, nos termos dos seus poderes constitucionais, o Presidente da República pode sempre delegar, no todo ou em parte, os poderes de direcção sobre a Polícia Nacional.
Tribunal Constitucional “chumba” PGR
Os juízes conselheiros do Tribunal Constitucional (TC) chumbaram a acção de inconstitucionalidade movida pela PGR, por entenderem que os seus argumentos não colhem, embora reconheçam que o Procurador-Geral da República tem legitimidade para requerer a apreciação abstracta sucessiva de constitucionalidade de qualquer norma em vigor no ordenamento jurídico interno.
De acordo com o acórdão nº 796/2023, a que OPAÍS teve acesso, esta não é a primeira vez que o TC procede à fiscalização sucessiva abstracta de normas desta lei, a pedido da própria PGR. Sendo que na anterior, foi bem-sucedida por ter visto declarada a inconstitucionalidade, a norma da referida lei que tratava da matéria sobre as imunidades dos oficiais comissários da Polícia Nacional.
O juiz-relator, Gilberto de Faria Magalhães, afirma ser compreensão do tribunal que a norma que despoletou o presente pro- cesso não patenteia a alegada violação ao princípio da reserva da Constituição, sobre a tipicidade das competências. “O conteúdo material da norma do artigo 6.º da LBOFPN não representa qualquer invasão à esfera de competências dos órgãos de soberania Presidente da República”, afirma.
O juiz esclarece que isso ocorre na medida em que não agride o núcleo essencial da dimensão identitária de uma função do Estado, das funções que constitucionalmente lhe são atribuídas, enquanto titular único do Poder Executivo, qualidade em que está investido mesmo agindo nas vestes de Coman- dante-em-Chefe das FAA.
Quanto ao poder de o Comandante-Geral da PN responder directamente ao PR, sem a intermediação do ministro do Interior, o tribunal entende que não há nada de anormal nisso, tendo em conta a relação que existe entre ambos em matéria de funcionamento bem como a de hierarquia directa. “É entendimento deste Tribunal Constitucional que, o legislador ordinário [a Assembleia Nacional], ao legislar nos ter- mos previstos na norma colo- cada em crise, não incorreu em inconstitucionalidade orgânica”, concluiu.