Essa Quarta-feira, 1 de Março, altura em que os tribunais reabriram mais um ano de trabalho, um grupo de juízes manifestou-se, silenciosamente, por causa das condições precárias de trabalho e também por um novo estatuto remuneratório para os magistrados judiciais e do Ministério Público. À cabeça estava Ismael da Silva, o presidente da Associação dos Juízes de Angola, um grupo que nos últimos dias tem estado na berlinda por conta das suspeitas que pendem sobre o presidente do Tribunal Supremo, assim como a saída de cena da juíza presidente do Tribunal de Contas. Ismael Silva diz que a justiça feita no país é a possível. Diz também que as condições existentes para os juízes são as piores possíveis e defende que se encontrem mecanismos melhores para se chegar à liderança dos tribunais superiores. Mais pormenores na entrevista que se segue
Que justiça temos hoje no país?
A justiça possível, porque é a justiça que é feita à base de sacrifícios dos operadores de justiça. Aqui nos referimos aos magistrados judiciais e aos do Ministério Público, aos advogados e aos oficiais de justiça, que muitas vezes têm de tirar do próprio bolso para executarem as suas tarefas. Não parece que esse seja o quadro sonhado para a justiça. Então, por isso dizemos que é a justiça possível.
O que é uma justiça possível?
Uma justiça possível é aquela que é empurrada a caminhar porque não tem condições de andar dentro do seu processo normal. As engrenagens, se não existirem pessoas como as operadoras a que nos referimos, para mexer de forma extra em troco da própria máquina, não anda. Se esses operadores não consentirem o sacrifício a que nos referimos, a máquina pára porque o indivíduo precisa fazer a impressão da sentença na casa do chinês. Não tem condições de o fazer no Tribunal, porque falta material gastável e, também, porque tem que fazer a sentença à mão, porque não tem computador. Temos casos destes em vários tribunais.
Há o mesmo quadro em todo o país?
Fizemos uma visita a três províncias em Novembro do ano passado. Refiro-me, particularmente, às províncias do Uíge, Malanje e parte de Luanda. Foi muito triste ver a situação em que funcionam os tribunais nestas três províncias.
Como é que funcionam?
Muito mal. No Uíge encontramos um tribunal que funciona num edifício que não foi concebido para tribunal. Isso não é novidade, porque quase todos os tribunais no país estão em infra-estruturas adaptadas. Portanto, compro- metem o rito normal do funcionamento do tribunal. Sabe que o funcionamento do tribunal obedece a um rito próprio. Uma de- terminada audiência tem critérios a serem seguidos, um ritual e que a estrutura física do edifício precisa caminhar neste sentido. No caso do Uíge sequer tem uma sala de audiência. Como é possível um tribunal não ter uma sala de audiência? Os magistrados que encontramos relataram para nós que só podem fazer uma audiência por mês, porque têm que sair deste edifício, que está deslocalizado do centro da cidade, e ir pedir favores ao Tribunal Militar, no centro da cidade, ou ao quartel dos bombeiros. Portanto, estas instituições também têm actividades rotineiras.
O que concebem é, eventual- mente, o que sobra. Mais do que isso, encontramos oficiais de justiça que para realizar estas audiências que nos referimos têm que andar de mototáxi, com processos em sacos pretos de lixo, sujei- tos a molharem com a chuva ou até extraviarem, porque algumas audiências criminais, por exemplo, podem ir noite adentro. Imagine que se esteja a julgar um criminoso, por exemplo: ele não pode organizar para que depois da audiência se extravie o processo das mãos do oficial de justiça, que está desprotegido a trafegar pela cidade e, às vezes, em locais escuros? Isso pode levar a extravios de processos como relatou-se, na ocasião, que já ocorreu. Uma situação idêntica encontramos em Malanje. O tribunal funciona numa casa de trânsito cedida pelo Governo Provincial. As audiências ocorrem na varanda ou em quartos. Nestes quartos encontramos processos guardados em casa de banho, que poderiam molhar e destruir os mesmos.
E alguns processos de reconstrução podem ser impossíveis. Portanto, estes aspectos é que dizem que fazemos a justiça possível. Se um cidadão pedir, por exemplo, a localização de um processo, o oficial de justiça, porque a acomodação é feita de qualquer jeito, tem dificuldade de chegar a ele. Portanto, vai levar muito tempo para dar uma resposta. E tudo isso compromete o funcionamento normal. Em Luanda, infelizmente, a realidade não é diferente. Imaginávamos encontrar uma situação diferente, mas, olhe, é lastimável. Convidamos, por exemplo, a visitar o Tribunal de Viana. É terrível.
O espaço em que são acomodados os réus, onde aguardam julgamento, não dá para entrar, porque é insalubre. Eles defecam aí e fazem necessidades menores, ou seja, ele está para ser julgado, mas antes de ser julgado já está a ser penalizado pelas condições em que lhes são colocados. Essas condições também são onde os magistrados trabalham. Dividem sala, um compartimento como esse. São três juízes, mas que em determinado momento precisam de produzir sentença, mas a conversa também atrapalha. O juz produz trabalho intelectual que carece de concentração para não perder detalhes que mui- tas vezes podem levar a condenar ou absolver. Na verdade, em to- do o país essa realidade se repete. Não encontramos tribunais erguidos para tribunais. São sempre adaptados e isso gera prejuízo para a actividade do tribunal .
Como se chegou a este estágio se ou- vimos sempre falar em reforma da justiça e, recentemente, até a inauguração de tribunais da comarca, ainda na vigência do anterior presidente do Tribunal Supremo, Rui Ferreira, e do actual?
Na verdade, nós, claro, acompanhamos as inaugurações dos tribunais de comarca. Acompanhamos também a reforma da justiça. Entendemos que, mais do que a produção de normas para adequá-la à nova constituição, há necessidade de se fazer o mesmo investimento na estrutura física dos tribunais. Desde a independência, estou aqui com dificuldade de ver quantos tribunais foram erguidos de raiz. Talvez os tribunais do Kilamba Kiaxi, de Viana, aqueles pequenos palácios da justiça, mas não me recordo de outros. O de Cacuaco parece que foi reformado. Precisamos de estruturas construídas próprias para tribunal. As comarcas inauguradas, na verdade, foram feitas em edifícios adaptados. Foi apenas a troca de uma placa de tribunal provincial para tribunal de comarca. A troca da placa simplesmente não traz impacto algum. Não traz impacto real a quem procura justiça, porque o que se precisa quando se faz uma reforma é entender as necessidades de quem procura o ser- viço e adaptar o edifício às necessidades de quem procura este ser- viço.
Houve uma troca de informações entre os que procuram o serviço e os que acabaram por fornecer?
Desconheço se terá ocorrido esse processo de auscultação. É provável que tenha havido, mas desconheço. A Associação de Juízes de Angola (AJA) não tem sido consultada? Até ao momento não participamos de nenhum processo de auscultação para, por exemplo, a construção de um edifício modelo. Em 2021, a AJA apresentou dentro das discussões que temos realizado um modelo auscultando magistrados, arquitectos, advogados e oficiais de justiça, aquando das discussões das comissões de trabalhos dos tribunais. Fez-se uma jornada apreciando de forma transversal a situação dos tribunais. Nesta ocasião foi apresentado um modelo para tribunal de comarca que abarcas- se os serviços. Por exemplo, as salas para atender cada jurisdição não podem ser iguais, porque cada uma tem uma especificidade diferente. Tenho uma especificidade para os crimes e tenho outra para a família. A lei exige que os menores sejam ouvidos em ambiente descaracterizado. E eu não tenho isso no tribunal. Portanto, já estou a ferir um princípio que orienta a audição de menores. Nessa proposta que a AJA faz, isso é atendido. Precisa-se neste momento também uma discussão ampla com o conselho, por- que é quem superintende a jurisdição comum no poder judicial.
No meio destas dificuldades todas, como é que fica a figura do juiz, o indivíduo que precisa de reflectir e de um ambiente que lhe permita decidir bem em consciência?
É difícil dizer.
Ou estará a dizer que é difícil ser juiz em Angola?
Não teria dificuldades de afirmar. Nós participamos de congéneres internacionais. Uma reúne magistrados da CPLP e outra a internacional que reúne magistrados de todas as latitudes. Convivemos com os outros magistrados, percebe-se que de facto há situações que são comuns e há outras que esta- mos aquém de muitos dos nossos colegas. Portanto, é difícil ser juiz em Angola.
Quais são as grandes diferenças que nota em relação aos colegas de outros países, por exemplo os da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa?
O primeiro aspecto reside nas condições de trabalho. E essas condições… digo, primeiro a estrutura física dos tribunais que congrega os serviços essenciais para que um magistrado consiga exercer o seu trabalho sem necessariamente estar antenado nas coisas periféricas que, às vezes, ele não deveria estar preocupado. Ele não pode estar preocupado se vai ou não imprimir a sentença que ele vai produzir. Não estar preocupado se o despacho que vai fazer será notificado em tempo útil ou não para o interessado. Vemos que para os outros colegas esta realidade está um pouco afastada. Preocupam-se com outras coisas. Inovam o processo para melhor servir o cidadão. Temos dificuldade de pensar na inovação, quando temos que pensar nas coisas mais básicas. A maioria dos magistrados tem apenas um funcionário. É o mesmo que notifica o despacho que o juiz produz, que vai para a sala de audiência para produzir a acta, auxiliar o juiz na audiência, produz os ofícios, ou seja, é multifunção. Ao executar estas tarefas todas, o que ocorre no final é que ele até pode ter boa vontade, mas não terá todo o tempo nem a ubiquidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo para executar. Portanto, o que temos de prejuízo é que leva- se muito tempo para executar tarefas que poderiam ter sido executadas há muito tempo. Isso redunda na morosidade processual, por exemplo.
No comunicado conjunto com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público tornado público, ontem, chamaram a atenção para as condições de trabalho, assim como para o estatuto remuneratório dos magistrados. Hoje os juízes ganham mal?
Essa questão é sensível de abordar e é preciso ter-se algum cuidado para se responder se ganham mal ou bem. A verdade é que a remuneração dos magistrados está muito aquém do desejado. O que podemos dizer é o seguinte: tendo em conta a nossa situação económica, imagine que os magistrados não têm os salários actualizados, assim como grande parte das classes tiveram. Os magistrados não têm isso há mais de cinco anos. Então já imaginou como a inflação corrói a remuneração dos magistrados? Neste momento, de facto, é uma das bandeiras da associação e também do sindicato do Ministério Público lutar para a revisão do estatuto remuneratório dos magistrados judiciais.
Quanto ganha um magistrado judicial?
O salário base de um magistra do judicial é de 384 mil kwanzas. Neste momento, vivemos até uma situação caricata. Como nos referi- mos à actualização de outras classes, estamos numa situação em que um secretário judicial tem um salário base superior ao de um juiz de direito com menos de cinco anos de funções. Isso interfere até naquilo que está legislado, que é a distribuição de mezenas entre aqueles que participam no processo. Então, é preciso ajustar isso.
Na verdade, há-que se ver não só a questão remuneratória, mas a produção legislativa. Essa reforma da justiça precisa ser vista com olhos de ver e auscultando todos os partícipes para termos soluções que, de facto, atendam os problemas. Porque se- não vamos fazer uma colcha de retalhos e não vamos resolver os problemas. Recentemente, tivemos uma questão dos desembargadores que passaram pelo concurso e entraram em funções para o tribunal da relação. A lei orgânica atribuía um salário para os desembargadores que em muitos casos, invés de promovê-los a uma nova classe, atribua um salário inferior à classe que ele era egresso.
Teve de se fazer uma reforma para ajustar isso. Portanto, esse processo de produção legislativa da reforma do direi- to da justiça precisa de auscultar todas as partes. O estatuto remuneratório dos magistrados é de 1994. Está totalmente desajustado à realidade actual. Estamos a trabalhar para reformar. Neste momento, te- mos conhecimento que a iniciativa legislativa é do poder executivo. Então queremos trabalhar juntos no sentido de se produzir um novo estatuto que de facto resolva a questão remuneratória dos magistrados judiciais e também dos magistrados do Ministério Público.
Face às dificuldades, fica de alguma forma difícil se dedicarem apenas à investigação e à docência?
De facto.
Se estivéssemos no Brasil, o certo seria perguntar-lhe como é que um magistrado se vira para suportar as despesas e outras necessidades?
Bom, também na linguagem dos brasileiros diria que tem mesmo que se virar nos 30. Este é o aperto em que vivem os magistrados. Alguns dizem que é uma classe especial.
E não é uma classe especial?
Eu posso dizer que é. Não verdade não digo por mim, mas sim como resultado da lei. Pela especificidade da actividade que exercem, a lei cria alguns elementos para que o magistrado trabalhe em regime de exclusividade. Não pode ter outras actividades e a única saída que tem é a docência. A docência também paga. Se a remuneração no tribunal não for condigna, o magistrado daqui a pouco se sente pressionado a dar mais aulas para ver se tem alguma coisa que somado ao que ganha no tribunal, ele consiga sustentar a família. Fazendo um paralelo com outras latitudes, a que nos referimos que somos associados e conversamos, os magistrados têm abertura para docência, mas têm impedimento de serem pagos como docentes.
Mas o que resolve é uma remuneração condigna como magistrado e a actividade docente ele faz pro bono, porque é uma for- ma de regenerar conhecimentos e também passar conhecimento por- que ele está na prática da actividade jurisdicional. Nós conhecemos realidades assim em que os magistrados nem por isso reclamam aos quatro ventos. Porque o básico é garantido de forma digna. Em tese, é o que se pretende que se discuta para encontrar uma solução que não aperte tanto os magistrados.
‘O poder judicial deve se manter liso, transparente e em condições de transmitir confiança para quem precisa dos seus serviços’
Parece que há magistrados a usarem outros expedientes. No comunicado que fizeram chamaram a atenção para a situação que se vive no Tribunal Supremo, on- de há muitas acusações em relação ao presidente desta instituição. Só que agora houve também o caso do Tribunal de Contas. Como é que os magistrados estão a viver este momento?
É um momento singular na história do judiciário angolano. Co- mo já dissemos na nossa carta que publicamos anterior a de ontem (Terça-feira,28 de Fevereiro), temos uma preocupação muito grande. Falamos há pouco da questão da especialidade do poder judicial. É o reduto do cidadão. A constituição coloca o poder judicial como o último lugar onde o cidadão deve se apoiar para ver materializado os direitos que lhe são conferidos pela constituição. O poder judicial deve se manter liso, transparente e em condições de transmitir confiança para quem precisa dos seus serviços. Nós trabalha- mos com a desdita e a dor alheia. Mas quem vem nos procurar, olha para o tribunal, espera encontrar soluções e não encontrar problemas.
E ele olha para quem trabalha nos tribunais como pessoas éticas, idóneas e que estão em condições de forma isenta de dar soluções aos seus problemas. Quando este aspecto ético fica comprometido, o papel de justiça também fica comprometido. E aí reside a nossa preocupação. O nosso apelo é para que as entidades responsáveis para que dê uma solução a esse ambiente que se vive em torno da justiça. De facto, trabalhem e comuniquem com a sociedade.
Quais são estas entidades?
Referimo-nos ao Conselho Superior da Magistratura Judicial, a Procuradoria-Geral da República, essencialmente, para que tratem destas questões e digam à sociedade o que se está a fazer para que as pessoas saibam que alguma coisa está a ser feita. Apelamos também que isso seja feito em respeito ao princípio de presunção de inocência. Que não se comprometa isso, mas que se restabeleça a imagem da Justiça. Sabemos que isso, certamente, há de levar o seu tempo, mas é importante que as coisas fiquem claras e que se tire esse manto negro sobre a justiça.
Há um mutismo por parte do Conselho Superior da Magistratura Judicial?
Se há um mutismo, não sei se usa- ria esta palavra, mas, na verdade, não ouvimos do Conselho qualquer pronunciamento a respeito disso. E não é bom. As instituições públicas devem comunicar. Temos o dever de prestar contas e de dar satisfação à população sobre a nossa actividade. Portanto, não falar sobre questões mui- to importantes abre espaço para especulação. Reitero ao nosso Conselho que dê tratamento a estas questões, comunicando também o que está a ser feito, porque, eventualmente, deve estar a fazer alguma coisa. Porque são várias acusações e é preciso preservar a imagem da instituição. Acredita- mos que, eventualmente, esteja a ser feito, mas é preciso comunicar para que as pessoas acompanhem e isso mitigue o efeito das eventuais especulações ou acusações que são feitas.
O presidente do Conselho Superior da Magistratura judicial é ao mesmo tempo presidente do Tribunal Supremo, por sinal uma das pessoas cuja imagem tem sido ‘chamuscada’ nos últimos tempos com acusações de benefícios de negócios a familiares, tráfico de influência, extorsão e outros supostos crimes. Acredita que o próprio presidente do CSMJ vá orientar uma investigação a ele próprio?
O CSMJ tem mecanismos. Por isso, acreditamos que esses mecanismos podem de facto estar colocados a funcionar para esclarecer isso. Existem mecanismos internos para despoletar a regulação de uma coisa neste sentido.
O que sentiu quando viu o comunicado do gabinete do Presidente da República, João Lourenço, realçando que tinha retirado confiança à juíza presidente do Tribunal de Contas?
O que lhe veio à alma? Uma grande tristeza de termos chegado a este ponto, como diria o outro ‘nunca antes na história deste país’. Pronto, é uma grande tristeza, mas o Presidente da República melhor poderá dizer das razões que levaram a esse ponto. Mas, eventualmente, tenha sido forçado a chegar a este ponto. Não conseguimos dizer mais sobre as razões, mas de facto é uma grande tristeza.
E no dia seguinte surge um outro comunicado, desta vez da Procuradoria-Geral da República, indicando que estava a ser indicia- da por crimes de peculato, corrupção e extorsão. O que dizer?
Conheço pouco destes processos, por isso tenho dificuldades de comentar o comunicado da PGR. Mas, prontos, vamos esperar que isso se esclareça. São as instituições que são vocacionadas a investigar, apurar e, eventualmente, a promover a acção penal na hipótese de se confirmar estes factos. De algum mo- do é bom. Já apelamos aqui que se comunique, os factos são esses, não são os melhores e não era sobre isso que queríamos ouvir. Para nós, queremos que se apure sempre tendo em conta o princípio da presunção de inocência.
‘Há magistrados que dizem que sinto vergonha até de me apresentar como magistrado’
Olhando para esta névoa que se vive hoje, sobretudo num tribunal superior, no Supremo, sem esquecermos o Tribunal de Contas, enquanto presidente da Associação dos Juízes de Angola, acha que há condições emocionais para que os colegas exerçam incondicionalmente as suas actividades?
O ambiente é complexo. Mas há uma grande resiliência por parte dos magistrados e o acto que se realizou hoje aponta neste sentido, porque entendemos que é uma fase e precisamos de fazer a nossa par- te para que esta fase passe logo. E as coisas se restabeleçam e o normal volte a imperar. De facto é um momento muito difícil e complexo. Há magistra- dos que dizem que sinto vergonha até de me apresentar como magistrado. Mas temos consciência que temos que lutar para alterar este quadro. Acredito que vamos conseguir. É difícil, mas não devemos só fazer coisas fáceis.
Tivemos um juiz presidente do Supremo que não cumpriu o seu mandato. Caso se provem algumas acusações que são feitas contra o actual presidente, Joel Leonardo, de poder não terminar o mandato, uma juíza presidente do Tribunal de Contas que acabou colocando o cargo à disposição e um procurador geral da República, cujo mandato ter- minou no fim do ano passado. O que se pode dizer?
É um cenário não menos bom no capítulo da história do poder judiciário angolano. O que nós entendemos é que os instrumentos legais que existem para estabilizar esse processo devem ser accionados. Por outro lado, talvez seja o momento para sentarmos à mesma mesa para discutirmos essas questões e avaliar com serenidade quando se encontrarem soluções para estes problemas. Porque, de facto, não é um capítulo que abone aos magistrados e à justiça de uma for- ma geral. Quando digo a justiça de uma forma geral, isso afecta o Estado de direito como um todo. É importante que esteja estabilizado e com mais ênfase para o poder judicial. Se tiver problemas no Executivo e no Legislativo, deve-se recorrer ao judicial. Se o judicial não estiver em condições, isso compromete muito a estabilidade do Estado de direito.
A integridade moral que se pede sempre aos magistrados está sendo chamuscada?
A integridade moral…
Sim, uma condição sine qua non para se chegar às funções. O que terá falhado para que existam exemplos da sua inexistência em relação a alguns magistrados? Será da formação? Não se investiu nisso?
Talvez não esteja num único factor. Não consigo apontar um único factor. A questão moral é subjectiva. Tanto eu devo contribuir para que seja visto moralmente bem, mas também como a moral é individual, ela tem um peso subjectivo. Deve ser medido nesta forma. Mas a questão ética, que é um valor universal, que se espera que o magistrado também observe, esse necessariamente tem que ser observado, independentemente de isso afectar a moral do indivíduo que o observa ou não. Se ele estiver a ser ético, eu posso relativizar a moral. Mas se isso se inverter, aí a coisa já é contra ele.
Acha que se está a inverter hoje?
Ainda não temos resultados finais. O que estamos a ver é que o que acontece alimenta a avaliação negativa da moral, que é a apreciação individual. As pessoas não esperam o resultado final para, por exemplo, julgar. Ali é a questão moral, não tenho todos os elementos, mas a minha construção social leva a julgar deter- minado facto, pessoa e forma. O magistrado deve ter cuidado com isso. Por isso, há condutas que são necessárias que o magistrado adopte para evitar esses julgamentos morais. Agora, a bússola tem que ser princípios éticos.
Até que ponto os 10 por cento que são atribuídos aos magistrados, no âmbito do combate à corrupção e recuperação de activos, tem sido um elemento positivo ou negativo?
Nos parece que carece de melhor avaliação. Se voltarmos para a questão ética, pode ser que prejudique a ética neste expediente em que o tribunal participa um elemento que deve ser imparcial para julgar estes processos. Cita- mos o caso do Uíge em que o tribunal está instalado num edifício que foi…
Uma pensão?
Diz-se que foi uma pensão, mas não consigo afirmar isso com elementos fácticos que confirmas- sem. Mas a estrutura parece. Só não posso afirmar factualmente porque não tenho documentos nem tive elementos que de facto digam que funcionou uma pensão ali. A verdade é que aquele imóvel foi apreendido no âmbito de um processo penal. O referido processo está em recurso no Tribunal Supremo e o tribunal já está a usar esse imóvel. Parece que isso compromete de alguma forma a lisura do processo. Dá a impressão que há um caminho para a condenação, porque me vou beneficiar do imóvel. Se calhar deveríamos conversar um pouco mais sobre isso para vermos as melhores soluções. Quando diz que os magistrados se têm beneficiado destes imóveis, só lhe posso dizer que a maioria dos magistrados não foi alcançada. Se tivesse sido alcançada, é por ter sido colocado a funcionar nos edifícios das ex-AAA, que foi para lá que foram adaptados os tribunais. Assim de facto, se calhar o aproveitamento que se teve foi esse. Agora, de se ter acesso a imóveis, como casas e apartamentos, muito pouco e não posso generalizar.
É bom que os magistrados rece- bam 10 por cento?
Acho que, se calhar, não é a melhor forma. Justamente pela natureza do tribunal. Se tem que ser exemplo para produzir uma decisão que seja justa e que não se coloque em causa a posição de quem julga, então ele tem que ser um terceiro desinteressado. Ao final das contas compromete a questão moral e ética que acabamos de dizer. Talvez devíamos encontrar uma outra fórmula, porque razões devem ter existido para quem propôs esta solução, mas devíamos repensar de encontrar outras formas de dar mais condições aos tribunais. Mas não essa directa daquilo que for arrecadado para os tribunais.
Isso não compromete também a independência dos magistrados?
Não diria que compromete. Tal- vez pudesse ser visto desta forma pelas razões que acabei de dizer, porque dá a impressão que é um terceiro interessado. Por esse prisma, poderia concordar que iria comprometer a independência do magistrado. Mas os magistrados têm mecanismos de poderem manter a sua independência, independentemente destas influências que estão à volta. Dizer isso, por exemplo, é admitir que os magistrados, pelo facto de sofrerem grande pressão, e pressão económica, ou seja, ali onde mais dói no bolso, têm a sua independência comprometida. Mas temos muitos exemplos de magistrados que não se vergam.
Há muita pressão?
Bom, a pressão económica é uma delas.
A independência dos magistrados, no país, não está compro- metida se tivermos em conta estes casos que vamos ouvindo?
A independência dos magistrados deve ser vista de uma for- ma transversal. Do topo à base. De forma individual , daqui- lo que temos observado, é que em tese não há comprometimento da independência, mas há aspectos que observamos também que colocam em causa essa independência. Quando falamos em independência dos tribunais, dos magistrados, existem alguns pressupostos: tenho a independência funcional, administrativa e a financeira.
E até política?
Sim, até política. Se destas independências que nos referimos algumas não tiverem condições, é difícil dizer que a independência está garantida. Se eu tiver um filho e dizer que o senhor a partir de hoje é independente, não garantir que ele tenha uma renda, que lhe garanta realizar as suas necessidades básicas, ele há de voltar sempre para pedir dinheiro ao pai para se manter. Será que é independente de facto? Precisamos de conversar um pouco.
A independência política dos magistrados está salvaguardada?
É preciso avaliar alguns aspectos da questão política. Se calhar, estudar melhor as formas de indicação, acesso, principalmente aos tribunais superiores, no sentido de mitigar a influência política. Não é possível absolutamente interromper, porque o próprio princípio da separação de poderes prevê uma interdependência entre os poderes. Mas sem inter- ferir a ponto de comprometer o normal funcionamento de cada um dos poderes. Portanto, admite-se dentro de uma determinada medida, mas é preciso avaliar até que ponto é que não te- mos lacunas que permitem que a interferência política externa no poder judicial interfira na política do poder judicial.
Hoje, os magistrados já viram diminuir a avalanche de processos com que cada um lida anualmente?
Não diminuíram. Pelo contrário, os processos aumentaram. À medida que o tempo passa, a literacia da população angolana aumenta e a consciência jurídica igualmente. Portanto, as pessoas levam mais processos aos tribunais. Por outro lado, nós temos uma máquina que não funciona convenientemente e faz com que magistrado tramitam com cerca de dois mil processos. Isso não é humanamente possível. Com- promete a qualidade do trabalho que é realizado. Cooperam para isso a estrutura física, porque se o magistrado estiver numa sala própria, em que ele pode manter a concentração por um período mais longo, então ele produz mais. Mas se ele estiver numa sala repartida – e muitas das vezes não é só com um colega- é natural que alguém receba uma ligação e ele interrompa o processo de produção do despacho ou da sentença. Outro aspecto é a quantidade de funcionários que ele tem e as condições que têm para executar as orientações que emana do seu trabalho. Portanto, temos magistrados que, se calhar com as condições todas criadas, podiam atender a demanda. Mas como as condições não atendem, isso emperra o trabalho normal.
Em suma, não é fácil ser juiz em Angola?
Não é fácil ser juiz em Angola.