Alguns familiares cujas sepulturas dos seus ´entes queridos´ estão no cemitério de Camama, no município com o mesmo nome, em Luanda, queixam-se de encontrarem as mesmas parcialmente destruídas, quando entendem ampará-las ou dar outros tratamentos de honra aos finados.
O caso mais recente aconteceu no princípio de Janeiro deste ano. E um dos familiares afectados esteve na semana finda a tratar com a direcção do cemitério sobre a possibilidade de reconstrução das campas.
“Estou descontente com a situação que aconteceu na campa do meu pai, dia 3 de Janeiro de 2025, porque foi destruída. Tudo indica que os infractores pretendiam levar o granizo da mesma, porque depois de os retirarem arrumaram-no, aos montes, de campa em campa”, lamentou Orlando Sunga, tendo informado que além da do seu pai, outras sepulturas do quarteirão também foram vandalizadas.
Orlando Sunga apercebeu-se do caso, uma semanas depois, quando recebeu uma ligação dos funcionários da direcção do cemitério de Camama, segundo os quais alguns indivíduos pularam o muro e começaram logo a partir as campas que estavam ao lado da parede que cerca o referido campo-santo, próximo do portão de entrada.
O lesado, que fala em mais de 15 sepulturas destruídas, avalia os danos na ordem dos 40 mil Kwanzas. Para ele, a direcção do cemitério deve responsabilizar-se pelos prejuízos, reconstruindo as mesmas ou ajudando os familiares afectados a arcarem com as despesas de reposição.
Pela maneira como foi notificado para ir registar os danos da campa onde está sepultado o seu pai, Orlando Sunga concluiu, imediatamente, que a direcção do cemitério de Camama tinha intenção clara de atirar a responsabilidade de reconstrução às famílias.
“Posto aqui, alguns membros da direcção me pediram para ir ter com o responsável dos seguranças. Mas já o procurámos, não conseguimos encontra-lo, lamentou Orlando Sunga, que se sentiu mais triste, quando o técnico das campas o remeteu para outras instâncias.
“Oito seguranças para ronda interna”
O director do cemitério de Cama- ma, Jerónimo Chilunda, deseja ter mais de seis seguranças a fazerem as rondas, por dentro do cemitério, para ver o ambiente a voltar ao normal. “Para nós termos sobretudo a área de dentro bem controlada, precisamos de, pelo menos oito seguranças, além de dois ou quatro, na zona de acesso” disse o director, que conta, actualmente, com quatro ou cinco seguranças, em cada turno.
Jerónimo Chilunda informou que esse número não se traduz no trabalho que devia ser feito, porque é como se estivessem apenas três a trabalhar. “Já falamos com os seguranças que temos para estarem a patrulhar as áreas, de modo a desencorajarem tais práticas.
Os mesmos também têm orientação precisa para não deixarem algumas pessoas fazerem do campasanto um sítio de passagem, para atingirem as residências do outro lado”, lembrou Jerónimo Chilunda.
Muito recentemente, a direcção do cemitério de Camama viu, com bons olhos, o fim de contra- to da empresa de segurança que prestava serviços aí e a contratação de outra. Ainda sobre vandalização, ele admitiu que o cenário voltou a acontecer em Dezembro do ano passado e, até à data, há casos alternados.
O director avalia a situação actual como relativamente calma, por causa da presença de alguns agentes da Polícia Nacional, que, durante o dia, está no cemitério a realizar rondas externas e internas.
Coveiros sentem-se ameaçados Certos coveiros dos cemitérios de Camama e da Mulemba, vulgo do 14, respectivamente, nos novos municípios de Camama e Hoji Ya Henda, manifestaram-se preocupados com o vandalismo, assaltos e outros tipos de violências que acontecem dentro do cemitério.
No 14, os coveiros ainda estão traumatizados por causa de um assassinato que houve, No princípio do ano 2025, dentro do cemitério. “Um dia pode acontecer connosco, porque nós estamos sempre aqui dentro a trabalhar e somos as primeiras pessoas com quem se quer falar, quando a preocupação é saber de um dado daqui”, declarou um funcionário.
Os coveiros reconhecem que, tirando o caso mortal que chocou a todos, a situação actual pode considerar-se controlada, devido à entrada em cena da polícia, que, todos os dias, marca presença no cemitério da Mulemba, destacando dois agentes para os portões de entrada e de saída, além de outros dois que rondam no interior desse campo-santo.
Para eles, preocupa ainda mais a atitude dos jovens das redondezas do cemitério, que, nas horas em que se encerram os serviços de sepultamento, transpõem o muro, de fora para dentro, onde fazem quase tudo.
“Urinam, defecam, fumam e bebem aqui”, revelou um coveiro, tendo acrescentado que ele e os seus colegas descobrem isso, devido a marcas visíveis desses actos deixadas nos locais onde actuam.
Situação semelhante ocorre, de forma reduzida, no cemitério de Camama, mas com a agravante de, às vezes, resultar em encontros de um e outro grupo, que, algumas vezes, acabam em brigas.
Outra preocupação dos coveiros tem a ver com a quantidade de garrafas e sacos plásticos, guardanapos de papel (papel higiénico) e outros recipientes de refrigerantes descartados pelos indivíduos que dirigem ou acompanham os actos fúnebres.
Queimadas proibidas
Por conta de um mau entendido que existia entre os coveiros e os familiares de “entes queridos” enterrados nos cemitérios em causa, a classe de trabalhadores dessas instituições viram-se proibidas a realizarem queimas de quaisquer objectos ou coisas.
“Quando víssemos que o capim era demais, às vezes, com o consentimento das famílias, queimávamos, mas, por causa de outros familiares que desconfiavam que estamos a queimar utensílios da campa, deixámos de o fazer, contou um coveiro, que disse já ter si- do acusado de feiticeiro.
Actualmente, os trabalhadores optam por esperar o tempo seco ou de cacimbo (final de Maio, Junho, Julho e princípio de Agosto), para capinarem, amontoarem o capim e, com ajuda de empresas de limpeza, retirarem-no para um aterro sanitário. Algumas marcas de queimadas recentes encontradas, nesses cemitérios, foram atribuídas a familiares e a clandestinos que, de forma deliberada, tomam iniciativa de o fazer, no intuito de verem a zona da campa de seu “ente querido” limpa.
“Mas, normalmente, essas tentativas são impedidas, no início ou a meio, porque o fumo nos chama atenção e accionámos mecanismo de repreender e apagar o fogo, ainda antes de uma possível propagação”, frisaram os coveiros.
Direcção do 14 aborda assassinato
O director-adjunto do cemitério da Mulemba, também conhecido como do 14, no NGola Kiluanje, no novo município de Hoji Ya Henda, em Luanda, Abel Catenda, admitiu que a delinquência continua, porque, ainda na segunda semana de Janeiro mataram um senhor, dentro do cemitério.
“Foi assaltado e morto, mas a polícia, depois removeu o corpo e pôlo na morgue. É a primeira vez que isso acontece. Os infractores ainda não foram encontrados, mas os agentes dos Serviços de Investigação Criminal (SIC) garantiram que as suas buscas vão resultar na localização e captura dos mesmos.
Para que isso não volte a acontecer, o referido cemitério foi reforçado com mais agentes da polícia, ao ponto de, actualmente, já terem alguns efectivos da corpo- ração a rondarem dentro do campo-santo.
“Essas rondas são realizadas em conjunto com a equipa de segurança que presta serviços ao cemitério do 14, o que está a ajudar a diminuir os casos de violência aqui, que até já foram muitos”, recordou.
Abel Catenda mostrou-se também preocupado com os jovens das redondezas que pulam o muro, para se drogarem e fumarem dentro do ´necrotério´, onde, quando se desentendem, partem para agressões.
Como a polícia já efectua ronda interna, o sub-director do cemitério propõe que os agentes da Ordem Pública reforcem os mecanismos de actuação e, principalmente, que alarguem as horas de trabalho.
“Porque, como sabem que os polícias rondam durante o dia, eles aproveitam fazer das suas, ao entardecer e á noite“, informou. Abel Catenda acredita que a situação voltará ao normal, se a acção dos efectivos da corporação continuar e os critérios de actuação forem adequados à realidade do próprio cemitério.
Quanto à vandalização das campas e de outros materiais do cemitério, o responsável gabou-se as- segurando que já não existem casos do género A consciência dos utentes foi mencionada por Abel Catenda, que é de opinião que a mesma deve mudar primeiro, o que para si é mais importante do que o reforço da segurança interna ou externa.
Só para dar um exemplo, o numero dois do cemitério da Mulemba referiu-se sobre os enormes prejuízos que os utentes causam ao trabalho da equipa de limpeza do cemitério, ao desfazerem-se dos frascos plásticos de água e de outras embalagens de alimentos trazidos por si. Por causa disso, a direcção do 14 adoptou a medida de proibir as pessoas a entrarem com alguma pasta.
Os seguranças e a polícia cuidam de garantir que tal não aconteça, já a partir da porta de entrada. “A quantidade de pessoas que acorre aos serviços do cemitério e a natureza da situação que as leva para aí deixa poucas formas para impedir que as mesmas entrem com esses recipientes”, reconheceu o director adjunto.
De acordo com Abel Catenda, há dias que as senhoras destacadas aí para limpeza envidam esforços para limpar tudo, depois dos enterros, mas a sua capacidade não chega a cobrir um turno sequer, porque os cortejos fúnebres não param, enquanto o cemitério não encerrar, às 15 horas de cada dia.
Insistentes rituais de caixões no ar A Abel Catenda preocupa o facto de muitos grupos se ser- virem de traços culturais e tradições para justificar os vai-e-vem das urnas e salto às mesmas, além de outras acções más protagoniza- das por familiares de finados, alegadamente para honrar esses últimos.
“Muitas vezes, dá para fazer a leitura de que certos actos não têm nada a ver com cultura, mas são mesmo manias das famílias, por- que justificar que para se enterrar bem é preciso atirar o caixão ao ar, pulá-lo, repetidas vezes, ou agitá-lo, entre choros, cânticos e aplausos, isso obriga a fazer-se muitas questões”, desabafou.
Desconfiança de feitiçaria Antigamente, os coveiros e os auxiliares de limpeza tinham de queimar o capim, quando as campas estivessem cobertas ou ladeadas dessa erva daninha, mas, por causa da desconfiança que os familiares manifestavam de estarem a queimar qualquer coisa desenterrada, a direcção decidiu proibi-los.
“Agora já nunca mais queimamos, porque já fomos reforçados com mais trabalhadores. Assim que tem muito capim, lá para os meses de Maio, Junho e Julho, vamos capinar. Tudo isso é para evitar confusão com os familiares”, disseram os coveiros.
Eles alegaram que havia desconfiança de toda ordem, porque o fogo, quando descontrolado, atingia parte das campas alheias. Acrescentaram dizendo que alguns aliavam as queimas a práticas de feitiçaria. A recomendação da direcção é não queimar.
O responsável do cemitério abriu um parênteses para chamar atenção de que, nesse capítulo, culpa não era só dos funcionários, pois, alguns familiares, quando se achassem vencidos pela vegetação do género, também recorriam a queima.
“Agora, o familiar que assim pro- ceder também é responsabilizado, sobretudo se for apanhado em flagrante”, anunciou o entrevistado, tendo adiantado que e a sua equipa está a passar essa mensagem aos utentes.
Abel Catenda disse que essa área de Luanda precisa de ver, pelo menos, a construção de mais um cemitério, porque, no do 14, aparecem familiares vindos de bairros muito longínquos.
GPL fala em situação controlada
A chefe do departamento de gestão dos cemitérios da provínciade Luanda, Vânia Vaz, considera que asituação dos campos-santos é calma. “O vandalismo nos cemitérios já não acontece tanto como antes, porque nós reforçamos o contacto com as empresas que fazem o asseguramento, o que desencorajou as práticas do género, sobretudo no período nocturno”, garantiu a gestora.
Vânia Vaz, admitiu, no entanto, que acontecem desrespeito e desentendimento entre pessoas que vão assistir funerais, que também pisam, sentam e sobem nas campas de outros, para se abrigar.
Segundo a chefe do departamento de gestão dos cemitérios, essas atitudes dos utentes são pratica- das até nos quartos de banho dos cemitérios, onde, depois o uso, o cenário torna-se bastante com- prometedor.
O facto devera situação calma,devido ao reforço de segurança não anima muito Vânia Vaz, para quem a tranquilidade devia ser fruto da consciencialização das pessoas que recorrem aos serviços de um cemitério.
Por isso, apela as famílias, igrejas e outros ciclos sociais a educarem e mobilizarem os cidadãos a terem respeito por aqueles que já partiram dessa vida e, principal- mente, dos locais onde foram enterrados.
“Isso é algo que nós também, ao nível dos funcionários que lá estão, vamos dando instruções, para que eles chamem atenção às pessoas que fazem uso dos nossos campos-santos” Só três cemitérios sob tutela do GPL Embora não fosse para sacudir a responsabilidade das recentes vandalizações ocorridas no cemitério de Camama, Vânia Vaz, informou que sob a tutela do Governo Provincial de Luanda (GPL) estão apenas três.
“O cemitério de Camama não está sob a tutela do GPL, é municipalizado. Nós, o Governo provincial, temos apenas três cemitérios sob a nossa gestão, que são os do Alto das Cruzes, o de Santa Ana e o do Benfica”, apontou a gestora, realçando que os outros já estão entregues à responsabilidade das administrações municipais.
Questionada se os cemitérios tutelados pelo GPL vão ter o mesmo destino, futuramente, Vânia Vaz, ponderou dizendo que essa possibilidade estava dependente de alguns factores. “Há situações que nos obrigam a não transferir, porque notamos ainda não há capacidade do município ou por questões de segurança, porque esses são os três cemitérios que carecem mesmo de uma atenção mais especial”,salientou chefe do depatamento, tendo detalhado que os dois primeiros por estarem no centro da cidade.
Para demonstrar a necessidades- sapolítica, ela ilustrou um cenário de pronta intervenção que o município podia demorar para resolver. “Dos três, apenas o do Benfica tem registado vandalização, sobretudo dos quartos de banho, ao ponto de haver destruição das louças sanitárias e mau uso das sanitas e lavatórios.
Quando isso acontece, temos de fazer algumas obras que exigem trocar o material danificado” relatou, acrescentando que se trata de um cemitério que, desde a sua abertura, tem estado a receber o grosso da província.
Espaços sagrados de continuidade da vida
O antropólogo João NGoma referiu que a vandalização de sepulturas, nos cemitérios, permite compreender esse fenômeno, a partir de múltiplas perspectivas culturais, sociais e simbólicas, como legado dos povos em Angola.
“A antropologia, especialmente em suas vertentes da Antropologia da morte e do espaço sagrado, analisa como diferentes sociedades atribuem significado aos cemitérios, às sepulturas e aos rituais fúnebres.
Outrossim, os grupos socioculturais, as sociedades, as famílias, as pessoas consideram a morte como sendo ´rito de passagem´, pois a pessoa morta não morreu, apenas estará cumprindo uma das fases de sua missão, passagem de uma vida para outra”, explicou o antropólogo.
Socorrendo-se no adágio segundo o qual “o que morre é o corpo, o espírito nunca”, disse que o espírito da pessoa morta continua coabitando no seio da família, em casa, em lugares por onde frequentou e aparece nos sonhos daquelas pessoas ele considera seus de verdade para transmitir alguma mensagem.
Para muitas culturas dos povos que compõem Angola, os cemitérios não são apenas locais de sepul- tamento, mas espaços sagrados que representam a continuidade da vida pós-morte, a ancestralidade, a identidade do grupo sociocultural, a identidade da família, identidade colectiva e até mesmo a identidade individual. Por isso, os rituais fúnebres e a preservação dos túmulos têm um papel essencial na construção da memória social, das famílias e da coesão comunitária.
“A violação desses espaços pode ser interpretada como uma ruptura simbólica com os valores culturais relacionados à ancestralidade, aos grupos socio-culturais, asfa- Vânia Vaz, chefe do Departamento Provincial de Gestão dos Cemitérios de Luanda Preocupante confusão das pessoas que acompanham os funerais mílias e ao respeito pelos mortos”, frisou o especialista.
Do ponto de vista antropológico, a profanação ou vandalização das sepulturas pode ser vista como uma transgressão simbólica que desa- fia normas culturais estabelecidas, soube O PAÍS de João NGoma, para quem tal prática expressa tensões sociais, econômicas e até espiritu- ais, dentro de uma comunidade.
“E o mais profundo pode-se acusar o nível de consciência e compreensão dos aspectos socio-culturais, académico, espiritual, o estágio psicológico e de sentimento de pertença, de autoaceitação das pessoas que se dedicam as essas práticas nos espaços muito sagrados ´sepulturas em cemitérios´, rematou o antropólogo.