Serão celebrados, amanhã, 64 anos da Revolta dos Camponeses da Baixa de Cassanje. Apesar do passar dos anos, os moradores da localidade lamentam a vida dura que a região enfrenta, conforme constatou a reportagem do jornal OPAÍS que escalou o local a propósito da data.
Entretanto, do desvio da Estrada Nacional 230 até à sede do município de Quela, na província de Malanje, a caminhada de cerca de 20 quilómetros é feita com muitas dificuldades, entre buracos e terra batida.
A situação é pior ainda quando chove, devido aos charcos e lamacentas que dificultam a circulação, causando, na maior parte das vezes, danos às viaturas. Da sede do município até à vi- la da Baixa de Cassanje são per- corridos outros tantos quilómetros de terra batida e com acesso precário até encontrarmos a zona onde, no dia 4 de Janeiro de 1961, foi palco de sangue devido às muitas vidas de angolanos que foram ceifadas.
Ao chegar ao local, a vala comum, que actualmente foi transformada em cemitério dos heróis da Baixa de Cassanje, construí- do em 2016, dá as boas-vindas a quem escala aquele território. No local, seis campas foram construídas para simbolizar as centenas de vidas de angolanos que, em 1961, se revoltaram contra o regime colonial português devido à obrigatoriedade imposta da produção da cultura do algo- dão no território da Baixa do Cassanje, no antigo Reino Imbangala de Cassanje.
Já num olhar mais acima, do lado oposto do cemitério, está o terreno repleto de matagal onde, em 1979, foi lançada a primeira pedra, pelo então Presidente Agostinho Neto, e construída a casa modelo daquilo que seria a Aldeia Piloto da Baixa de Cassanje, projecto que infelizmente ficou pelo caminho depois da morte do Fundador da Nação.
Quer o cemitério como a casa modelo encontram-se, visivelmente, num verdadeiro abandono, num cenário cercado de capim e extenso matagal, uma situação que os habitantes locais consideram como sendo desrespeitosa à memória das vítimas da revolta de 1961. “Não conseguem construir o tão esperado Memorial nem conseguem manter limpo esse cemitério. Está tudo abandonado. Não há respeito pelas pessoas que lutaram para o nosso país. É triste”, lamentou Simão Francisco, morador da zona.
As memórias indeléveis
Amanhã serão percorridos 64 anos desde que se deu a revolta dos camponeses da Baixa de Cassanje, um acontecimento que custou a vida de centenas de angolanos. Entretanto, o que determinou a revolta foi a obrigatoriedade imposta pelo regime colonial da produção da cultura do algodão naquele território.
Tratava-se da cultura obrigatória do algodão numa comunidade de camponeses que até então vivia da produção agrícola. Os trabalhadores do algodão da Baixa de Cassange eram populações consideradas indígenas e que, além de entregar uma grande parte da sua colheita de algodão às autoridades coloniais, eram obrigados ao pagamento de um imposto de capitação.
Esta recusa determinou uma reação por parte do Estado colonial português, o que acabou por originar o primeiro ataque aéreo por parte do exército português. Esse ataque aéreo à região provocou um enorme número de mortes, cujas lembranças até hoje ainda estão presentes na memória de muitas pessoas, sobretudo filhos das vítimas daquele trágico acontecimento. É o caso de Manuel Kituxi, o regedor do Quela.
Aos 75 anos de idade, o ancião diz ter ainda em memória tudo que correu naquele 4 de Janeiro de 1961, quando já tinha 11 anos de idade. Durante a tragédia, ele perdeu o pai e mais dois tios, marcas indeléveis que o tempo, conforme diz, não apaga. “O meu tio morreu nos braços da minha falecida mãe. Ele estava cheio de sangue. Foi uma tortura que esperamos nunca mais voltar a acontecer”, explicou.
Apesar da idade miúda, na altura, Manuel Kituxi recorda o dia como sendo o pior da sua vida, tendo em conta as atrocidades cometidas contra pessoas indefesas.
“Eles é que nos atacaram de forma injusta. Não tínhamos forças nem meios para lutar contra o sistema colonial português. Eles exploravam as nossas terras e ainda queriam que pagássemos impostos. Isso não era justo”, deplorou.
Honrar as vítimas com trabalho
Entretanto, passados 64 anos da revolta, os habitantes da Baixa de Cassanje convergem na ideia de que a melhor maneira de honrar a memória das vítimas daquela tragédia é levar o desenvolvimento à localidade, através dos mais variados serviços e equipamentos sociais.
A região, ainda carente de vários serviços, enfrenta sérias dificuldades de circulação devido à falta de estradas, carência de hospitais, escolas, habitação condigna, energia e água. Alberto Magaxide, 75 anos, filho de uma das vítimas da revolta de 1961, diz que não percebe as razões para que a Baixa de Cassanje continue a ser uma terra esquecida por quem governa.
Conforme referiu, o desenvolvimento na localidade ainda está longe de acontecer porque não há interesse da parte de quem governa. O ancião referiu que, tendo em conta o seu valor histórico, cultural e agrícola, a região da Baixa de Cassanje tem tudo para desenvolver e ser uma terra de oportunidades. “64 anos é muito tempo para se poder fazer as coisas.
E é inacreditável que uma Baixa de Cassanje, que é conhecida mundialmente devido ao que ocorreu aqui, continue a ser essa terra esquecida e sem nada. Isso não pode ser”, lamentou.
“Até o memorial não passa de conversa”
Outras das situações que enfurecem os habitantes da Baixa de Cassanje é o memorial em homenagem às vítimas do 4 de Janeiro de 1961. Contam os habitantes que essa intenção há muito tempo já foi manifestada, mas que, até ao momento, as promessas não passaram de meras palavras.
Paulo Mucenga, 84 anos de idade, disse que já houve várias conversas e reuniões sobre o assunto da construção do memorial, mas que não saíram do papel. “Até o memorial não passa de conversa. Só vivemos de promessas. Realidade que é boa a gente não vê. É triste, porque o governo não nos presta a atenção que merecemos”, frisou.
Para o ancião, o Governo tem mostrado total desinteresse em fazer da Baixa de Cassanje uma referência histórica. “Nós, aqui, não temos nada. Absolutamente nada mesmo. Por isso é que os jovens não aceitam morar aqui. Só vivemos de promessas. Vieram nos tapar os olhos com cemitério e daí o Estado não fez mais nada por nós”, apontou.
Precisamos de uma biblioteca
Por seu lado, António dos Santos, 54 anos de idade, de- fende a construção de uma biblioteca na Baixa de Cassanje para possibilitar a pesquisa de estudos relaciona- dos aos acontecimentos de 4 de Janeiro de 1961.
De acordo com o morador, a localidade tem recebido, regular- mente, a presença de vários grupos de estudantes e pesquisa- dores interessados na história da região, pelo que a implementação de uma biblioteca deverá facilitar naquilo que são os trabalhos de pesquisas.
“Uma biblioteca aqui seria uma grande facilidade para quem nos procura. Quando recebemos pessoas, não temos espaço para albergá-las. Somos obrigados a receber as pessoas aqui ao relento e ao sol. Isso nem fica bem”, lamentou.
“Estamos a trabalhar para dar dignidade à Baixa de Cassanje”
O administrador municipal do Quela, que dista há 115 quilómetros da cidade de Malanje, Aguiar Kitumba, disse que várias acções estão a ser feitas com vista a garantir uma vida condigna às populações da Baixa de Cassanje.
A título de exemplo, apontou a revitalização do cultivo do algodão no município com a participação de investidores privados que estão a apoiar os camponeses locais no âmbito da agricultura familiar.
Segundo ainda o administrador, também no âmbito do programa de combate à fome e à pobreza, a sua administração tem apoiado os homens do campo com sementes e cedência de terras com vista a dinamizar a agricultura.
A este nível, explicou que mais de 60 antigos combatentes estão a ser apoiados neste programa que prevê, igualmente, distribuir 200 hectares de terra para o fomento da agricultura. Outrossim, disse que o município tem apostado forte na saúde e na educação, sendo que, neste último, a região conta com 42 unidades, entre primeiro e segundo ciclo.
Já no campo da saúde, apontou que o Quela conta com um hospital municipal e cinco postos de saúde, todos equipados com medicamentos e materiais de assistência com qualidade.
PIIM é um desafio
Quanto ao Plano Integrado de Intervenção nos Municípios (PIIM), o governante deu a conhecer que, infelizmente, os resultados não são satisfatórios devido ao abandono de muitas obras que deveriam ser úteis à vida das populações.
Actualmente, frisou, um total de 17 obras estão paralisadas, entre hospitais, escolas, postos médicos, quadras desportivas e outras unidades que deveriam garantir maior qualidade de vida às populações.
Entretanto, sem avançar o valor global do PIIM na região, disse que o programa está abaixo dos trinta por cento de execução física e que nesse momento está a se proceder com o processo de rescisão de contratos.
Município sem energia eléctrica
Quanto à energia eléctrica, o administrador reconheceu haver ainda muitos desafios. Neste momento, frisou, o município sobrevive de fontes de energia por via de grupos de geradores, uma realidade que tenciona melhorar dentro em breve.
Concernente à água, anunciou estar em funcionamento, de forma experimental, um projecto de abastecimento que deverá servir um universo de dez mil habitantes dos 20 mil que o município alberga. Monumento já está na forja Por outro lado, Aguiar Kutumba deu a conhecer que o Memorial em memória aos heróis da Baixa de Cassanje poderá ser construído dentro de pouco tempo.
Conforme explicou, já foram feitos os estudos do projecto para que, efectivamente, dentro de pouco tempo, venha a ser construído. “Vamos honrar a memória dos heróis. Aliás, essa é uma das promessas do saudoso Presidente Agostinho Neto e vamos dentro de pouco tempo edificar. Portanto, de maneira geral, estamos trabalhando para dar dignidade à Baixa de Cassanje”, concluiu.