Inspirada na trajectória de Agostinho André Mendes de Carvalho, mais conhecido pelo pseudónimo de Uanhenga Xitu, o Cemitério Camussuami, em Icolo e Bengo, dispõe de uma praça na qual os visitantes a “viajam” pelos acontecimentos mais marcantes da história de Angola, ocorridos entre 1590 e 1975. Os seus protagonistas, como líderes de revoltas e os integrantes do Processo de 50, também estão imortalizados no local
Antes mesmo de o portão abrir, a imagem de uma campa de mármore, de cor preta, rodeada por várias estrelas, com um busto dourado por cima, anuncia a quem chega ao Cemitério Camussuami, na pequena vila de Calomboloca, em Catete, que aí jaze os restos mortais de um dos mais nobres e históricos fi- lhos de Angola.
Cerca de dez metros percorridos no interior do recinto, após transpor o portão totalmente descoberto, uma pequena placa de mármore, igualmente preta, centralizada em direção à campa, transmite um recado do nacionalista Agostinho André Mendes de Carvalho, para África e o Mundo: “A aposta na democracia vai nos sempre obrigar a pôr os nossos lugares ao julgamento dos povos”.
Uanhenga Xitu, como era mais conhecido, proferiu essas palavras num culto especial da Igreja Metodista Unida, congregação religiosa da qual pertenceu e manteve um vínculo até emitir o seu último suspiro.
Bem atrás da majestosa campa, enfeitada com vários bouquets de flores artificiais brancas, está um imponente cajueiro, cujos troncos ajudam a tornar o local mais fresco, em dias quentes, nesta terra de sol abrasador.
Ao arredor da majestosa campa, estão sete estrelas, com algumas características semelhantes às do Passeio da Fama de Hollywood, nos EUA, com a particularidade de cada uma delas descrever o percurso de Uanhenga Xitu.
Trata-se de um menino da pequena aldeia de Calomboloca, que se fez homem “honrado”, servindo o seu país como enfermeiro, embaixador, ministro, governador, escritor, deputado e político.
O local, segundo conta André Gaspar Mendes de Carvalho “Miau”, foi escolhido pelo seu próprio pai, ainda em vida, por fazer questão de ter os seus restos mor- tais a repousar neste pedaço de terra de onde veio ao mundo e viveu com os seus pais.
Até o espaço onde foi feita a cova foi especificamente escolhido por ele e, para não haver dúvidas, indicou-o a alguns dos seus filhos. “O meu pai fez questão de ser enterrado na sua terra natal.
E ele próprio escolheu o local onde devia ser enterrado, em Camussuami”, frisou, o almirante Miau, em declarações ao jornal OPAÍS. Miau recorda que, após terem sepultado o patriarca da sua família, decidiram marcar os primeiros passos com vista à construção de um jazigo, a fim de que pudessem, sempre que necessário, cumprir com a função social de “visitar os mortos”.
Pois, por não ser um campo santo municipal, apesar de existirem algumas campas dispersas nas redondezas, para a sepultura de Uanhenga Xitu permanecer intacta, surgiu a necessidade de a família instalar algum sistema de guarnição.
Na altura, um dos seus sobrinhos, cujo nome não precisou, prontificou-se em cuidar de todos os procedimentos, apelando aos demais membros da família para não se preocuparem, uma vez que arcaria até com as despesas financeiras.
O sobrinho arregaçou as mangas e, em colaboração com algumas pessoas próximas, elaboraram vários desenhos daquilo que poderia ser feito no espaço e passaram para a execução. “Eu sempre pensei que fosse um túmulo, mas não.
Desenharam praticamente uma praça e, como ele é que foi custeando a feitura daquilo, nós acabamos por aceitar”, frisou. Assim que as obras ficaram concluídas, com inclusive uma estrada asfaltada que sai da Estrada Nacional (EN) 230 até ao cemitério, o artífice entregou o monumento à família, cabendo aos demais membros da família a missão de dar alguma utilidade ao recinto.
Dentre os vários monumentos que lá se encontram, um dos destaques recai para sete ou oito esculturas de vários metros de altura, de mãos que se pegam, em toda a praça.
Alguns terminam com punho fechado, outros com tocha e um único com os dois dedos em pé, representando o V de vitória Estas esculturas representam, segundo o nosso interlocutor, a unidade dos diferentes povos que contribuíram na luta pela independência, ou seja, uns dão as mãos aos outros no sentido de os fazer crescer e poder-se atingir o objectivo comum.
“Uns, numa determinada fase, cá em baixo, foram realizando as suas actividades e só puderam ter sucesso porque outros que estavam um pouco mais acima lhes deram as mãos. Sozinhos não, mas juntos devemos caminhar”, salientou.
A escultura com os dedos simbolizando V (de vitória) está junto a outro monumento, em que aparece um jovem com as mãos ao ar, numa delas carregando um livro, festejando a proclamação da independência. Para esclarecer os visitantes sobre como era administra tivamente dirigido este território antes de chegada dos portugueses, neste mesmo monumento foi fixada uma placa intitulada “Memória aos Povos de Angola”.
Nela, faz-se uma incursão sobre alguns dos principais reinos e os nomes dos seus soberanos na época, designadamente Reino do Congo (Nimi-a-Lukeni “D. Álvaro I” e Vita ya Nkanga “D. António I”), Reino de Kissanje (Kassanje), Reino Kwanyama (Mandume ya Ndemufayo), Reino Lunda Tshokwe “Cókwe” (Muatshisengue), Reino da Matamba (Nzinga Mbandi), Reino do Mbalundu “Bailundo” (Katiavala, Ekuikui II e Mutu Ya Kevela) e, por fim, Reino do Ndongo (Ngola Kiluanje kia Samba).
O senhor Domingos Dala, que trabalha como segurança do cemitério desde 2019, serviu de guia para a nossa equipa de reportagem na manhã de domingo último. Contou que o local é calmo e que recebe frequentemente visita de familiares do malogrado nacionalista e não só. “Além deste monumento, há aí outro”, disparou Domingos Dala, apontando para outro que se encontra na lateral esquerda do cemitério, nas proximidades de uma pequena capela cuja estrutura se assemelha com alguns dos tempos da Igreja Metodista Unida.
O que, a partida, pode se revestir de elevado simbolismo para os fiéis desta congregação religiosa. “O meu pai estudou na Igreja Metodista e foi educado com base nos princípios e valores desta religião. O meu pai era crente. Era um indivíduo que semanalmente ia ao culto. E, naturalmente, num cemitério o factor religioso é uma presença”, explicou o almirante Miau.
Memória de Tarrafal
O monumento a que Domingos Dala fez referência retrata a história dos nacionalistas angolanos que foram desterrados na cadeia de Tarrafal, presos por despachos à revelia dos tribunais. Nele aparecem imagens de indivíduos detidos, entre os quais uma mulher, e outros em liberdade, protestando.
Em baixo está grafado o nome de 23 integrantes deste caso que ficou mundialmente conhecido como Processo 50. Ao lado, à semelhança do anterior monumento, está uma placa que narra resumidamente a história dos diversos julgamentos deste caso, com o seguinte título: “Memória ao Povo Angolano… Guerreiros da resistência colonial”.
Para facilitar os pesquisadores e não só, aparecem grafados o tribunal que julgou o caso, os números inicial e final do processo, bem como o mês em que foi julgado. Na lista do primeiro julgamento realizado no Tribunal Militar Territorial em Dezembro de 1960, cujo número inicial do processo era 22/59 e no final foi alterado para processo n.º 41/60, o nome de Agostinho André Mendes de Carvalho aparece em primeiro e em maior destaque.
Os diversos advogados que intervieram no processo em defesa de tais nacionalistas não foram esquecidos, sendo que o nome de Maria do Carmo Medina é o que mais se sobressai, em função do seu elevado contributo em prol desta nobre causa.
Génese da luta pela emancipação dos povos
Atrás deste monumento está um outro. Aquele que, em bom rigor, deve marcar o início da “viagem” sobre a história de Angola, para aqueles que se predispõem em fazê-lo neste local. Por retratar a génese da luta que os povos que habitaram neste território travaram de 1590 até 1975. Este percurso é recriado através de uma escultura que narra uma guerra.
Os visitantes podem ver diversas pessoas a combater, umas sendo asfixiadas ao pescoço, alvejadas com lanças, mortas e outras aos prantos. Contrariamente ao primeiro e segundo monumento, este é dedicado aos “guerreiros e mártires da resistência colonial”.
Para facilitar a compreensão dos visitantes, há um letreiro que destaca alguns dos momentos mais tenebrosos da história deste país, com as respectivas datas e os nomes das entidades que as lideraram.
Os promotores desta “Praça ou Cemitério Monumento Uanhenga Xitu” realçam que tudo começou com a Revolva da Coligação Kissama Dembos Matamba e Kongo, entre os anos 1590/1600. Época que está regista na nossa história como sendo a de luta contra a ocupação colonial.
No entanto, procurou-se valorizar também as acções de resistência a ocupação colonial ocorridas em outras localidades, como a Revolta da Coligação dos Luvales e Planalto Central, entre 1625 a 1656. Vita ya Nkanga é a primeira personalidade que aparece imortalizado nesta lista por liderar a Batalha D´Ambuila, em 1665, sem deixar de lado o facto de mais tarde, após o seu baptismo, ter adotado o nome de Dom António I.
O mesmo privilégio não teve a pessoa que liderou a revolta do Humbe, em 1897/1898, que se caracterizou como uma luta contra 1915 a 1917, designada por Batalha de Mongua e Mufilo. Daí, a lista prossegue enumerando as diversas acções de revoltas que ficaram registadas como marcos dos diversos factos históricos que ocorreram neste vasto território, de Cabinda ao Cunene e do Lobito ao Luau.
“Aí atrás está a nossa casa”, disparou, Domingos Dala, indicando para um espaço que pode ter múltipla utilidade para os visitantes. Deste modo, o segurança que fazia papel de guia interrompeu a nossa leitura sobre tais factos históricos e os seus líderes.
O nosso interlocutor explicou que apesar de local não ter energia eléctrica, de noite fica totalmente iluminado por meio de um sistema de energia solar. Apesar de o recinto ser ter algumas placas sinalizando números de espaços para sepultamento. Além da campa de Uanhenga Xitu, há apenas mais duas, do seu primo Luís Adriano Félix Bagorro e da sua irmã Suzana André Gaspar, ambos falecidos em 2017, com 95 e 86 anos respectivamente.
Desejo da viúva dona Maria
“A Dona Maria diz que quando morrer deverá ser sepultada aqui, ao lado do seu marido”, afirmou Domingos Dala, indicando um local, junto ao Cajueiro, por detrás da campa onde jazem os restos mortais de Uanhenga Xitu. Segundo conta, antigamente ela aparecia com frequência ao local para prestar homenagem ao seu falecido companheiro, acompanhada por um dos seus descendentes. Porém, por motivos de saúde, deixou de o fazer com a devida regularidade, mas não há mês que não aparece um membro da família.
O local também tem servido de motivo de atracção para pessoas de diferentes estratos sociais que pretendem não só render homenagem àquele que foi um dos maiores expoentes da literatura angolana, como aprimorar os seus conhecimentos sobre a história de Angola em diferentes períodos, a contar de 1590 até à data da proclamação da Independência Nacional, a 11 de Novembro de 1975.
“Há escolas que querem visitar e outras que já visitaram. Há militares que já visitaram, precisamente os da Força Aérea, e a Academia de Letras de Angola”, precisou o almirante Miau. No seu ponto de vista, o desejo do seu pai ser enterrado aí foi uma forma de incentivar as pessoas a investirem nas localidades onde nasceram.
“Tem muitos filhos que deram o melhor de si para o engrandecimento de Angola, mas na terra onde nasceram não tem nada. Eu acho que o meu pai, quando disse que quer ser enterrado na sua terra natal, foi uma forma de atrair as pessoas para a região”.
Todas as obras de Uanhenga Xitu podem ser reeditadas até final do ano
André Mendes de Carvalho “Miau” revelou que existe a pretensão de todas as obras de Uanhenga Xitu virem a ser reeditadas até final deste ano pelas editoras Mayamba e Ondaka, se as condições financeiras o permitirem
Garantiu que as editoras estão a trabalhar para a reedição de algumas delas. Daí que, por ocasião das festividades do Centenário de nascimento deste escritor, a editora Ondaka relançou a obra “O Ministro”, na União dos Escritores Angolanos (UEA). “Convém comprar o livro, reeditado. Está muito bom. Mesmo para aqueles que já leram, vai ser uma novidade.
Como se estivessem a ler pela primeira vez”, detalhou. A medida se deve ao facto de, apesar de já terem sido publicadas várias reedições das referidas obras, há muita gente que procura pelas mesmas e as livrarias já não as têm à venda. “Há uma grande procura e não há livros, daí que a Ondaka, praticamente sozinha, arriscou, fez a reedição e imprimiu mais de mil livros.
Está a vender bem”, frisou. Salientou que muita gente comprou o livro, apesar de estar a ser vendido a 12 mil kwanzas, o que pode ser encarado como um sinal de que as pessoas estão satisfeitas com as obras. Exaltando a qualidade das obras do seu progenitor, Miau afirmou que todas são muito boas, embora cada leitor tenha a sua preferência.
Instado a fazer um top três das obras de Uanhenga Xitu, o almirante Miau começou por destacar o livro “Manana”, por ser muito cultural. Embora reconheça que o livro “O Ministro” era aquele que o autor, seu pai, mas apreciava, por congregar várias partes significativa, isto é, “um livro político, com muito humor, assim como a obra O Mestre Tamoda, e cultural”.
Explicou que o ministro, por ser uma figura política, tem a sua essência neste campo. Razão pela qual, segundo Miau, após concluir a obra, o seu autor levou vários anos para a publicar. Teve de analisar por diversas vezes como seria recebido pelos leitores e, apesar de todo o cuidado que teve, ainda assim criou bastante polémica aquando do seu lançamento. Em terceiro lugar, colocou as obras “Mestre Tamoda” ou “Os Discursos de Mestre Tamoda”, por serem das obras que tiveram grande impacto na época do seu lançamento.
Nacionalista terá Casa-Museu
A residência de Uanhenga Xitu, em Calomboloca, vai ser transformada em Casa-Museu, com vista a preservar o seu legado e a contribuir na formação das populações do município de Icolo e Bengo e não só.
Engrácia de Almeida, uma das senhoras que trata da limpeza da casa, conta que quando foi contactada para o efeito, não hesitou e até hoje continua a fazê-lo com muito carinho e dedicação. Tanto para si, como para a maioria dos habitantes desta zona, Uanhenga Xitu era um filho da terra muito amado, pois, apesar do seu vasto curriculum profissional, tratava todos cordialmente.
Recorda que as pessoas o admiravam pela sua postura vertical que sempre teve no campo profissional e social. Engrácia de Almeida recorda, com nostalgia, as visitas que o seu antigo patrão fazia à casa todas as semanas.
“Todas as vezes que ele vinha aqui nós já o recebíamos. Tinha um sobrinho que era o seu motorista, nosso amigo também, quando pediram alguém para trabalhar na casa contactou-me”, frisou. Relembrou, de seguida, com uma certa nostalgia, que “ele [Uanhenga Xitu] vinha visitar à casa todas as semanas, independentemente do dia”.
Engrácia recorda que por vezes ele era abordado por pessoas que almejavam também ser escritor, bem como por pessoas que precisavam de conselhos. A jovem conta que a sua morte acabou por emperrar muitos planos que ele pretendia desenvolver na casa em benefício da população local. “Ele dava-se bem com todos.
Quando lhe viam aqui era avô Mendes de todos os lados, não passava desapercebido. Falava connosco sobre coisas do seu tempo, dos vários desafios que passaram até à proclamação da independência”, contou.
A Fundação Uanhenga Xitu foi criada para perpetuar os feitos do seu patrono, mas está, ainda, muito atrasada no cumprimento desta tarefa, revelou André Mendes de Carvalho, salientando que ela existe juridicamente e vai realizando acções esporádicas, mas ainda não está desenvolvida. Não elegeu os seus corpos gerentes.
Fundação abraçada por familiares e amigos
Termina, este fim-desemana, as festividades que têm sido realizadas por os familiares, amigos e companheiros de luta de Uanhenga Xitu, com o objectivo de honrar a sua memória, por ocasião do seu centenário natalício.
Segundo André Mendes de Carvalho, o coordenador das actividades, as mesmas resultam de iniciativas de organizações como a UEA, o Centro de Estudos Africanos da Universidade Católica de Angola, a Academia de Letras de Angola, a livraria Ondaka e o partido MPLA, do qual o seu pai foi militante e um dos dirigentes.
A UEA promoveu, durante o mês de Agosto, quatro edições do projecto Maka à Quartafeira, tendo as obras de Uanhenga Xitu no centro das análises e discussões. Já o Centro de Estudos Africanos da Universidade Católica de Angola vai realizar, em Setembro, uma mesa-redonda, enquanto a Academia de Letras de Angola promoveu dois debates, via Zoon, em torno das obras, com prelectores brasileiro e português.
O partido no poder, MPLA, vai brindar os moradores de Icolo e Bengo com uma actividade músico-cultural, na aldeia de Calomboloca, em homenagem a este filho desta terra. A Fundação Uanhenga Xitu limitou-se a compilar todas as actividades num programa para que não houvesse atropelos.
“Ao MPLA, partido em que o meu pai foi militante e dirigente, nós apresentamos aquilo que eram as nossas ideias, para que eles viessem e acrescentassem. Neste caso, resolveram fazer um programa à parte, que acaba por ser uma mistura”, frisou.
Além da actividade músicocultural, alguns militantes do partido no poder, familiares e amigos participaram na romaria que a Fundação realizou ontem, quinta-feira, ao cemitério Camussuami. Amanhã, sábado, vai ser realizado o culto religioso na Igreja Metodista de Calomboloca, também em homenagem a este filho desta terra.