O músico e compositor António Miguel Manuel Francisco “Calabeto”, o Kota Bwe, relembra em entrevista a OPAÍS a sua carreira e garante que “as lembranças que tem dos 60 anos de carreira não são boas, dada a situação ocorrida nos anos 80, no Top dos Mais Queridos, onde foi sancionado pela Cultura, por ter chegado tarde no evento.
que homenageou o antigo presidente da República, o falecido José Eduardo dos Santos”
Prestes a entrar em estúdio, para gravar mais um disco, Kota Bwe, com 60 anos de carreira activa, que balanço faz deste percurso?
Obrigado pela oportunidade.
Devo dizer que neste momento que lhe concedo esta entrevista estou realmente com 60 anos de carreira.
O balanço que faço, isto de acordo com a questão que me coloca, é de uma certa positividade, porque ao longo desses anos fui primando por um trabalho positivo para agradar as pessoas.
Tive sorte de as pessoas gostarem do trabalho que faço, do trabalho que apresento e sinto-me feliz.
Entretanto, o balanço é extremamente positivo.
Como tem estado a gerir estes anos de trabalho?
Estes 60 anos de carreira tenho estado a geri-lo muito bem. Graças a Deus tenho tido muitas actividades.
Tanto é que teve uma em Cacuaco a semana passada e depois no Muzongué da Tradição. E estamos sempre em forma, sempre a trabalhar.
É isso que todo o artista espera.
Entretanto, nós tivemos o Covid -19, que amputou de uma certa maneira as nossas actividades.
Deixamos de trabalhar por um período de dois anos e agora recomeçamos, graças a Deus está tudo a correr bem.
Eu tenho estado a fazer uma gestão muito boa da minha carreira, enquanto ainda puder trabalhar.
Quando é que os primeiros passos na música e qual foi a primeira canção que interpretou?
O meu contacto com a música deuse em 1956 ao interpretar canções religiosas em companhia das minhas irmãs no Rangel, quando tinha 11 anos de idade.
Em 1959, formei um pequeno agrupamento, denominei a Turma do Rio de Janeiro, que foi actuando pelos bairros de Luanda.
Anos depois fui convidado pelo irmão para integrar o Agrupamento Muzangola, do qual fui vocalista Principal.
Mais tarde, fui chamado para cumprir o serviço militar onde, durante o meu percurso, abrilhantei farras e jantares da tropa portuguesa.
Com a extinção do Conjunto Águias Reais, em 1974, do qual fui também o vocalista, passei a integrar a Secção de Música da J. M.P.L.A, fazendo música de intervenção política.
De 1978, até à data presente, passei a seguir a carreira a solo.
Como está em termos de produção discográfica?
Em termos de produção discográfica, devo informá-lo que neste momento já estou preparado para entrar em estúdio.
Estou à espera que o DJ Mania termine o trabalho que já está em suas mãos.
São labores de alguns colegas e, logo que ele termine, entrarei em estúdio para começar a produzir o próximo disco.
Qual será o título do disco?
Ainda não pensei no título, mas não será difícil, porque é uma questão de nós escolhermos uma das músicas e pesquisarmos.
Daí teremos o título para o álbum.
Nessa altura, só vou ainda preparar seis faixas musicais.
Aliás, já estão escolhidas. Vamos ver como vão acotecer as coisas e se o público vai gostar, conforme tem gostado das minhas canções.
Que participações espera ter neste seu novo disco?
Neste disco, vou contar com a prata da casa. Sabe que se eu for a escolher estrangeiros, a minha música vai perder aquela genuinidade, aquela forma angolana de se interpretar as canções, aquela forma que os angolanos gostam.
Neste momento, ainda não terei elegido alguém para participar, porque só depois é que me vou aconselhar com algumas pessoas, para ver a quem é que devo escolher para participar no meu disco.
Quantos discos tem lançados no mercado fonográfico?
No mercado tenho lançado três discos. Digo infelizmente, porque ao longo destes anos todos de carreira fui participando em agrupamentos musicais.
Fui vocalista de vários agrupamentos musicais, tais como Kisselenguenha, Aguias Reais, Os Kiezos, o Muzangola e, por fim, o agrupamento musical Kissanguela.
Entretanto, fui trabalhando bastante com estes agrupamentos todos e as minhas músicas deixaram de ser minhas, e passaram a ser desses agrupamentos.
Razão pela qual é que só tenho três discos no mercado, embora tenha já 60 anos de carreira.
Tem três álbuns no mercado. Já reeditou algum deles?
Tenho um que foi produzido pelo Poeira no Quintal, da Rádio Nacional de Angola, intitula-se “Memórias de Calabeto”.
O segundo, “O Gingar da Bessangana” e o terceiro “Kamba Dyami”.
Há um outro álbum onde eu também participo com a Tunicha Miranda e cantora jovem Malú. Este álbum tem como título “Geração do Semba” Vol. 2.
Não reeditei nenhum deles, nem mesmo o “Kamba Dyami”.
Tenho estado a explorar as músicas que se encontram no disco e as que fazem parte do meu reportório.
Para as actvidades que tenho feito todas as semanas, as músicas saem do disco “Kamba Dyami”.
Ainda não foi reeditado.
Foi o álbum que mais vendeu em 2009…
Foi, sim senhor! “O Gingar da Bessangana” também vendi bem, mas o “Kamba Dyami” foi o que mais vendi.
Nessa altura, até não me encontrava cá.
As pessoas e a família é que trabalharam. Eu encontrava-me na África do Sul a fazer uma cirurgia à hérnia discal.
Já agora, como pensa que os fãs encaram a chegada deste novo álbum?
A população, sobretudo os fãs, estão com uma expectativa muito grande, porque têm estado a perguntar-me “Calabeto, para quando o novo álbum? Calabeto estamos à espera! E, eu mantenho-os calmos, mantenho-os à espera, até que entre em estúdio para produzir o novo álbum.
Entretanto, o desejo dos fãs é grande, e eu vou trabalhar para não defraudar.
Falando sobre a Covid- 19, tem alguma canção inspirada nesta pandemia?
Não. Não me inspirei durante este período de confinamento, porque foi um momento muito triste para a vida dos angolanos e a vida no mundo.
Não me inspirei para fazer canção. Penso que os compositores escrevem quando estão bemdispostos, quando estão inspirados.
O momento da Covid-19 foi extremamente desagradável, que nem tive tempo sequer para segurar numa esferográfica e escrever alguma canção.
Quais têm sido os momentos de inspiração para compor? Os meus momentos de inspiração variam.
Dependem quando me tocarem. Quando há uma inspiração, eu agarro na caneta e escrevo. Seja a meia-noite, meiodia, 13 ou 14 horas.
É variável. A qualquer momento que me inspiro idealizo uma letra, porque a maior parte das minhas canções são todas elas feitas por ficção.
Escrevo e contínuo com a bola para frente.
Esteve durante algum tempo ausente das actividades culturais.
Qual foi a razão das ausências?
A ausência deveu-se a uma cirurgia a que fui submetido à coluna (uma hérnia discal), na África do Sul e graças a Deus correu muito bem.
Tive uma excelente recuperação e em pouco tempo retomei aos palcos com espectáculos em todas as semanas. Em termos de espectáculos, graças a Deus, estamos bem, porque temos estado a trabalhar.
Desde que terminou o Covid cá em Angola, nós temos estado a trabalhar com muita força. Está tudo muito bem neste ponto.
Devo recordar que um dos espectáculos foi realizado no Royal Plaza, pelo Grupo Nova Energia, em alusão aos meus 55 anos de carreira, ao que se seguiram outros.
“Não me inspirei durante o período de confinamento, porque foi um momento triste na vida dos angolanos”
Quais são as melhores lembranças que tem dessa trajectória de 60 anos?
As lembranças que tenho são boas, mas como sabe nem tudo é um “mar de rosas”.
Nos anos 80, tive um problema: cheguei tarde num espectáculo onde se ia homenagear o ex-Presidente, o engenheiro José Eduardo dos Santos.
Cheguei depois dele.
A Cultura sancionoume e proibiram-me de cantar durante seis meses. Portanto, é só para dizer que a minha memória não consegue apagar isto. Afectou-me bastante e pôs-me muito triste.
O povo angolano sabe.
Eu não sabia, cheguei depois do Presidente da República já lá estar presente, e a partir daí já não me deixaram entrar. Isto ficou – me muito caro, numa altura em que estava a caminhar bem.
Eu era o vencedor do Top dos Mais Queridos naquela altura, com a música “Nguami Maka”. Fui proibido de pisar nos palcos durante seis meses.
Retiraram – me tudo e passaram – me para o segundo lugar.
Foi muito triste, mas graças a Deus dei a volta por cima. Tirando este mal, o resto tem estado a correm tudo bem.
Isso ocorreu nos anos 80, onde tinha sido o vencedor do Top dos Mais Queridos?
Foi, sim senhor, nos anos 80.
Naquela altura, ia sendo o vencedor do Top dos Mis Queridos.
Mas, como estava sancionado, não obstante às incursões que foram feitas pelos camaradas, pelo director-geral da Rádio Nacional de Angola, esqueço-me do seu nome, assim como a directora Maria Luísa Fançony, da Rádio LAC, no sentido de suspender a sanção, não concordaram.
Passaram-me de primeiro para o segundo lugar e proibido de receber o Prémio em palco. Portanto, estou aqui.
Tenho estado a trabalhar. Só que a minha memória não consegue apagar este comportamento que tiveram contra a minha pessoa e contra a minha carreira.
Quais foram os momentos mais relevantes da sua carreira?
Os momentos relevantes da minha carreira, eu acho que fica difícil enumerá-los, porque foram todos minimamente razoáveis.
Mas, o mais relevante, conforme você pergunta, devo dizer que foi na Guiné Conacri. Isso porque, sendo vocalista do Kissanguela, da ajuda a JMPLA, o malogrado Presidente Dr, António Agostinho Neto gostava muito de nós, e sempre que viajasse nós fazíamos parte da delegação presidencial.
E como foram lá as coisas?
Entretanto, estando nós na Guiné Conacri, eu, graças a Deus, e os colegas fizemos ali um grande show, onde conheci pela primeira vez, ao vivo, próximo de mim, a malograda cantora sul-africana, Miriam Makeba.
Conheci ainda o malogrado Fidel Castro, o malogrado Sékou Touré, enfim.
São todos malogrados e às vezes custame falar disso, mas tenho que o fazer porque a situação assim me obriga.
Você coloca-me esta pergunta e eu tenho que responder.
Quando acabei de cantar o Presidente mandou-me chamar. Sentei-me com ele e os outros colegas, conversamos muito e agradou-me muito.
Encorajou-me a continuar com a carreira e depois mandoume dormir. E eu fui dormir.
Tem estado a participar em alguns projectos artísticos da nova geração de músicos. Que avaliação faz deste intercâmbio?
O comentário que me apraz fazer sobre os projectos discográficos onde eu participo dos músicos mais jovens, é que eles são do meu agrado.
Tenho feito este trabalho com bastante alegria, porque os jovens convidam-me para participar nas suas canções, nos seus discos e é com muita alegria que o faço.
É assim que participei no Legalize, no Manix, há um outro jovem cujo nome não me lembro. Participei no Matias Damásio e, ultimamente, no C4 Pedro.
No entanto, tenho feito este trabalho com vontade no coração e só me resta dizer que eles devem continuar a trabalhar, para que tudo dê certo nas suas e nossas vidas.
O que aconselharia aos jovens que tentam enveredar pela arte musical?
Aconselho-os a inscreverem-se primeiro na UNAC, que é a União Nacional dos Artistas e Compositores.
Vão beneficiar de um cartão de membro, para serem sócios e a partir daí gravarem as canções e entregarem à UNAC para posteriormente continuarem a fazer os seus trabalhos artísticos.
Este é o meu conselho.
Raul foi um papagaio amigo e divertido que me recebeu várias vezes em sua casa. O inspirou em algumas composições?
As lembranças que tenho do Raul é que era um papagaio que eu tinha aqui em casa.
A minha falecida esposa, que a terra lhe seja leve, sempre quis ter um papagaio em casa. Conseguimos tê-lo, ela ficou bastante satisfeita, a quem se deu o nome de Raul.
O Raul sentia-se satisfeito. Brincava com a minha mulher, mas depois foi ingrato.
A minha mulher deixoulhe livre um bocadito, o Raul fugiu, desapareceu e até hoje nunca mais o vimos.
Que recordações tem do lendário Conjunto Kissanguela?
Tenho muito boas recordações.
O Kissanguela foi, para mim, uma escola e aprendi muitas coisas.