Lá se vão os tempos em que a Rebita ou Massemba fazia o deleite das multidões em vários pontos do país e do estrangeiro, pelas habilidades e as largas passadas dos seus executantes durante as exibições.
Este estilo de dança e música que, ao contrário das outras, é representada ao vivo, teve alguma popularidade durante o período colonial, tendo caído em desuso ao longo do século XX, desaparecendo posteriormente em 1975, após a independência de Angola.
Pela sua especificidade, exigência e entrega, a Rebita impôs-se, durante longos anos, às elites do julgo colonial, tornando-se numa das danças de salão mais referenciadas e preferidas pela população não só portuguesa, assim como a angolana.
Dança popular de umbigada, executada por casais de dançarinos, a Rebita já foi considerada como uma das mais importantes danças e cantares populares em Angola, tendo grande impacto social, na primeira metade do Século XX, e nas décadas de 1980 e 1990, tendo representado o país em diferentes palcos internacionais.
Hoje, devido à falta de atenção e de apoio que lhe é negada, este género de dança e canto ficou restringido apenas à província de Luanda, e é mantido por único grupo sobrevivente, criado em 1954, os Novatos da Ilha, que apesar das peripécias por que tem passado, vai resistindo às intempéries, assumindo-se como defensor desta herança ancestral.
Não obstante este grupo ser um caso paradigmático de luta contra a crise de identidade cultural, principalmente em Luanda, a sua resistência encontra limites materiais, os mesmos limites impostos pela aposta do Executivo nos sectores que protegem o status quo político: a defesa e a segurança, em detrimento do sector da Educação e da Cultura.
Não obstante ter sido declara – da Património Cultural Imaterial Nacional por Decreto Executivo n.º 108/19 de 11 de Abril, com o objectivo de a preservar para as gerações vindouras, pouco ou na – da está a ser feito neste sentido.
A cada dia que passa, há sinais que evidenciam o seu desaparecimento, a qualquer momento, caso não se tomem medidas realistas para a retirar da crise em que se encontra.
A verdade é que apesar do referido decreto orientar as entidades competentes da Administração local do Estado a colaborar com os agentes culturais e os cidadãos, no que ao desenvolvimento de acções de revitalização e conservação da Rebita se refere, nada se tem verificado e a situação agrava-se cada vez mais.
A continuar assim, dizem algumas vozes do saber, nem mesmo a elevação deste género de dança e música a Património Cultural Imaterial o salvará da extinção, caso não haja, com urgência, o fomento do uso da língua kimbundu e das ou – tras cinco grandes líguas africanas de Angola junto das crianças.
Da análise do fenómeno de quase-extinção da Rebita ou Massemba, chega-se à necessidade de rever a Ontologia da Angolanidade.
Um trabalho filosófico para os intelectuais e mulheres e homens de Cultura. Com objectivo de resgatar a memória dos cavalheiros e das damas que ainda mantêm presente a Massemba, desde a época em que passaram a frequentar os salões, realizamos uma ronda por algumas artérias de Luanda, tendo como ponto de partida a Ilha de Luanda, o Centro da Rebita, e prosseguimos além.
Novatos da Ilha os únicos sobreviventes
Na sede do grupo, fomos recebidos por duas entidades ligadas à direcção, Manuel Domingos “Lito”, Comandante, e Horácio Dá Mesquita, Presidente do núcleo.
Começamos pelo comandante, e a primeira questão incidiu sobretudo no estado actual do grupo. Quanto pudemos saber do comandante Lito, o grupo já teve momentos áureos em termos de representatividade intensa dentro e fora do país.
Mas, actualmente, está a passar a maior crise de todos os tempos. Não recebe convites para espetáculos e, para se manter firme, vai realizando os seus ensaios todas às quartas-feiras, de cada semana, no período da tarde após o cumprimento da sua jornada laboral.
O grupo sobrevive com os parcos recursos que vai adquirindo com o aluguer do seu espaço com actividades recreativas e, apesar de tudo, nenhum integrante seu tem manifestado a intenção de abandonar a Rebita, um compromisso assumi – do desde o princípio.
Manuel Domingos “Lito”, que ingressou no grupo Novatos da Ilha em 1984, afirmou a nossa reportagem que, apesar do actual momento crítico que atravessa, a formação continua preparada para qualquer intervenção onde for chamado.
Os Novatos da Ilha que, por sinal, já vão na terceira geração de bailarinos, um seguimento que além de reforçar o grupo é também rejuvenescedor, continua apostado na preservação da referida arte, honrando o nome e o compromisso que tem assumido com a sociedade e não só, para preservar o referido património.
“Já vamos na terceira geração de bailarinos e todos eles cheios de energia. A maior parte dos integrantes do Novatos da Ilha é descendente de antigos membros deste grupo. Filhos, netos e tantos outros. Instruímo-los a todos”, disse Lito Domingos.
O comandante desafiou as autoridades administrativas e distintas instituições e agências promotoras de eventos culturais do país, sobre tudo o Ministério da Cultura, a não se restringirem da Rebita, mas, incluíla nas suas agendas, de modo a protegêla como património declarado para o conhecimento das gerações vindouras.
Manuel Domingos sublinhou, que a salvaguarda deste estilo de dança e música não se pode resumir apenas no seu reconhecimento como Património Cultural Imaterial Nacional, sem que haja, para o efeito, vontade de assumir a sua protecção, preservação e valori – zação.
Extinção dos antigos grupos
Horácio Dá Mesquita recordou que a maior parte dos grupos de Rebita começou a desaparecer logo após a independência, com o intensificar da guerra.
“A guerra destrói tudo, destrói o meio social, provoca migrações, deslocações, aflições, enfim. Desmembrou não só a Massemba, mas também outras expressões musicais, que ficaram muito reduzidas”, sublinhou o responsável.
Focalizado nas acções em torno da Rebita, Horácio Dá Mesquita admitiu que a maior dificuldade da agremiação reside no facto de estarem voltados ao ostracismo, uma vez que os eventos para o turismo e o entretenimento são outras tendências.
“Nós temos uma identidade, só que depois foi adulterada com as ocupações e exércitos que impõem as suas religiões.
Hoje temos uma África toda muçulmana que era bantu. Os faraós eram negros, africanos.Hoje, já não são, são árabes, não são americanos”, desabafou.
Convidado a definir a designação Rebita, Mesquita recordou que a terminologia portuguesa Massemba surge do Kimbundu, que significa “várias umbigadas”, o plural de Semba (umbigada).
Prosseguindo a nossa reportagem, encontramos o docente universitário, José Luís Mendonça. Abordado quanto à sua visão em termos de revitalização da Massemba, considerou que esta só pode ser revitalizada e preservada pelos cidadãos, assim como pelas famílias, uma vez que o Estado pouco pode fazer, ao menos que retome o postulado constitucional do ensino e valorização das “demais línguas de Angola”, como preconiza o Artigo 19.º, para além da língua oficial, que é o português.
O também jornalista admitiu que nem mesmo a elevação deste género de dança e música a Património Cultural Imaterial o salvará da extinção, caso não houver, com urgência, o fomento do uso da língua kimbundu e das outras cinco grandes línguas africanas de Angola junto das crianças.
Questionado ainda quanto à presença da Rebita na Literatura e nas Artes, Luís Mendonça adiantou que não podia deixar de estar e, a título de exemplo, referiu-se aoescritor Óscar Ribas, que fez uma descriçã sucinta da Massemba no seu romance Wanga.
“Por termos descurado as nossas tradições linguísticas Bantu, hoje estamos a pagar um preço muito alto”, realçou o interlocutor, destacando os Novatos da Ilha como um caso paradigmático de luta contra a crise de identidade cultural, principalmente na província de Luanda.
Limites impostos
José Luís Mendonça recordou igualmente que, mesmo que os Novatos persistam nesta luta, a sua resistência encontrará sempre limites materiais, os mesmos limites impostos pela aposta do Executivo nos sectores que protegem o status quo político assente: a defesa e a segurança, em detrimento do sector da Educação e da Cultura.
O escritor realçou que não havendo dinheiro suficiente para a Educação e a Cultura (línguas, literatura, etc.), o sonho dos Novatos da Ilha está a esboroar-se e a transformar-se em mais uns grãos de areia das praias da Ilha de Luanda.
“Não basta elevar uma forma ou género cultural a Património Imaterial. O mais importante é termos presente no nosso dia-a-dia essa forma cultural, fazer dela uma espécie de respiração da alma”, realçou Luís Mendonça, apelando para que haja uma melhor repartição do bolo orçamental, para sobrar mais para o sector da Cultura.
Luís Mendonça realça que, da análise do fenómeno de quaseextinção da Rebita ou Massemba, chega-se à necessidade de rever a Ontologia da Angolanidade.
Um trabalho filosófico para os intelectuais e mulheres e homens de Cultura. “É bem provável que haja algum factor determinante do desinteresse pelas línguas das ex-Nações de Angola e, em decorrência destas, de tradições, como a Massemba”, disse o escritor.
Não obstante esses factores, José Luís Mendonça acredita que se trata de uma incongruência adaptativa do projecto colonial de fundação do Estado de Angola à própria imanência do ritmo de vida africano.
“Veja que o Estado de Angola, saído da Conferência de Berlim de 1884 e das conquistas militares do Século XX, foi um projecto inoculado a ferro e fogo na carne dos povos que aqui tinham a sua liberdade político-cultural, baseada na língua local, nos usos e costumes”.
José Luís Mendonça considerou que o projecto colonial está assente fundamentalmente na língua portuguesa, que hoje é já mais uma língua africana, devido ao número de falantes africanos, estando as outras línguas da cultura local praticamente devoradas, num processo de glotofagia, um processo que pode ser revertido.
O grupo
Os Novatos da Ilha é o único grupo de Rebita a nível do país, que resiste às intempéries, graças à firmeza e teimosia dos bailarinos que, apesar da idade, mantém-na imortalizada.
O grupo, que já vai na sua III geração, foi fundado em 1954, na Ilha de Luanda, e tem-se pautado na preservação e divulgação deste estilo de dança e valores herdados dos antepassados, transmitindo-os à nova geração de bailarinos que se vai inserindo no género.
Escolas precisam-se
Por sua vez, o presidente da agremiação, Horácio Dá Mesquita, salientou que a revitalização da Rebita passa necessariamente pela criação de mais escolas do género, a partir do Reduto dos Novatos da Ilha, visto que todo o cancioneiro popular está ali representado.
O responsável recordou que o núcleo que dirige não tem capacidade de o fazer, por ser já uma escola por natureza e muito bem referenciada, não obstante ter as suas dificuldades, o que, na sua óptica, a União faz a força.
Trata-se de um procedimento que, na óptica do responsável, a ancestralidade está presente no cântico, nos versos, nos costumes e em todos os processos a eles associados.
No entender de Horácio Dá Mesquita, cabe aos órgãos afectos ao Ministério da Cultura, o Instituto Nacional do Património Cultural, as escolas de Ensino das Artes, da Dança, a manifestarem a esta intenção, uma vez que aí sairão excelentes professores para a criação de mais grupos de dança Rebita.
“Se forem os órgãos afectos ao Ministério da Cultura, como o Instituto Nacional do Património Cultural, as escolas de Ensino das Artes, da Dança, a manifestarem esta intenção e virem ter connosco, nós nos disponibilizamos a formar, e daqui sairão professores para criar mais grupos”, disse.
Ao fazer uma breve incursão no tempo, Horácio Dá Mesquita recordou que no tempo da administração colonial havia 11 grupos de Rebita e, actualmente, existe apenas um, Novatos da Ilha, o último reduto, a última fortaleza.
Recordou que, entre os grupos criados naquela época, figuravam os Feijoeiros, o União Tristeza, o União Elite, entre outros, que passavam pelas ruas com as concertinas às costas, com o estojo de pano feito pelas suas próprias esposas.
“Era normal vermos os integrantes antes das rebitas, os grupos passarem, encontrarem-se para ensaiar e para irem aos seus eventos”.