Após ter realizado uma série de investigações de âmbito cultural, nas províncias do Namibe, Huambo, Cabinda e Uíge, visando recolher aos detalhes informações essenciais para os seus próximos trabalhos, a artista plástica e docente Marisa Kingica prepara um livro retratando a arte rupestre angolana e uma exposição fotográfica e de pintura
O livro, já em fase conclusiva, intitula-se “Rupestrando em Contos e Realidades” e tem o lançamento previsto para o primeiro semestre deste ano, em Luanda, em data ainda por definir.
O volume será distribuído em diferentes províncias do país, em particular as que foram alvo dos referidos estudos e recolha para a referida obra, faltando apenas alguns detalhes de ordem técnica para que o trabalho chegue ao público no memento certo.
As pesquisas, segundo a artista, foram realizadas nas províncias do Namibe, do Huambo, de Cabinda e do Uíge, em museus, estações arqueológicas, cavernas e algumas aldeias, com tradições muito fortes e restritas.
O processo iniciou-se no Museu do Namibe, com a recolha de informações sobre pinturas rupestres e estendeu-se até a estação de Tchitundo-Hulu, morro granítico situado no município de Virei, a 137 km a leste da cidade de Moçâmedes.
O local é conhecido pelas gravuras e pinturas rupestres do Morro Sagrado dos Mucuísses, um dos mais belos conjuntos rupestres da pré-história existentes em Angola, onde abundam representações de animais e desenhos esquematizados.
Tem mais de quatro mil anos e é o ponto de partida das artes rupestres de África. No mesmo museu, e com o auxílio dos anfitriões, a artista disse ter encontrado um acervo diversificado, envolvendo culturas de outras regiões, como a Namíbia, que, apesar de ser uma zona fronteiriça, possui muito material ainda por pesquisar para obter resultados.
A docente considera sua missão investigativa como uma experiência emocionante e complexa, tendo por esta via retido um vasto conhecimento e conseguido comparar a história que tem lido e a que encontrou no museu. “Foi uma experiência muito boa, emocionante e complexa.
Pude reter um vasto conhecimento, permitindo-me fazer uma comparação da história que tenho lido e a que encontrei no museu”, adiantou.
Questionada quanto aos motivos que a levaram às investigações neste domínio, referiu que tudo aconteceu numa altura em que leccionava uma aula de História das Artes, que fazia menção às Pinturas Rupestres de Angola.
Despertando a sua atenção, a jovem professora decidiu lançar-se ao desafio, viajando para a província do Namibe, onde visitou o local e procurou recolher toda a informação para o seu trabalho.
Outros destinos
Além do Namibe, a sua missão estendeu-se às províncias do Huambo e do Uíge, duas localidades cuja intervenção não foi diferente à anterior, resumindo-se também na procura de resultados e soluções para o projecto de recolha de dados para as pinturas rupestres de Angola que se pretende reunir para ilustrar a obra.
No Museu do Planalto Central, por exemplo, depois de uma ampla investigação, a artista apercebeu-se que faltavam algumas obras locais, e em conversa com os técnicos da instituição acabou por ser informada que a maioria do acervo foi levada por colonos portugueses, tendo estes, deixado apenas, bustos de seus antigos governadores.
Prosseguindo a jornada na província mais a norte do país, Cabinda, a jovem investigadora disse ter constatado, no museu local, uma enorme quantidade de peças que retratam toda a extensão cultural daquela província, desde ritos, gastronomia, da economia ao quotidiano, tendo algumas delas servido de referência para o seu trabalho.
Máscaras e utilidade
A intervenção de Marisa foi extensiva às máscaras, com intenção de obter um conhecimento mais amplo no domínio sociocultural e sua importância e valor em diferentes seguimentos.
A sua acção recaiu, sobretudo, aos Bakamas de Cabinda, uma organização tradicional relacionada a crenças sobrenaturais existentes exclusivamente naquela região.
A organização localizada no Morro do Kizo, a sul da capital daquela província, é a mais conhecida e notável ao nível local e pertence ao grupo étnico Bawoyo, que mantém o secretismo através das suas enigmáticas máscaras.
Questionada quanto à experiência adquirida nesta sua investigação e aproximação à referida organização tradicional, Mariza referiu que teve uma impressão muito boa desta comunidade e, ao mesmo tempo, sentindo-se meio incómoda por lá ter estado e saber que antes da sua chegada à localidade, já estes sabiam do seu propósito.
“Fiquei um pouco incómoda ao aperceber-me de que eles já sabiam que eu os procurava, mas a intenção era simplesmente para adquirir conhecimentos e torná-los em livro no qual estarão incluídos”, justificou a artista, admitindo que reteve muita informação sobre a cultura local, o posicionamento social, os rituais, acima de tudo, a dança.
Marisa sublinha que a máscara Bakama é respeitada e valorizada, e, por incrível que pareça, há ainda em Cabinda, cidadãos que nunca chegaram perto delas, referindo-se aos Bakama, que, segundo afirma, não aceitam por medo das histórias que lhes foram sendo contadas a seu respeito.
“A máscara é muito respeitada pelos natos e não só, lembro-me que quando, eu disse ao pessoal lá de casa que iria ver os Bakama, muitos ficaram assustados e chamaram-me de `bruxa’ uma vez que eles acreditam que não podem ver nem tocar, por representar a sociedade em que estão inseridos”, referiu.
Intervenção no Uíge
Já na província cafeícola do Uíge, especialmente no Museu Etnográfico do Uíge, o menor de todos que a artista visitou nesta sua jornada investigativa, disse surpreender-se com os preceitos organizativos, não obstante a época em que chegou a instituição daquela cidade ter sido submetida a obras de restauro.
A jovem reconhece todo o esforço empreendido pelos anfitriões, em conceder o apoio necessário para a pesquisa pretendida. Para dar maior sustentação ao trabalho, a jornada naquela província foi assegurada por Agnelo Beta, assistente do director da referida instituição, que se disponibilizou em ajudar nos processos de legalidade para a visita agendada às Pedras de Kissadi, situada na aldeia de Kabala, município do Negage.
Uma localidade de grande referência no domínio sociocultural, por possuir uma pedra muito especial, com vários dizeres e desenhos que, até então, ninguém os consegue descodificar, as famosas Pinturas Rupestres da Kabala.
Para lá chegar, segundo Marisa Kingica, é necessário cumprir algumas formalidades, tais como o contacto antecipado ao Soba e ao Seculo da aldeia.
Para formalização deste quesito, os anciãos exigiram que a visitante enviasse um documento a comunicar a sua chegada à aldeia e os motivos que a levariam até a Estação Rupestre e assim o fez.
Porém, no meio de toda essa azáfama, a jovem reconhece que em toda esta jornada investigativa, a que mais tempo levou foi a da província do Uíge, devido à natureza do trabalho e do local.
“Esta foi a província em que o processo de pesquisa foi um pouco demorado devido a algumas formalidades que se tinham que cumprir e eu não sabia.
Mas, finalmente, obtive o resultado que muito esperava”, disse Marisa, acrescentando que o pessoal com quem trabalhou nos municípios chegou a constituir uma excelente equipa de apoio e de trabalho, incluindo os sobas.
Devido à referência e importância que a circunscrição tem no domínio socioculturalno passado, o local era passível de alguns rituais à chegada, assim como à saída, como demonstração de respeito para com a sereia e os espíritos dos antepassados que lá habitavam.
Não obstante os contratempos e dissabores registados durante a jornada, Marisa Kingica apontou a questão do transporte e o mau estado das vias como um dos grandes obstáculos que se impuseram no acesso às Pinturas Rupestres naquela província.
Máscara Baua
Ainda no que as máscaras dizem respeito, a jovem Marisa referiu que no quadro da sua investigação foi possível encontrar, na província do Uíge, a máscara Baua, usada para a resolução de problemas sociais.
Recorda que, a resolução de problemas sociais e não só, naquela localidade, é acompanhada com uma panela de água fervente que serve de juiz sobre os actos maliciosos que possam afectar a região nos casos de delitos ou de feitiçaria.
Conta ainda que, depois de um interrogatório, o acusado é obrigado a colocar a mão na referida panela. Caso for inocente não se queima, mas se for o culpado, muitas vezes, não precisa de as colocar e assim acaba-se por descobrir toda a verdade para não se queimar.
Realça ainda que, no quadro da sua investigação, em relação às máscaras e cultura, encontrou, na província do Huambo, o Chihanji, um dançarino da circuncisão que, por sinal, sai apenas para celebrar o rito, à semelhança da Mwana Pwo da província da Lunda Norte, que também o faz.
“As máscaras representam para mim, como artista e investigadora, um misto de curiosidade e respeito pelo que elas patenteiam”, adiantou.
Por dentro dos museus
Questionada quanto ao estado actual das instituições museológicas e do acervo nessas províncias em que passou, Marisa admitiu ser boa, não obstante algum desequilíbrio no que ao património diz respeito, sobretudo na província do Huambo.
Já no que aos apoios a sua investigação se refere, realçou que não teve nenhum, mas gostaria de ter para poder obter o resultado final para o volume I do livro, que será acompanhado por uma exposição fotográfica sobre as pinturas rupestres das três províncias, precisamente do Uíge, Namibe e Huambo. “Tive contratempos e dissabores quanto ao transporte.
O aluguer de uma viatura é muito caro e as vias de comunicação, assim como o acesso à zona das pinturas rupestres, no Uíge, estão em estado lastimável. Anda-se muito a pé entre subidas e descidas, montanhas e relevos, rios e lagoas.
É extremamente cansativo e doloroso andar quilómetros a pé e sem protecção”, desabafou. Como forma de eternizar o seu trabalho, a artista foi desafiada a pintar um quadro para constar do acervo daquela instituição museológica.