Numa altura em que as pessoas se encontravam confinadas por força das restrições impostas pela pandemia da Covid-19, em 2020, no bairro São Pedro da Barra, distrito do Sambizanga, em Luanda, nasce o projecto artístico “Os 150”, uma iniciativa do humorista Bondoso, criado com o objectivo de ocupar os tempos livres das crianças e adolescentes com acções artísticas, levando-as a contracenar em pequenos episódios de humor.
Com as crianças a protagonizarem cenas em pequenas peças de curta duração de carácter humorístico e de consciencialização, com o objectivo de descontrair e, ao mesmo tempo, educar a sociedade, os vídeos dos “150” foram se tornando cada vez mais populares nas redes sociais e nas plataformas digitais que levaram os “pequenos actores” a atrair a atenção do público virtual, não apenas nacional como também internacional.
Ao que conta o mentor do projecto, o humorista Anderson Domingos, artisticamente conhecido por Bondoso, no princípio a intenção era apenas arranjar uma maneira de ocupar os tempos livres das crianças que na época encontravam-se em casa, com as aulas paralisadas devido às restrições da pandemia, ensinando-as a contracenar diante das câmeras. Segundo explica, a iniciativa do projecto surge inspirada no filme americano “300”.
A dinâmica consistia em “recrutar” os pequeninos para poderem contracenar em pequenos episódios de guerra e disputa de territórios, com a finalidade de serem publicados nas redes sociais do jovem humorista com o intuito de trazer conteúdos diversificados que pudessem atrair mais visualizações nas suas páginas virtuais.
“Este projecto nasceu na fase da Covid-19, inspirada na sátira ‘os 300’, especialmente na coragem de Leónidas, rei dos Esparta. Naquela altura, pensei em fazer algumas gravações com as crianças a fazer o papel de guerreiros que defendem o seu território e o seu rei.
Elas gostaram e ficaram muito animadas com a primeira experiência e daí para diante começamos a gravar outros vídeos”, contou o mentor. Com o passar de alguns meses, acrescenta, mais crianças foram se interessando pela iniciativa, que antes era só uma brincadeira, o que levou o humorista a aumentar o grupo e as dinâmicas para permitir que o projecto fosse mais inclusivo e mais abrangente, trazendo conteúdos que abordam diversos assuntos e fenómenos vividos pelas comunidades daquele distrito.
Quanto à designação ‘Os 150’, Bondoso explica que o nome surgiu devido à forte influência que o projecto sofria, no princípio, do filme “300”. Revelou que achou por bem atribuir a metade do número dos guerreiros, como forma de não perder de vista a resiliência e determinação exemplar transmitida no filme e que até agora tem motivado os pequeninos a não desistirem apesar das dificuldades e algum preconceito.
Combater a delinquência infantojuvenil por meio das artes
Outra razão que motivou a abertura do projecto e tem impulsionado a sua continuidade, de acordo com o mentor, é a intenção de contribuir no combate à delinquência infantil e infanto-juvenil que é uma situação preocupante naquele distrito da cidade capital.
Bondoso conta que há vários anos que o bairro São Pedro da Barra e zonas adjacentes têm sido fortemente “infestadas” por práticas criminosas protagonizadas por crianças e adolescentes, com idades entre os 10 e 17 anos, que se vão perdendo drasticamente no mundo das drogas, do alcoolismo e de outros vícios destruidores de sonhos e projectos de vida.
“O nosso bairro é muito perigoso e muitas vezes nota-se que os pais aqui não têm o controlo sobre o crescimento e educação dos filhos, então como a arte tem o poder de transformar, tenho procurado ensiná-los alguma coisa diferente, algo que lhes tira dos maus caminhos e lhes dê a direcção certa para a realização dos seus sonhos”, precisou
. Frisou que além de os manter entretidos, o projecto tem procurado profissionalizar os pequenos actores, capacitando-os com habilidades artísticas e outras valências.
Têm também sido munidos de conhecimentos de cultura geral, sobretudo durante o processo de elaboração e preparação dos textos para estes poderem contracenar.
Abordando assuntos que vão desde questões sociais, como a educação, saúde, fome, pobreza, delinquência, a fenómenos políticos e económicos como crises e sistema governamental, os meninos trazem à tona, de forma descontraída, episódios que visam, de certa forma, advertir e educar a sociedade de forma geral sobre os vários fenómenos e acontecimentos que se vive na capital e noutras partes do país.
Inexperientes, mas talentosos e ousados
Com o slogan “Representamos a realidade à nossa maneira”, os pequeninos, com idades entre os 11 e 17 anos, vão protagonizando, de forma ousada e cheios de auto-determinação, episódios interessantes, narrando vários aspectos e fenómenos que ocorrem naquele distrito e um pouco por toda Luanda.
Jaime Paulo, de 12 anos de idade, é dos principais rostos do projecto e que se tem destacado pela sua ousadia e determinação visíveis sobretudo na maneira com que interpreta os seus personagens.
Popularmente tratado por líder, o pequenino, que começou a contracenar ainda muito cedo, aos 4 anos de idade, em curtíssimos episódios teatrais e de humor sob orientação do humorista Bondoso, é dos principais actores do conjunto, assumindo papéis determinantes, na maioria das vezes o de protagonista dos principais episódios do elenco.
Destemido, o pequenino diz que sonha em ser um actor profissional quando for crescido e que quer ajudar os pais e a sua comunidade a crescer e desenvolver com aquilo que o seu talento lhe proporcionar.
“Quero ser um bom actor e poder ajudar os meus pais e o meu bairro a crescer com o dinheiro que eu ganhar quando for um actor famoso”, expressou o pequeno popularmente tratado por ‘Líder’.
Outro integrante do conjunto que também se destaca pela sua ousada performance é o pequeno Daniel Cassanda, de 11 anos de idade, tratado artisticamente por “Man Samussa”. Interpretando o personagem de kilapeiro, que pensa em emigrar com dinheiro de empréstimos, Daniel é igualmente dos rostos mais conhecidos do projecto.
No conjunto há apenas um ano, o pequeno é dos mais talentosos do grupo e diz que também sonha em ser um grande actor e espera poder representar o país em trabalhos cinematográficos internacionais.
“Meu sonho é ser um actor de cinema de Hollywood e fazer filmes que as pessoas de outros países também podem assistir”, exprimiu o pequeno, entusiasmado.
No grupo há sensivelmente dois anos, Dionísia Estêvão, de 11 anos de idade, é a única rapariga do elenco e também se destaca pela sua resiliência e ousadia.
Em meio a vários rapazes, a menina, que estuda a 5ª classe, tem dado vida a personagens de mulheres que se impõem e se destacam em vários ofícios, especialmente em áreas profissionais dominadas, maioritariamente, por homens.
Vídeos reportam os problemas de forma humorística
Através dos vídeos de curta duração, variando entre três e cinco minutos, o projecto traz nos seus trabalhos as realidades vivenciadas naquele distrito e arredores, retratando os problemas, dificuldades, os desafios e as ocorrências que marcam o dia-a-dia dos munícipes daquela bairro situado na zona litoral do distrito do Sambizanga.
Para os pequenos, contracenar tornou-se a melhor maneira de mostrar ao país e ao mundo a forma como o bairro vive, e como lida com as inúmeras dificuldades que afectam a vida dos moradores.
Mas afirmam que tem sido também uma maneira de fazer ouvir a voz das comunidades dos bairros mais carentes da capital. John Sebastião Mário, de 16 anos de idade, é um dos mais velhos e mais antigos dos integrantes do grupo e fala de como a experiência de contracenar o tem permitido mostrar ao mundo, através das redes sociais, a forma como o seu bairro é e lida com as insuficiências que o caracterizam.
“Essa é uma forma de mostrar às outras pessoas como o nosso bairro é, quais são as dificuldades que passamos, os nossos problemas, o nosso dia-a-dia. Amo muito fazer estes vídeos”, disse o adolescente, tratado pelos colegas por ‘O Canadense’.
Com 14 anos de idade, Victor Torres ou simplesmente “Vitinho”, igualmente um dos rostos do conjunto, diz que ingressou no projecto por influência dos amigos, mas que actualmente gosta do que faz.
Para o menino, participar no colectivo artístico tem sido uma maneira de fazer novas amizades e aumentar o seu nível de conhecimento, além do facto de que o grupo o tem ajudado a superar várias barreiras, quer em casa como na escola e no seu dia-a-dia, de modo geral.
Participação no filme brasileiro
Com dezenas de vídeos já gravados, “Os 150” vão ganhando cada vez mais visibilidade e conquistando um espaço de notoriedade a nível das redes sociais e plataformas digitais. Actualmente, o projecto detém uma página no Facebook com mais de 18 mil seguidores e cerca de 50 vídeos disponíveis com dezenas de milhares de visualizações e reacções.
Fruto desta notoriedade, conquistada com os seus incansáveis trabalhos, os integrantes do projecto foram convidados a participar num filme brasileiro que aborda as vivências nos bairros e “musseques” de Luanda, cujas gravações vão decorrer a partir de Fevereiro do próximo ano, nos vários bairros e distritos da cidade capital.
Segundo explica o mentor, o convite da produtora brasileira, cujo nome preferiu de momento não avançar, surgiu através dos vídeos que têm circulado pelas redes sociais, nos quais as crianças aparecem a protagonizar episódios atractivos, com temas variados, dos assuntos que afligem a sociedade angolana, mas contracenados de um jeito humorístico.
O talento e a ousadia dos pequeninos despertou a atenção dos “olhadores de talentos” brasileiros que, em recente viagem de vistoria a Luanda para constatar os locais onde irão decorrer as gravações, fizeram questão de convidar o projecto a participar no filme que começa a ser gravado em 2025.
Apoio aos estudos dos pequenos actores
Apar das valências artísticas, o projecto tem procurado, igualmente, capacitar os pequenos com habilidades académicas e técnico-profissionais. Através do projecto, adianta o responsável, várias crianças já puderam ser inseridas no sistema de ensino, tendo sido matriculadas em escolas, colégios ou centros de alfabetização, e estando o mentor a apoiar as despesas académicas dos mesmos, pagando propinas e/ou outros emolumentos inerentes à educação dos pequenos actores.
Conforme fez saber o dirigente, os meninos têm ainda beneficiado de aulas de alfabetização (para os que ainda não estão inseridos no sistema escolar), assim como aulas de informática na óptica do utilizador, que lhes tem permitido ampliar o nível de aprendizado e dominar as ferramentas tecnológicas.
Sem um espaço adequado para tal, as aulas de informática são realizadas em casa do humorista, que, apesar das dificuldades, procura sempre encontrar formas de capacitar as crianças e fazê-las não desistir dos seus sonhos e propósitos.
“O importante para mim é ajudar estas crianças a terem um futuro diferente. Com o pouco que Deus me tem dado, eu procuro dar o meu melhor para ver elas felizes e a acreditarem nos seus sonhos”, expressou.
Carência de apoio e patrocínios
Por ser um projecto artístico ambicioso, inclusivo, educativo, dinâmico e promissor, a espectativa é que cresça, seja contínuo e dê frutos visíveis, de modo a proporcionar espaços para mais talentos infantis naquele distrito e não só. Entretanto, para que se possa dar continuidade aos trabalhos futuros e aumentar o nível de abrangência do projecto, o seu coordenador diz ser necessário que surjam apoios e patrocínios, sobretudo no que diz respeito à aquisição de materiais de gravação.
Bondoso apela às instituições competentes e a pessoas singulares, com capacidade para tal, que possam apoiar a iniciativa, considerando que qualquer apoio é benéfico e vai ajudar a manter vivos os sonhos dos pequeninos.
O jovem, formado em engenharia informática, apontou algumas necessidades específicas que, até ao momento, são as mais preocupantes para o projecto como câmeras fotográficas profissionais, microfones e outros aparelhos electrónicos de captação de som, luzes artificiais, assim como outros meios necessários nos trabalhos de gravação audiovisual.
Ressaltou, por lado, que, além de materiais e dispositivos electrónicos, o conjunto carece também de locais adequados para as gravações e ensaios, tendo sublinhado que “há cenas que não saem com a qualidade desejada” devido às condições do local onde são filmadas.
O cenário das gravações tornase ainda mais difícil e complicado em épocas chuvosas, sendo que as ruas ficam completamente alagadas e os espaços adaptados igualmente, com condições impróprias para as filmagens.
Suporte à pensão alimentar
Um outro suporte que o projecto tem dado para a melhoria da condição de vida dos pequenos actores, de acordo com Bondoso, tem sido o suporte directo na pensão alimentar que são entregues directamente aos pais e encarregados dos meninos. Segundo adiantou, algumas vezes, através dos valores que arrecada em pequenas actividades onde o projecto é convidado a contracenar, tem dado algum suporte às despesa alimentares das famílias dos meninos, ajudando na compra de alguns bens alimentares.
“Às vezes, quando realizamos alguma actividade e conseguimos um apoio ou patrocínio pontual, pegamos nestes valores e compramos algumas cestas básicas para as crianças levarem às suas casas. Na maioria das vezes entregamos directamente aos pais para que eles se sintam motivados a acreditar nos sonhos dos seus filhos”, precisou o jovem humorista.
Esperança por dias melhores
Apesar disso, o mesmo mostra-se optimista por dias melhores e acredita que, com maiores ou menores dificuldades, o projecto vai crescer e conquistar um espaço de destaque no cenário cinematográfico nacional e, quiçá, internacional.
Expressou, entusiasmadamente, a intenção de, muito em breve, poder ver o projecto ou um dos integrantes a ser distinguido pelo seu trabalho num dos festivais de cinema ou de artes visuais que têm ocorrido em várias partes de Luanda. “Acredito que um dia o país vai falar de nós, seremos reconhecidos pelo nosso trabalho e estes miúdos ainda vão chegar longe, disso tenho certeza”, profetizou o artista.