São transcorridos 19 anos desde a criação do Luanda Cartoon, o maior festival nacional de banda desenhada. Trinta artistas nacionais e outros tantos internacionais, como brasileiros, portugueses, moçambicanos e congoleses dão brilho a actual edição que tem a economia azul no centro da abordagem. O mentor do projecto, Olindomar de Sousa, abre-se em entrevista ao jornal OPAIS para falar do festival, da banda desenhada e da necessidade de uma maior compreensão política sobre a arte que, no seu entender, é um activo que pode ajudar a abrir caminhos na busca de soluções para os vários problemas sociais.
Hoje, 19 anos depois, o Luanda Cartoon acaba de estabelecer uma parceria com a Fundação BAI. O que isso significa para vocês?
Significa um avanço. Mas é importante lembrar que, antes desta fusão, a Academia BAI já apoiava o Festival Luanda Cartoon. Mas, como ficámos dois anos sem realizar o Festival por causa da pandemia da Covid-19, então tivemos um interregno nas relações, mas já havia essa parceria.
Nestes 19anos de actividade parece que há uma maior elasticidade do próprio Festival, a julgar pelo número de artistas participantes e a multiplicidade dos espaços, não?
Certo, há uma maior elasticidade. Portanto, nesta 19ª edição temos 30 artistas internacionais, temos ainda outros que vieram da República Democrática do Congo e do Brasil, mas temos, igualmente, a participação virtual de artistas de Portugal e Moçambique.
Outrossim, o Festival está a decorrer em três pontos da cidade, no Instituto Camões, no Belas Shopping e no Kilamba, o que torna o evento mais abrangente.
Sempre com a mesma filosofia de o público não pagar absolutamente nada?
Exactamente. Continuamos abertos ao público de forma gratuita até ao dia 19 de Agosto.
Ao chamarem a questão da economia azul nesta edição, qual era o alvo a atingir?
Na verdade já é uma rotina debruçarmo-nos sobre um tema a cada edição do Festival Luanda Cartoon, e nesta edição focamo-nos na economia azul, porque, assim como qualquer cidadão entendido, nós também estamos preocupados com as questões ambientais, pensando justamente na economia azul.
E porquê desta abordagem?
Primeiro é porque, economicamente, o mundo está numa crise.
E nós, angolanos, somos dos que sentimos ainda mais a crise diferente do resto do mundo.
Por isso é que hoje estamos a falar de agricultura para substituir o petróleo.
Mas, se nós pensarmos que mais de 60% da terra é constituída por água, e nós Angola temos essa graça ou bênção de termos mares e rios por todos os cantos, poderíamos ter dado a volta à crise.
É o contributo da arte para a tão propalada diversificação da economia?
Exactamente, mano. E é possível explorarmos os nossos mares e rios a favor da nossa economia. Nós, em Angola, temos muita gente que vive da pesca.E muitos deles sustentam outras várias famílias.Ainda temos milhares de pessoas que vivem da exploração do sal.
E é possível explorarmos muito mais porque temos mares e rios em todo canto.
Acha que as nossas águas não têm sido suficientemente exploradas?
O que eu acho é que deviam ter sido mais exploradas. Há muita coisa que poderíamos fazer com a bênção das águas que temos. Por exemplo, hoje já não poderíamos ter zonas em que não haja energia eléctrica quando podemos construir mais barragens. É que nós temos um país abençoado.
Como dar a volta a isso?
A única saída é explorar os nossos mares e rios com o objectivo único de desenvolver o país e a nossa economia, mas pensando sempre na preservação das futuras gerações e de algumas espécies que temos e que andam cada vez mais a reduzir.
Então, daí o tema da economia azul neste edição porque achámos que dá para ajudar em muita coisa e dar um empurrãozinho à nossa economia além do petróleo.
Com este tema, é a arte no dia-a-dia dos cidadãos, mesmo que de forma intermitente?
Pois é. E este foi sempre o posicionamento da arte. No geral nós, os artistas, apresentamos sempre sugestões para a melhoria da vida quotidiana, principalmente no cartoon.
Até que ponto?
Se reparar, o pessoal do cartoon ou banda desenhada trabalha muito com assuntos sociais. Portanto, apesar de estarmos a fazer o nosso humor, ajudamos as pessoas a reflectirem e a terem um olhar da nossa sociedade para darem um melhor contributo e fazer o país crescer e desenvolver cada vez mais.
Mas esse é o entendimento que as pessoas têm de vocês?
Devia ser este, mas ainda não é.
Porquê?
Repare que a maior parte dos artistas que participam no Festival são também humoristas. Então as pessoas pensam que só fazemos coisas para fazer rir. Quando, na verdade, deixamos a nossa mensagem clara.
Os temas que são abordados acabam por desconstruir esse olhar?
De alguma forma sim. E é esta a nossa posição, pôr a sociedade a reflectir a cada edição que é realizado o Festival.
Incluindo o próprio poder politico?
Sobretudo esse. Acabamos por passar à governação uma mensagem clara para que não pensem apenas que fazemos rir, mas que estamos preocupados e contribuímos para as soluções que o país precisa, sobretudo neste momento crítico de crise.
E, para quem governa, há essa sensibilidade de sentir a vossa mensagem?
Sentimos que já há. Felizmente.
Até que ponto?
Porque de uma forma ou outra, a arte tem que influenciar. Podem fazer passar a ideia que não receberam directamente a nossa opinião, mas depois vês algumas mudanças que vão acontecendo na sociedade, sobretudo ao nível político, e consegue-se chegar a um entendimento que mudou graças à nossa mensagem.
Mas depois existem os lados das conotações que, muitas vezes, acabam em perseguições quando a mensagem da arte é ‘disparada’ à queimaroupa para quem governa, não?
Isso sempre existiu. Ao nível do mundo sempre existiu cartoonistas críticos. Isso não é só em Angola. Agora, se é mal compreendido ou não, o pessoal só deve continuar a fazer o seu trabalho.
Mesmo em meio a riscos?
Os riscos e as conotações vão sempre existir. Isso não é apenas uma questão da banda desenhada. Tens isso também na música e noutras formas de fazer arte. Portanto, a crítica política, do lado de quem governa, nunca é bem encarada.
Mas quem faz o seu trabalho deve continuar a fazê-lo e os que governam deviam ter um melhor entendimento sobre a arte. Acho que é só isso.
Ao nível da banda desenhada já houve casos de excessos envolvendo o poder político?
Que me lembro não. Não me recordo de um cartoonista ser detido por pintar aquele ou um outro governante. O que fica é a conotação.
“O cartoon ainda é barrado”
Além do Festival, vocês têm uma oficina que funciona diariamente. É uma forma de atender e criar outras gerações de cartoonistas?
Exactamente. Felizmente há muitos jovens a se interessarem pela banda desenhada. Eu recebo, diariamente, muitos jovens que querem fazer cartoon ou banda desenhada. Mas o problema depois está no processamento do escoamento de todo esse talento junto da sociedade.
Como assim?
É que há muitas criações mas depois não tens espaço onde os jovens podem demonstrar o seu talento. Por exemplo, o cartoon ainda é barrado em alguns jornais, que é o lugar certo para os cartoonistas. Basta reparares em quantos jornais temos hoje e quantos investem em cartoonistas e verás que são poucos.
A queda na produção de revistas e jornais não contribui para esta situação?
Por um lado sim. Por exemplo, diferente dos anos 80, hoje reduzimos muito o número de produção de jornais e revistas.
Eu por exemplo tive a graça de publicar na maior parte das publicações que existiram. Mas hoje muitos deles já não existem e se existem estão no segmento digital e acaba por complicar ainda mais a nossa situação.
Mas o surgimento das publicações online não terá dado uma outra força nisso?
Nem tanto, porque quando o jornal ou a revista é física o impacto é outro. Então, com essa falta de espaços, os cartoonistas só têm, muitas vezes, a oportunidade de demonstrarem o seu trabalho no Festival Luanda Cartoon.
E cabem todos?
A questão não é a cobertura. É que é o único espaço que têm para demonstrarem o que sabem fazer. Fora do Festival não tens outros sítios.
Então essa ideia de que os cartoonistas não existem é utópica?
Completamente, mano. Não é que eles não existem. Estão aí, aos montes. O problema é que não têm espaço para demonstrarem as suas criações.
Então é muito difícil. Por exemplo, não se pode dizer que o Luanda Cartoon é o maior festival de banda desenhada em Angola quando não tens outros.
Porquê para ser maior tens de comparar com outros. E são esses outros que não existem. Portanto, se os jornais começarem a dar mais espaços aos cartoonistas, de certeza que esse vazio poderá ser preenchido.
Apenas os jornais?
Sobretudo, porque o desaparecimento destes deixou um vazio muito grande.
As pessoas até podem dizer que temos as redes sociais, ok, dá para publicar, mas temos que ser sinceros que em Angola a maior parte das pessoas ainda não têm acesso à Internet.
Então, com isso, as redes sociais não são ainda o melhor caminho para fazer passar a nossa mensagem. O certo seria mesmo a publicação em jornais.
Independentemente da especialidade?
Sim, porque há cartoon para todas as especialidades. Podemos fazer cartoon só para jornais de desporto, economia, cultural ou mesmo generalistas. Ou seja, todos os jornais deviam ter uma parte só dedicada ao Cartoon.
Nos anos 80 havia revistas só de banda desenhada. Penso que essa responsabilidade também pode ser vossa, não ?
Nós continuamos a fazer revistas de banda desenhada. Mas só que as questões gráficas, aqui em Angola, ainda é uma coisa cara.
Então a malta faz e na hora das vendas não compensa, porque depois tens o problema do pai em casa que pensa se vai meter os 5 mil kzs no pão ou numa revista de banda desenhada.
Aqui as parcerias poderiam ser uma mais valia, não ?
Poderiam, mas as próprias gráficas também querem lucros imediatos. Portanto, é uma conjuntura de problemas que acabam, muitas vezes, por desacelerar o surgimento de mais trabalhos.
E isso pode contribuir para o desaparecimento do cartoon em Angola? De maneira alguma. As dificuldades vão sempre existir.
“É preciso querer muito para continuar a fazer cartoon”
Os jovens que vão entrando na arte do cartoon sentem-se confortáveis com essa maré de dificuldades?
Claro que não, mano. Mas é aquilo que temos dito, é preciso querer muito fazer para continuar a fazer cartoon.
Até que ponto?
Porque da mesma forma que tem aparecido muitos jovens artistas, também é da mesma forma que muitos têm se virado de outras formas só para sustentar a família.
Como assim?
Muitos estão a fugir para outras áreas, para a publicidade, designer e outras profissões porque têm de sustentar a família. Porque se não tens um sítio para publicar ou vender o teu desenho não vais comer. Por isso é que muitos fazem a vida noutras áreas.
É a arte a morrer aos poucos?
Aos poucos sim, mas eu acredito que não vai morrer no seu todo, porque a cada ano aparecem mais artistas novos e bons.
O Festival acaba por ter essa componente de medição do alcance do cartoon?
Sim. Porque todos querem participar, e a partir das inscrições ou das candidaturas conseguimos ver a quantidade e o grande interesse que as pessoas ainda têm pela banda desenhada em Angola.
Existe um pré-requisito no processo de selecção?
Não, não. Qualquer um cartoonistas pode participar no Festival. Basta enviar os trabalhos e se tiver a qualidade exigida por nós tem o acesso aberto, diferente dos artistas internacionais que participam no Festival mediante convite.
Qual é o número de participantes desta edição?
Nesta edição temos mais de 30 participante angolanos, depois temos os estrangeiros.
Recuando um pouco o tempo, o período da Covid-19 acabou por desacelerar aquilo que eram as projecções do Festival?
De alguma forma sim, mas sobrevivemos. E tivemos a consciência tranquila por saber que não foi só uma coisa nossa. Mas foi um acontecimento mundial. A maior parte dos festivais pelo mundo foram também cancelados, estamos a falar da Beja, Amadora e alguns do resto da Europa que foram todos cancelados.
Mas nesse período muitos investiram no segmento virtual. Foi uma das saídas? Mas não é a mesma coisa. Os artistas gostam de estar com as pessoas e sentirem o intercâmbio.
E isso não foi possível?
Claro que não, porque durante a Covid-19 estivemos todos em casa. Mas participamos em muitas lives e trocamos alguma experiência, sobretudo com artistas da lusofonia.
Neste quesito da experiência, a Internet assume um papel importante?
Neste sentido, sim. Hoje, graças à Internet, colaboramos com revistas do Brasil, ilustramos livros para escritores portugueses e tudo isso sem viajar. Então, a Internet trouxe essa vantagem, de poder trabalhar fora de Angola sem sair de Angola.
É um romper de fronteiras?
Perfeito. A Internet acaba por nos possibilitar ver que na arte não existe fronteira. Nós temos muitas ligações sem nos movermos da nossa zona de conforto. Por exemplo, nós vamos agora lançar o nosso livro Cabetula por via de uma editora portuguesa, mas sem sairmos de Angola. Então, a Internet tem essa vantagem.
“As coisas entre nós não têm continuidade”
Por quê que os anos 90 são tidos como o melhor período da banda desenhada em Angola?
Porque foi o período de pico da arte, sobretudo por causa da grande influência do mestre Henrique Abrantes, considerado pai da banda desenhada em Angola. Ele reunia, no seu estúdio, artistas, em que eu também fiz parte, como aluno. Era de facto uma geração de ouro.
Mas porquê será?
Porque tínhamos revistas regulares e jornais que saíam todos os dias com cartoon. E há uma saudade dessa época, por isso é que temos personagens como o ManKiko que não sai, até agora, da cabeça das pessoas.
Porquê que o Henrique Abrantes é considerado o pai da banda desenhada em Angola?
Porque ele formou muita gente. Estou à falta de gente como Sérgio Piçarra, Lito Silva, Hugo Fernande, Abrão Weba, eu próprio, Olímpio, Maniloy e tantos outros. Foi de facto uma geração de ouro, mas que depois com a morte do mes tre as coisas baixaram.
Não houve continuidade?
Não, infelizmente.
Porquê?
Não sei, mas é uma coisa que acontece muito aqui, as coisas não têm continuidade. É que, quando a pessoa que cria desaparece ou morre, tudo volta ao zero. Isso acontece até mesmo ao nível do poder político.
Como assim?
Basta ver que quando nomeiam um novos governador tudo volta ao zero. Uma rua que estava a ser asfaltada volta à estaca zero. E tudo isso demonstra que nós temos um sério problema da continuidade dos projectos.
Não é esse o vosso caso, enquanto Luanda Cartoon?
Não, graças a Deus. Temos 19 anos ininterruptos, tirando os dois anos da Covid-19.
É caro fazer um Festival como o Luanda Cartoon?
É muito caro, infelizmente.
Mas porquê?
Tens o problema que em Luanda tudo é caro. Isso começa na ideia, nos materiais e até na busca dos artistas, sobretudo africanos. É que o artista africano para chegar a Angola é complicado.
Primeira coisa começa com o visto para Angola que não é uma coisa fácil.
Depois tens o problema da ligação aérea. É que um artista de um país africano para chegar a Angola tem que fazer escala muitas vezes na Europa, mas estão no mesmo continente.
Depois, internamente, tens a questão da hospedagem, alimentação, produção do evento, molduras, impressão, enfim toda essa estrutura é cara.
Isso depois acaba por ser compensado com o número de visitantes, que mesmo sendo grátis, acaba por dar prestígio ao evento?
Não tanto. Aliás, o próprio número de visitantes ainda não satisfaz o Festival. E nós temos uma preocupação muito grande com a educação.
Como assim?
Como já falamos, anteriormente, ao longo destes 19 anos nós nunca cobrarmos um Kwanza para as pessoas entraram nas exposições. Algo totalmente diferente de todos os Festivais da Europa em que cobram a entrada.
Por exemplo, o festival da Amadora tem dias de cinco e dias de 10 euros por entrada. Mas nós, no Luanda Cartoon, nunca cobramos ingressos. Essa é a nossa preocupação de deixar o povo ter acesso ao festival para termos um público fiel.
Ainda não têm?
Já temos um público fiel. Mas precisamos alargar esse público para que perceba o que é a banda desenhada e que valorize o trabalho dos nossos artistas.
É visível que a cada edição vocês têm novos parceiros em forma de patrocínio. Isso acaba por dar uma folga, não ?
É verdade que temos tido vários parceiros, mas estes ainda não cobrem a totalidade do Festival. Anualmente, temos um projecto com os respectivos custos.
Mas, infelizmente ainda não se tem cobertura total. Mas é gratificante, porque fazemos o que é possível.
O Prémio de Cultura e Artes que receberam, recentemente, dá algum prestígio ao Festival?
Sim dá, mas é preciso que ao nível institucional se pudesse fazer mais.
Em que termos?
Recebemos o Prémio em 2016/2017, mas ficou-se por aí. Eu acho que eventos premiados pelo Estado deviam merecer uma outra atenção, porque estamos a falar do maior prémio de cultura e arte do país. Então, os artistas que recebem este Prémio deviam ter uma outra atenção especial.
Está a falar de dinheiro?
Não só, mas também com alguma norma que pudesse influenciar certas empresas a apoiarem as actividades culturais, mesmo sem a lei do mecenato. Por exemplo, um documento do ministério seria capaz de abrir uma porta ali ou acolá.
É dessas coisinhas que a gente precisa, não é somente o dinheiro. Mas, infelizmente, não é isso que acontece.
A falta deste comprometimento do Ministério da Cultura acaba por retirar o brilho ao Festival?
O brilho não, mas de alguma forma não fica bem. E não só o Ministério da Cultura, como também do próprio Governo Provincial de Luanda.
Vou darlhe um exemplo, lá fora as câmaras municipais assumem os festivais. E aqui o Governo Provincial de Luanda devia abraçar o Festival até pela estrada que já temos e por ser o maior e único da cidade.
Próximo ano vão fazer 20 anos de Festival. É uma vida. Há algum projecto em concreto para celebrar essas duas décadas?
Sim, felizmente. E já estamos a trabalhar num projecto grande. Vamos trazer as maiores referências do cartoon ao nível do mundo e vamos ter um número de convidados maior e de diferentes gerações.