Está a desenvolver um projecto de transformação da sua própria residência num museu de cinema e audio- visual. Como surge a ideia?
Para ser honesto, a ideia no princípio não era propriamente fazer um museu como tal, mas ter um espaço onde pudesse expor o material, com a conservação devida, e que permitisse que as pessoas interessadas pudessem ter acesso e aprender um pouco. Mas devido a algumas situações, optei por fazer mesmo um museu e com isso poder garantir maior dignidade e conservação do material de modo a estarem expostos sem qualquer constrangimento. O país passou por vários momentos marcantes e delicados que fazem parte da sua história e que jamais podem ser esquecidos nem apagados, e estes momentos foram acompanhados pela rádio, pela televisão e pela fotografia. No entanto, estes materiais que foram usados nestes períodos cruciais da história do país não podem simplesmente ser ignorados e deixados ao cativeiro/armário. Então, eu tenho vários materiais da época de transição e do período de guerra, materiais estes que acho que a juventude que, por exemplo, está a se formar nas áreas de comunicação social ou telecomunicações, do audiovisual ou do cinema, precisa conhecer, ter o contacto com eles e compreender a importância que cada um teve no registo dos momentos que o país atravessou.
Com isso, pretende criar um espaço para que os jovens possam entrar em contacto com essa realidade?
É preciso que estes jovens tenham um local onde podem visitar estes materiais velhos e aprender um pouco sobre eles, suas utilidades, modos de funcionamento e quais eram as técnicas usadas no manuseio, porque isso vai ajudar a solidificar as bases de conhecimento histórico e prático destes jovens.
Pois, há muita juventude formada que não sabe a era do surgimento da televisão em Angola, não conhece quais foram as primeiras câmeras usadas no país nem tão pouco as técnicas de uso, mas são jovens formados, alguns até com mestrado e doutoramento e tudo. Estão “entupidos” de conhecimento sobre televisão do ocidente, dos Estados Unidos, mas não sabem nada sobre o seu país, sobre a história da televisão angolana. Portanto, esta é uma maneira também de contribuir para a preservação da nossa história, e também para a melhoria da qualidade de ensino no país.
Disse que esta é uma maneira de “preservar a história do país”, de que modo?
A verdade é que nós não podemos ter um futuro próspero sem termos um passado devidamente alicerça- do. Se não se ensina o que era e como era no passado, então não te- remos profissionais devidamente qualificados, vamos ter uma série de formados com ideias baseadas na realidade de outros países para aplicar aqui sem saber a essência de onde está. É importante conhecer o passado porque é desses dados que a gente vai buscar subsídios para construir o futuro e, de certa maneira, projectar a evolução do país na direcção mais correcta possível. Repito, é importante sabermos de onde saímos para compreendermos onde chegamos e qual a direcção a tomar para chegar onde pretendemos ou almejamos. É preciso que a juventude actual conheça a história da nação também olhando para os materiais que registaram cada momento de transformação do país, desde a independência, a época de guerra, os processos de paz, as primeiras eleições, de tudo um pouco. Hoje vemos que a nossa juventude pouco ou nada sabe sobre a história do nosso próprio país. Sabem mais sobre as guerras mundiais, a revolução francesa, a revolução industrial e tudo mais, mas se lhes perguntas sobre um nacionalista, ele nem conhece, nem se quer conseguem fazer uma redacção em condições a falar sobre o 4 de Fevereiro ou sobre o 27 de Maio. Mas isso é reflexo da falta de transmissão adequada da nossa própria história às nossas futuras gerações.
Está preocupado em trazer à tona factos da história que ninguém conhece ou de preservar os que já se conhecem publicamente? Pode esclarecer melhor?
É o seguinte, estamos todos hoje a ver a onda de migrações, quase toda gente quer emigrar, sobretudo a juventude, pelas razões que toda gente sabe, mas mesmo estando em outros países eu tenho que saber me identificar, conhecer a minha história e a minha cultura para amanhã não ser confundido nem aldrabado por outros, como às vezes temos visto, gente que nunca veio para Angola fica a mentir em palestras sobre a cultura dos nossos povos, a fingir que nos conhece e estudou os nossos hábitos e costumes. Por isso, repito, a minha preocupação é com a preservação da nossa história, da nossa identidade cultural, particularmente a história da televisão, da rádio e da fotografia em Angola. Mas também em trazer à tona dados que as pessoas não conhecem. Há coisas que foram registadas pelas câmeras fotográficas, mas que não são ditas nem mencionadas pelos livros, mas são dados importantes da nossa história.
Está a querer dizer que estes dados, registados pelas câmeras, preservam a nossa identidade cultural?
Obviamente que sim. Por isso é que nós estamos a guardar as imagens do antigamente que identificavam as nossas cidades, a maneira de viver dos nossos povos, os nossos bairros. Temos registos, por exemplo, de como era o bairro Prenda, o Sambizanga, o Rangel, ali o bairro Popular, o bairro Operário. Ou seja, estes registos mostram a maneira como as pessoas viviam, como elas se vestiam, como celebravam as festividades, os nossos carnavais de rua. Então, tudo isso faz parte da nossa identidade cultural, e se não a preservarmos, daqui a pouco ser um povo sem cultura, sem identidade própria, como estamos a ver na nossa juventude hoje a imitar tudo o que vem do estrangeiro.
Quais tipos de materiais ou peças as pessoas vão poder encontrar no futuro museu?
Temos vídeos, documentários, fotografias, peças e uma série de coisas que facilitam a compreensão dos factos sem lhes retirar qual- quer veracidade. Tenho, nas minhas colecções, câmeras fotográficas antigas, câmeras de filmagem e leitores de cace- te daqueles bem antigos. Há aqui materiais com mais de 60 anos de existência, alguns até já estavam quase no lixo, fui os recolher para fazer parte da minha colecção porque são materiais que contam a nossa história e não podem ser jogados fora.
Onde concretamente irá funcionar o museu?
Em princípio, quis transformar a minha própria casa (situada no Lar Patriota, em Luanda), mas agora vejo que até a minha própria residência não é espaçosa o suficiente e também não oferece as condições necessárias, por isso estou a ver a possibilidade de apoio para ver se arranjamos um espaço pelo menos na via principal do Benfica. Se aparecer patrocínio para este efeito, será gratificante, mas caso não haja alguém que nos ofereça um espaço maior e melhor, penso que iremos nos remediar mesmo aqui em minha casa, com as limitações que apresenta.
Já agora, como está o projecto em termos de apoio?
Inexistente. Venho lutando bastante à procura de apoios e patrocínios, mas ninguém me ouve. Parece que não há interesse. Eu gostaria que o Estado apoiasse no sentido de transformarmos este espaço num museu de cinematografia. É triste ver uma iniciativa desta que vai beneficiar o país de modo geral a ser “desdenhada”, ninguém apoia, ninguém se mostra dispo- nível nem pelo menos para ouvir as ideias, só para servir de incentivo, nada. Fico bastante triste ao ver o material com mais de 40 anos de existência a estragar-se assim, jogado fora, sem interesse de se conservar para preservar o seu valor histórico. Fotografias dos acordos de Bicesse, de Alvor e outros, a se decomporem paulatinamente porque não há espaço onde possam ser expostas e devidamente valorizadas. Eu gostaria imenso que o nosso governo e a sociedade em geral percebe-se que este não é um projecto para o meu benefício pessoal, eu não estou preocupado em fazer dinheiro com isso, porque se assim fosse não haveria necessidade de eu ter meu próprio negócio à parte, meu interesse é que a história seja preservada e compartilhada com os jovens actuais e com as futuras gerações. O desejo é que ela (a história) jamais seja apagada ou adulterada como aconteceu aos nossos ante- passados no tempo do colono europeu que apagou a nossa história ao levar os artefactos todos que encontrava, quero que seja conserva- da e devidamente valorizada, apenas isso.
Além do conhecimento sobre a história do país, este projecto irá beneficiar as pessoas de uma outra maneira?
Sim, claramente. Sabemos das dificuldades de emprego que a nossa juventude enfrenta, este museu serviria de oportunidade de trabalho para muitos jovens. Tal como acontece em outros países, cada um que pretende visitar o museu paga uma taxa simbólica e estes valores vão sendo colectados para depois suprir as despesas do próprio espaço, para garantir a autos- sustentabilidade do mesmo, vemos isso aqui na República da Namíbia e na África do Sul, porquê que não podemos adoptar este sistema para a melhoria do nosso país (?). Esta é uma iniciativa benéfica para a nação, não é para o benefício pessoal do Nguxi dos Santos, e isso é algo que infelizmente as instituições de direito não veem ou porque não querem ou porque não têm interesse em ver o país ir para frente.
A par das peças, as pessoas vão poder igualmente apreciar vários documentários produzidos por si e que estarão expostos no acervo do museu?
Certamente. Tal como disse no princípio, temos vídeos de documentários feitos não apenas por mim, mas também por outros profissionais que deram o seu suor para o desenvolvimento da televisão em Angola. Há documentários sobre a guerra civil que o país atravessou ao longo de 27 anos. Eu e outros colegas fazíamos cobertura sobre as batalhas em campo, íamos também aos campos de batalha, fotografávamos, filmávamos, procurávamos registar tudo com as nossas câmaras, e isso são factos históricos que fazem parte da nossa identidade, da nossa história, aquilo que nós vivemos.
Recorda de quantos documentários já produziu até agora?
Já tenho produzidos dezenas de documentários que agora já nem me recordo de todos, alguns eu fui produtor e realizador e noutros fui apenas o realizador, cuidando da questão visual. Há uma série de coisas que já fiz na área do audio- visual. Algumas estão espalhadas por aí, passam pelas nossas televisões quase todos os anos. Há até trabalhos meus que as pessoas nem se quer sabem que é minha obra, mas o mais importante para mim é que as pessoas apreciem e aprendam alguma coisa ao assistirem a estes documentários.
São mais de 45 anos dedicados ao cinema e até hoje, mesmo estando reformado, continua a trabalhar nesta área. Sente que ainda há muita coisa que precisa ser feita por si?
Eu trabalho em audiovisual desde os meus 19 anos, daqui a algumas semanas farei 65 anos de idade. Dei toda a minha juventude nesta arte e, por isso, não me vejo a ficar parado. Eu acho que vou continuar a fazer isso até a minha morte. Apesar da idade, continuo a trabalhar até hoje com o mesmo rigor e dedicação para sustentar a família que tenho e garantir o meu próprio sustento. Mesmo já estando reformado, gosto daquilo que faço e não me via a ficar em casa à espera da pensão da reforma que, aliás, nem chega sequer para cobrir metade das minhas despesas e responsabilidades. Sou um profissional que ama a sua arte e vou morrer a trabalhar, não me vejo a fazer outra coisa que não seja esta que me formou e me sustentou até os dias de hoje.
Dada a vasta experiência que carrega, qual é a sua visão sobre o estado actual do cinema nacional?
Na minha visão, o cinema nacional continua carente e precário. É preciso financiamento e formação. A juventude está a vir com boa força, óptimas ideias e iniciativas, mas sem investimento é zero. Lhe digo por experiência, ninguém vai conseguir fazer um filme em condições com o seu próprio dinheiro. O cinema é das áreas artísticas que mais gasta no mundo. Um filme em condições exige investimento a sério, são várias despesas e exigências, e sem um patrocinador/patrocinadores não é possível, nem em Angola nem em qualquer outra parte do mundo. Aliás, é só vermos que, até nos Estados Unidos, a maior indústria de cinema do mundo, para um filme ser produzido, chamam empresas e empresários para patrocinar ou apoiar, chamam as grandes marcas para dar um suporte porque o filme exige custos altos. E eu não estou a falar de fazermos um filme igual ao de Hollywood, não, estou a falar em um filme a nosso nível, de acordo com a nossa realidade, mas com a qualidade minimamente aceitável.
“Pesa-me dizer-vos isso, mas o cinema em Angola até agora, infelizmente, não dá dinheiro”
Temos jovens a fazer bons trabalhos de cinema com as condições que o país oferece, não é sinal de melhoria?
É verdade que temos assistido aos trabalhos de alguns jovens ousados e corajosos, bons filmes, que realmente aplaudo e encorajo, mas não são com materiais de remediar que vamos chegar longe. Um filme de qualidade exige material de qualidade e profissionais devidamente capacitados. Muito embora hoje a tecnologia esteja evoluída, com um smartphone tens o básico para fazer uma boa filmagem, mas precisas de outros componentes e isso exige investimento. Fazer um bom filme exige gastos sérios.
Sente que não tem havido um esforço por parte do Ministério da Cultura no sentido de melhorar a situação do cinema nacional, de modo geral?
Honestamente, não vejo, não digo que não há, talvez haja, mas muito pouco. A prova disso é esta situação do museu que estamos aqui a debater. Há mais de três anos que estou a lutar para executar um projecto que vai alavancar o sector do cinema nacional e ajudar muitos profissionais, especialmente os jovens, mas até agora nenhum órgão do Estado veio ter comigo para falar sobre isso, o que quer que eu diga? Não é falta de interesse? Não é falta de vontade política? Agora interrogo eu. Outro problema muito visível é a falta de salas de cinema com frequência de exibição de filmes nacionais. Se tu quiseres assistir a um filme nacional, praticamente não existem salas. Se fores aí aos CineMax’s, ao Zap Cinemas e outros, quase não há programações de exibição de filmes angolanos.
Está a dizer que estes espaços não promovem o cinema nacional?
É simples, é só fazermos o balanço de quantos filmes nacionais são exibidos nestes cinemas semanal- mente, quase nenhum. Aliás, há até meses completos que não exibem se quer um único filme nacional. Eu, particularmente, não me lembro de algum dia ver um documentário meu a ser exibido nestas salas de cinemas que temos espalhadas por Luanda e não só. Mas se fores lá, há um monte de filmes dos Estados Unidos, da Europa, da Chi- na, até filme do Brasil e Portugal lá passa, mas não há filmes angolanos, assim estamos a investir no cinema nacional? É complicado. Mas isso não é de todo culpa dos cinemas, é resultado da falta de políticas de incentivo e estímulo à produção cinematográfica nacional. Os cinemas que temos são espaços privados e precisam de rendimentos para se autossus- tentarem, entretanto, os filmes nacionais, muitos deles, não têm público. Você coloca um filme nacional, a sala não fica ocupa- da nem ao menos 10%, e isso, com certeza, reflecte-se depois em prejuízo para as empresas que gerem as salas de cinema. É um trabalho que deve ser feito de forma conjunta, e tudo começa pelo investimento e formação, volto a repetir.
O cinema nacional já dá algum rendimento aos seus fazedores?
Pesa-me dizer-vos isso, mas o cinema em Angola até agora infelizmente não dá dinheiro. Ali- ás, por isso é que vez muitos produtores a preferirem fazer documentários para as televisões e instituições particulares por- que não há rendimento no cinema nacional. Você produz um filme com esforço próprio, gastas do teu próprio dinheiro, sem qualquer apoio ou patrocínio, e no final não há qualquer retorno porque não existe um mercado de consumo, muito menos de compra dos teus trabalhos.
Resultado, és obrigado a mendigar para que o teu filme passe numa cadeia televisiva ou num festival só para que as possas ver o teu trabalho. Uma coisa que gastou milhões de kwanzas, muito esforço e às vezes te cria desgaste físico e emocional. Não há vontade política em melhorar a situação, infelizmente é isso que vejo. E digo mais, não consigo perceber como é possível, vivemos mais de 20 anos de guerra civil e não há se quer um documentário a reportar os dados sobre esta guerra, os reais motivos que estiveram na base do conflito, as estratégias que resultaram na paz e reconciliação nacional, não faz sentido não termos na-da disso registado para a nossa juventude e já lá se vão 22 anos desde o calar das armas.
As guerras mundiais, os conflitos europeus têm documentários que passam há anos nas nossas televisões, através de canais internacionais, mas aqui os nossos conflitos são só de ouvir dizer, nem sabem quem motivou o quê e como fizeram para se chegar ao acordo de paz. Isso não é preservar a nossa história, isso é querer mutilar as futuras gerações porque não sabem e não terão conhecimento evidente sobre o seu passado.