Depois de ter lançado o livro Matemática da Coerência, o músico Dog Murras prepara-se para lançar, em Luanda, nos próximos dias, ‘Ubuntu, Nós por Nós’, uma obra assente na filosofia africana que enfatiza a importância da união, da comunidade, do respeito mútuo, da tolerância e do amor ao próximo. Sempre frontal, diz que jamais se afastará da música, prometendo regressar aos estúdios depois desta nova odisseia literária, assim como apresenta também caminhos para uma Angola mais próspera e para todos na breve conversa que manteve com o jornal OPAÍS
Músico, empreendedor, influenciador e escritor: em que faceta hoje mais se identifica?
Assim como um fotógrafo utilizaria a fotografia para representar literalmente a realidade objectiva, eu utilizo todos os meios ao meu dispor, quer seja por meio da música, na forma e meu modo peculiar de empreender, influenciar e escrever para descrever as malambas e os anseios de um grande povo que precisa acreditar em si mesmo para romper paradigmas e erguer a grande nação dos Ngolas.
Prepara-se para nos próximos dias lançar o livro Ubuntu – Nós por Nós, quatro anos depois de publicar ‘Matemática da Coerência’. Parece que a escrita vai roubando o músico?
A minha escrita é uma extensão da minha música, pois é a minha música que alimenta a minha corrente literária em certo sentido. Por outras palavras, hoje por meio da escrita estou simplesmente a literatizar a minha música.
E em ambos casos não me dissocio do meu papel de defensor das vozes inaudíveis, por isso sigo narrando as “malambas”, o quotidiano, as crenças, a vivência e os anseios dos “descamisados” da minha terra.
O que difere o novo livro ‘Ubuntu-Nós por Nós’ de Matemática da Coerência que oferece agora?
O hiato de tempo entre um e outro foi propositado? A Matemática da Coerência é um dos eixos do Ubuntu. Ele traz o despertar necessário para a necessidade do hommo angolensis assumir as suas responsabilidades individuais.
E Ubuntu é o próximo nível! Etu mu dietu! O nós por nós! Uma filosofia africana que enfatiza a importância da união, da comunidade, do respeito mútuo, da tolerância e do amor ao próximo.
A filosofia Ubuntu tem um papel crucial a desempenhar na educação das crianças e dos futuros líderes do nosso país e até mesmo do continente.
Ubuntu’ é uma filosofia africana assente na união em vários domínios, incluindo os políticos, económicos e sociais. É o que se propõe em oferecer aos leitores?
Com certeza. O princípio activo é chamar atenção ao facto de que as vitórias nos campos político e económico jamais chegarão para nós africanos sem que o campo social esteja harmonizado na sua plenitude.
A filosofia UBUNTU é uma colecção de princípios, valores e práticas que representam o nosso mais profundo querer e a nossa vontade de ser e estar, por isso é a alternativa viável e saudável para a conquista da nossa base social, cultural, política e económica.
Lê-se na sinopse do livro que ‘cada tema ou subtema, de igual modo as reflexões e conceitos contidos no livro nos revelam que o autor não parou no tempo, muito menos deixou de se preocupar com os problemas de toda a ordem que o seu amado povo enfrenta’. O que andou, então, a pensar durante este tempo de ausência e quais são os grandes problemas que identificou?
Eu sou um “active lerner” e o facto de estar em permanente reciclagem não me deixa dormir com os olhos abertos e a mente engessada.
O que me move é gritar que a cultura de paz deve estar no centro das nossas preocupações individuais e colectivas e cabe a nós africanos encontrarmos, urgentemente, soluções para a paz, que nos dará a estabilidade e nos permitirá alcançar prosperidade aqui mesmo.
Qual foi a razão da escolha de Bonga Kwenda para prefaciar a obra?
O Kota Bonga é a maior expressão viva da nossa cultura. É o maior expositor histórico-cultural da nossa essência. Quem melhor do que ele pra prefaciar essa obra?
As suas músicas sempre foram prenhes em mensagens que levam a reflectir sobre a angolanidade, Angola, seus problemas e a forma de actuação dos próprios angolanos. O momento político que se vive hoje não lhe cria fortes inspirações para compor?
Na realidade dos factos, as minhas músicas sempre foram um alerta sobre o facto de que o nosso Titanic estava em direcção a uma ponta de iceberg.
Tal como predito nos meus temas, ao insistirmos na direcção errada chocamos nesse iceberg e aquele pequeno rombo no casco está a causar-nos esses danos todos e se não nos precavermos, enquanto ainda há tempo, é naufrágio à vista.
Como encara hoje Angola em termos políticos, económicos e sociais?
O que pensa que falta nesta fase? Por um lado, nessa fase, o que nos falta é estarmos congregados no espírito Ubuntu.
A “Filosofia do Nós”, do bom senso, do exercício da racionalidade que nos traga benefícios.
Por outro lado, falta a existência do mínimo material para possibilitar a sobrevivência do angolano. Faltam resultados concretos para a população, sobretudo a porção mais carente e desamparada.
A história pós independência não pode continuar a ser um conto de esforços fracassados e de aspirações não alcançadas.
Qual é a visão que tem hoje da juventude angolana e qual tem sido o seu papel na busca de soluções de facto? É aquela com que sempre sonhou, por exemplo, este Dog Murras que hoje se vai transformando num cidadão do mundo?
A juventude que temos é o reflexo da sociedade em que estão inseridos. Os jovens perderam a esperança no futuro. Isso desmotiva, traz desequilíbrios e as consequências que estão presentes deveriam nos afligir.
Mas os jovens não podem ser culpabilizados pelos seus desaires, porque nenhuma geração se educa sozinha. Precisamos de criar políticas públicas sérias para a juventude, e isso não é formar jovens para lavar carros na rua, que é até proibido, mas falo em prepará-los para atenderem às demandas da globalização e se inserirem nos ventos de mudanças sociais e tecnológicas que estão a transformar o mundo.
O desemprego tem sido um dos calcanhares de Aquiles das autoridades angolanas, tendo o Presidente da República, João Lourenço, num determinado momento, classificado como sendo uma dor de cabeça para o seu executivo.
Vimo-lo a apelar que muitos jovens pudessem lançar a mão à terra, investindo sobretudo na agricultura.
O que estará a faltar para que se olhe para esse nicho de forma diferente? As consequências do desemprego são dramáticas e devastadoras, tanto do ponto de vista do desempregado e da sua família quanto do ponto de vista social e político, inclusive há estudos que comprovam um aumento de problemas relacionados com a saúde física, mental, violência, crime, radicalização política, desorganização familiar e social.
Isso quer dizer que essa conta será paga por nós de forma directa ou indirecta. O desafio é achar caminhos.
A agricultura é, sem sombra de dúvidas, uma saída. Eu incentivo os jovens a lavrarem a terra ao mesmo tempo que incentivo o Governo a comprar os alimentos produzidos por eles, enquanto constrói as vias de comunicação e garanta a portabilidade para garantir o escoamento desses produtos em tempo hábil, pois os produtos da terra são perecíveis e logo após a produção devem ser distribuídos.
Vive num país em que o empreendedorismo é quase genético e a juventude não se atrela ao Governo, sobretudo para contornar a questão da empregabilidade. Angola tem condições para viver a mesma situação?
Angola enfrenta hoje um dos maiores desafios para um país que quer caminhar. Como poderemos eliminar o desemprego sem reactivar a economia?
Os empresários de pequeno e médio porte estão a gritar por causa da instabilidade do Kwanza, para nós que dependemos das importações até do básico, isso põe em risco as compras de suprimentos no exterior. Faltam incentivos fiscais, faltam créditos com juros bonificados, falta mão de obra qualificada, etc. Penso que o governo deve assumir o seu papel de agente activo do processo de desenvolvimento, isso garantiria um maior investimento na educação dos jovens para prepará-los para o mercado de trabalho e quanto mais preparados e actualizados estiverem, mais chances os jovens terão de obter o emprego e se manter nele.
Quais são, no seu ponto de vista, os principais entraves para que a juventude possa, de facto, singrar no país?
Meu mano, jovens que nem estudam e nem trabalham ficam acorrentados nas barreiras da pobreza. A gritante falta de oportunidades para os jovens gera desmotivação. Faltam ferramentas necessárias para realizarem as suas aspirações.
Há uma imperiosa necessidade de implementação de políticas públicas que fortaleçam a capacidade dos jovens de aspirarem a objectivos, criar e levar adiante os seus projectos de vida.
Já se passaram oito anos desde o lançamento do Best Of Dog Murras. A música vai ficando em segundo plano?
Eu estou consciente que a música é uma das formas de expressão da cultura popular, que exerce uma importante função na construção de identidades na sociedade moderna.
Portanto, passar a música para segundo plano em minha vida jamais! Inclusive, confidenciote já que depois do Ubuntu tenho agendado a volta aos estúdios para gravar a minha oitava obra discográfica.
Sente-se realizado no campo musical, isto é, depois dos lançamentos de Sui Generis, Natural e Diferente, Bué Angolano, Pátria Nossa, Kwata Kwata, Angolanidade e Best Of. Como avaliaria o seu percurso musical?
Eu, como interlocutor da insatisfação social, dou voz a quem não tem voz e uso a música para desempenhar o papel de informar as pessoas sobre a necessidade de uma mudança social que favorece e estimula uma série de valores importantes que possibilita o rompimento de um ciclo pernicioso.
O que a música lhe proporcionou até aos dias de hoje?
Não haveria o Dog Murras que conhecemos se não existisse a música? Sem sombra de dúvidas.
O que pensa da música que se faz nos últimos tempos?
A música que se faz hoje reflecte o tempo que vivemos, as crises da falta de comprometimento com as coisas, do improviso, do descompromisso, do descaso, das amizades e amores líquidos, da felicidade passageira. É assim que observo.
Houve quem se perguntasse sempre se o que Dog Murras canta é kuduro, kazukuta ou um outro estilo: qual é, afinal, o estilo de eleição que adoptou?
Eu sou filho da Mãe África. Aqui a nossa maior riqueza é a nossa diversidade cultural, como a dança, música, pintura, escultura, etc. A minha música é simplesmente uma salada de ritmos que congrega parte de toda essa diversidade cultural.
Considera-se um músico revolucionário?
Não me considero revolucionário, sou um músico de intervenção social, um interlocutor das vozes inaudíveis, mas, sobretudo, um progressista que almeja e exige uma conquista de níveis crescentes de bem-estar para a maioria da população, ampliação dos direitos sociais, desenvolvimento económico e que o usufruto das riquezas naturais da nossa terra seja repartido em medida justa e recalcada para todos os filho dessa terra.
O que pensa da política que sempre esteve presente, de forma directa ou indirecta, nas mensagens que sempre transmitiu nas suas músicas? Nunca pensou em se tornar também um político?
Qual é a opinião que tem dos políticos angolanos e dos principais partidos? A partir da leitura da realidade, considerando o contexto nas suas várias expressões: sociais, político, ideológico, cultural e económico, identifico acções que visam motivar o desejo dos nossos líderes governamentais de corrigir e solucionar situações em que a sociedade, por certos motivos, apresenta problemas motivados pelo sistema social vigente que gera uma situação negativa, de desconforto ou exclusão social na população.
Considero-me um cidadão político quando uso a minha música como um mecanismo de influência e mobilização de mudanças, que acredito serem de bem-estar e interesse colectivo, porque promove o desenvolvimento de um movimento de massa critica.
Quanto aos políticos dos principais partidos políticos, acredito que cada etapa da vida tem os seus próprios desafios e uma geração capacitada de lidar com os mesmos. Estes que enfrentaram o colono e trouxeram a independência já cumpriram com o seu papel, daqui para diante deveriam passar o bastão para os mais novos.
O novo sempre supera o velho. É o ciclo da vida. Há uma geração de angolanos muito capazes, com bons princípios, honestos, bem formados e informados, com visão actualizada e com capacidade para enfrentarem os desafios que a geopolítica de hoje e do amanhã nos coloca.