Está a desenvolver uma série de concertos através do projecto “Nanutu Sax From Angola”, iniciado em Setembro do corrente ano, com o qual celebra os 50 anos de carreira que vai ser assinalado no próximo ano. Por que o projecto teve início fora do país?
É um projecto que iniciou em Setembro, estive nos EUA, Inglaterra, França, Bélgica, Holanda, Alemanha e Espanha. Comecei a realizar estes concertos fora do país devido à oportunidade que surgiu. Como já tinha o projecto montado, aproveitei, comecei logo a apresentar o “Nanutu Sax From Angola cinco décadas”.
São de facto 50 anos de carreira e é um inédito para um instrumentista, no caso saxofonista angolano, ter alcançado esta meta com uma carreira internacional.
Não existe na história do país tal facto, nem vejo assim, a curto prazo, outro instrumentista que faça igual, porque eu comecei antes da Independência Nacional. Esta jornada vai terminar a 11 de Novembro do próximo ano, no país.
Como foi a sua apresentação nos sete países onde esteve? Deu para interagir com a comunidade angolana?
Só para explicar, os meus eventos não são propriamente só para a comunidade angolana, embora o faça pontualmente. Estou a tocar em vários eventos, com vários caracteres, que pertencem ao World Music, o mundo da música, e em grandes festivais pelo mundo fora.
E, portanto, este é o conceito, é a demonstração de que a música instrumental angolana ganhou uma dimensão internacional sem que eu próprio tivesse a noção de que isso iria acontecer.
Conforme expliquei, o formato que estou a apresentar lá fora depende muito do espaço, essencialmente. Se for em auditórios, os músicos são mais reduzidos, se for num espaço de grande dimensão, há mais músicos.
E no país, os concertos terão o mesmo formato?
É o mesmo que vai acontecer cá no país, com outras nuances que a breve trecho irão ver porque cabe, acima de tudo, perceberem que não vou apresentar só uma parte electrónica, vou apresentar também uma parte tradicional, com instrumentos tradicionais, o que vai ser, de facto, uma surpresa porque o projecto que tenho abrange várias áreas da música e vão perceber que nunca foi feito no país: vou usar como melhor indicador os instrumentos tradicionais, todos acústicos.
Eles baseiam-se desde a Ngoma Grave, Ngoma Média, Kibabelo, Mukindu, Dicanza, entre outros, misturados com este lado tradicional, e os cantos tradicionais. Vão ter cantos populares e depois uma parte electrónica que entra o estilo Semba, Kilapanga, Tchianda e outros. Portanto, isso vai ter um processo de um ano, com vários conceitos.
O que vou fazer aqui é valorizar os nossos músicos porque lá fora, por questões de logística, é complexo, quer a nível de obtenção de visto, quer de deslocação dos nossos músicos. Há esse problema.
Nos concertos fora do país, teve a participação de músicos locais?
Facilita muito mais eu trabalhar com músicos africanos de vários países que estão a residir em França, que é a Banda Formação e está com seis músicos: do Senegal, Costa do Marfim, Nigéria, Togo, Gabão. Portanto, França, acima de tudo, Paris é o centro da música africana e os melhores têm de lá estar. Esta é a formação com quem trabalho lá fora.
Cá, no país, já é uma outra formação, são essencialmente 100% dos músicos angolanos porque faço questão de ser não só apresentado, mas também filmado, porque é um dos défices que nós temos na apresentação da música angolana lá fora.
Como assim?!
Nós, infelizmente, digo isso com uma certa tristeza, não temos os nossos artistas internacionais a fazerem os festivais, os grandes eventos internacionais pelo mundo. Havia quatro, o Bonga, Sam Mangwana, o falecido Waldemar Basto, igualmente o Teta Lando e Raúl Indipwo. Neste momento, quem está bem no activo é o Bonga. Além dele, não temos outros. A geração intermediária lá não está, e a nova geração então, quer vozes masculinas ou femininas, não temos ninguém.
Sendo um dos pioneiros do sax que tem levado o nome do país além fronteiras, espera ser reconhecido pelo trabalho que faz?
Esperar não! Nunca esperei ser reconhecido, porque se tivesse que esperar, não chegaria onde cheguei. Isto é um facto. Agora, de ser reconhecido de facto não sou. Embora tenhamos um ministro da Cultura que tem sido sensível e já houve, inclusive, parte do reconhecimento, mas eu penso que não é só o Ministério da Cultura que tem que reconhecer o artista e os seus feitos.
Eu penso que as estruturas no país têm que perceber que há uma estrada feita de 50 anos. Não são cinco dias, é meio século e isso é histórico. Eu direi que não há um instrumentista que conseguiu este feito.
E pelo público angolano, sente-se acarinhado?
Em contrapartida, eu tenho sido reconhecido, bem abraçado e acarinhado pelo povo, pelo público, na generalidade, de toda a República de Angola. Isto é sempre mais-valia. Não há sítios que eu não vá que não seja reconhecido. E não é só reconhecer porque canto, é o reconhecimento e aquele amor e paixão que têm por mim, pela profissão que exerço por tocar.
E aqui encontramos uma diferença. Então, penso ser hora de ser reconhecido a outros níveis, até porque eu sou saxofonista e tenho uma carreira internacional.
Como saxofonista, ou seja, um instrumentista de sopro e mesmo como guitarrista angolano não conheço nenhum que tenha neste momento um currículo como o meu, chegar onde eu cheguei e por onde eu passo por vias próprias, sem patrocinador, sem apoios. 90% dos investimentos feitos, quer ao nível dos CDs gravados, quer ao nível da minha projecção, foram feitas pelos cachês que eu fui ganhando.
Portanto, tudo que eu ganhei investi. Embora agora tenha, naturalmente, uma empresária: trabalho com um empresário nigeriano , também com uma empresária holandesa.
O trabalho com estes empresários resulta desta abertura em vários palcos pelo mundo?
Foi o grande alavanque porque a empresária holandesa funciona em uma parte da Europa e também domina os grandes festivais, estes grandes eventos que existem pelo mundo.
Com o empresário nigeriano, sabemos todos nós que a Nigéria neste momento é musicalmente um dos países mais fortes ao nível de África. Estou a trabalhar com músicos nigerianos e este empresário tem conhecimento da chamada World Music. Foi assim que ele me levou a participar num festival no Dubai, que se chama All África Festival, há dois anos.
Toquei para 20 mil pessoas, ali onde tem a grande torre no Dubai, no Burj Khalifa, em Abu Dhabi, depois levou-me a Singapura, Camboja, Tailândia e Coreia do Sul.
Portanto, como vêem, é um empresário nigeriano que me coloca na grande arena da música internacional. E ele é uma das pessoas que me pergunta o que se passa com a música angolana? O porquê é que os artistas angolanos só ficam entre Angola e Portugal. E eu disse-lhe, expliquei que é uma questão de agenciamento. As agências de artistas são muito locais, os empresários são todos para aqui.
Não acha que este processo poderia funcionar cá, através dos nossos promotores de eventos?
Mas, os promotores de eventos cá não têm uma visão internacional. Nós recebemos muitos artistas estrangeiros no país, em contrapartida, não pegamos nossos artistas e colocamos nestes países onde são provenientes estes profissionais.
E este é um problema. Portanto, a troca de serviços, os promotores têm que ser mais ambiciosos, têm de ter outra visão comercial porque hoje em dia o mundo, a dinâmica do mundo da música e certas plataformas dinamizaram este processo.
Este é um dos grandes défices que temos. Por isso é que estamos a lutar para que o nosso Semba seja Património Imaterial da Humanidade. O Semba não pode ser só ouvido em Angola, Portugal, ou até mesmo ao nível dos países da CPLP. Tem que ser muito mais. Nós temos que nos impor. França é o centro da música e dos músicos africanos, estão lá Salif Keita, Youssou N’Dour.
“O meu único sonho em toda a carreira de 50 anos só foi um: tocar no Conjunto Merengue”
Mas temos o Bonga neste meio…?
O Bonga vive no meio de grandes festivais, mas já tem uma certa idade. E, nós, a qualquer momento, corremos o risco de não ter mais nenhum artista na arena internacional. Portanto, cada ano que passa, nós temos que contabilizar, porque quando tínhamos, os outros minimizaram.
Resumindo, é: há a necessidade de nós termos os nossos artistas a participarem em grandes festivais, mas levando os instrumentistas angolanos. A antiga geração de músicos, que devia ser protegida e acarinhada, penso que foi desprezada. São, de facto, os maiores alicerces que temos na música angolana.
Disse que pensa que a antiga geração de músicos foi desprezada. De que maneira?
Por falta de apoio, acolhimento, de serem acarinhados, de serem reconhecidos. Os mais velhos não foram devidamente reconhecidos. E eu passei por esse processo na minha caminhada, senti na pele o que eles sentiram, só que eu, mais jovem, tive a ousadia de perceber a tempo e hora que não era ali que devia ficar, que tinha de dar um outro passo. E este outro passo foi o que eu fiz.
O que temos que perceber é que, se nós hoje temos música angolana, devemos acima de tudo aos mais velhos que gravaram nos anos 50, 60, 70, 80 e por aí adiante. Este foi o grande alicerce, mas nós não sabemos aproveitar.
E alguns estão aí, outros já não estão aqui, mas temos é que saber aproveitar o que falta, porque a geração intermediaria e a nova geração já têm outros caminhos.
Eles precisam de beber mais da nossa tradição, muito mais da nossa tradição, para que possam ir buscar o que é tradicional, transformado para popular, e depois de popular, então promovermos a nível internacional. Só para citar aqui um detalhe: o kizomba é nosso, mas eu já estive em países que dizem que o kizomba é deles. Isso porque nós não sabemos nos impor.
Por isso, defende a participação dos nossos músicos nos grandes eventos internacionais?
Sim. Nós focamos muito entre Angola e Portugal. Temos que sair deste aspecto, face ao termo, gueto, e pensarmos muito mais além, muito mais vantajoso porque Angola é muito maior do que aquilo que pensamos.
E nestes 50 anos de carreira, quais são os factos marcantes?
Vou dizer aqui várias coisas, mas muito sintéticas: eu toquei enquanto criança num grupo militar que era o Aliança Fapla-Povo com David Zé, Artur Nunes, Urbano de Castro e Santocas.
Na altura, eu devia ter 13 a 14 anos. Eu nasci a 03 de Setembro de 1961. Portanto, eu era menor. Por isso é que comecei antes da independência. Eu era da OPA, toquei na banda da JMPLA, antes da independência e depois, ainda menor, pertencendo à OPA, fui às FAPLA, no grupo Aliança Fapla Povo, em que os líderes eram os músicos que acabei de mencionar.
Então bebeu muito destes músicos mais velhos?
Por isso é que eu falo muito dos mais velhos. É aí que eu bebi, mas depois surgiu aquele que eu chamo o meu único sonho. O meu único sonho em toda a carreira de 50 anos só foi um: tocar no Conjunto Merengue, porque na época, para além de ter gravado muitas músicas e grandes êxitos com David Zé e todos os grandes artistas, eles tinham gravado aquela música “Camarada Patos Fora” que eu uso também na minha música.
Neste grupo, tinha um grande líder que era Carlitos Vieira Dias, o Zé Keno, solista, Joãozinho Morgado, nas cordas, Gregório Mulato que foi guitarrista dos Águias Reais, Vado Costa, irmão do Carlos Lamartine, que cantava Milhoró.
O grupo tinha dois instrumentistas de sopro e o meu sonho era justamente por isso. E estes dois instrumentistas de sopro, já experientes, foram os que inventaram a frase “Camarada, patos fora” que se ouve nas músicas. Então, foi o indicador que eu tive de chegar até lá. Este foi só o meu único sonho.
E como foi depois de lá estar, conseguiu alcançar o objectivo?
Quando eu lá cheguei, só a partir daí é que percebi que poderia fazer muito mais. Tudo o que veio a seguir foi um complemento deste sonho porque gravei os clássicos. Fui o primeiro saxofonista a gravar os Clássicos da Música Angolana nos anos 80, como “Muxima”, Birin Birin”, “Belina”, “Negra de carapinha dura” quando ninguém cantava e hoje toda gente canta, temas que serviram de separador antes dos noticiários na RNA e na TPA.
E a partir daí começaram a cantar os grandes clássicos. Estou só aqui a pontualizar vários clássicos que gravei e que deram, então, a dimensão e depois o aconchego do tal sonho e que, a partir daí, percebi que poderia ser um saxofonista internacional e que teria uma carreira a solo.
Falou sobre a sua vivência com grandes nomes da música nacional. Nos eventos que vemos hoje, não tem havido esta partilha de palco de músicos da antiga geração com os da nova geração. Acha esse intercâmbio importante entre os artistas?
Há coisas que são feitas pontualmente. Mas nós temos um problema: os promotores e as produtoras têm os seus artistas. Ou seja, o que está a acontecer em Angola nos anos 80 não acontecia.
Criaram-se grupos e os mesmos são justamente os tais elementos que depois vão acrescentando este ou aquele. Ou seja, nunca se abre o leque. São sempre as mesmas pessoas, com os mesmos artistas e os mesmos músicos.
Eu não quero dizer que não se tenha feito! Pode-se até ter feito com artistas mais velhos com a nova geração, mas ainda não se ganhou a dimensão do que se tinha feito atrás.
Eu penso que se fez muito mais entre os anos 70 e 80 na música angolana, dos mais velhos ir passando para a geração mais nova. Eu, neste caso, que pertenço à geração intermediária, bebi. Fez-se muito mais do que a partir dos anos 90 para frente.