A carência de palcos para apresentação das suas performances e a escassez de eventos regulares faz com que alguns grupos de dança de Luanda recorram a trabalhos ocasionais, vulgo “biscates”, para se manterem vivos e activos
Num universo de mais de 300 grupos de dança, espalhados por Luanda, os seus integrantes deparam-se com a dura realidade do mercado nacional que, a cada ano, se vai confrontando com a redução considerável de grandes eventos de promoção da dança como aconteciam anteriormente nos grandes palcos.
Com a carência de palcos e eventos regulares, os grupos veem-se “obrigados” a recorrer a trabalhosextra, vulgos “biscates”, sejam eles de pequena ou média dimensão, para garantir a sua existência e o sustento dos seus integrantes, como apurou este jornal junto de alguns líderes e associações de dança de Luanda.
Estes actuam nos mais variados estilos, desde danças folclóricas, semba, massemba ou rebita, kizomba, kilapanda, kuduro, e até danças internacionais como balet, hip hop, street dance e R&B.
Existente há 39 anos, o respeitado Colectivo de Dança Kilandukilu sente falta dos “tempos de glória” em que a dança era mais valorizada, promovida e melhor divulgada, elevando a cultura nacional aos mais conceituados palcos internacionais, como adiantou o responsável do grupo, o professor Maneco Vieira Dias.
Apesar de já ter pisado nos grandes palcos nacionais e internacionais, levando a bandeira das diferentes danças nacionais a vários cantos do país e além-fronteiras, o grupo Kilandukilu, segundo Maneco Vieira, sente que a dança vai perdendo aos poucos o prestígio que tinha fruto da falta de incentivo e investimento por parte das instituições de direito.
Maneco adverte para a necessidade de se tratar a classe da dança com a mesma dignidade que é atribuída à música e outras artes, defendendo o retorno dos grandes festivais de dança aos principais palcos de dança, o que irá devolver à arte a dignidade merecida.
Questionado sobre a actual situação do grupo, Maneco disse que está a passar por um processo de reestruturação, dado os anos de existência, permitindo a inclusão de ideias inovadoras e promissoras, bem como a integração de novos membros ao corpo directivo.
“Nós temos estado a fazer um trabalho de reestruturação e renovação da direcção do Kilandukilu e isso tem permitido que o grupo se mantenha jovem”, adiantou.
Disse ainda que o grupo está a desenvolver um trabalho de integração de novos membros, mas que estes passam primeiramente por um processo de preparação, capacitação e de seguida são avaliados para posteriormente serem integrados.
Em relação às barreiras e limitações, Maneco revelou que o colectivo tem enfrentado inúmeras dificuldades, como a ausência de patrocínio, a falta de espaço para os ensaios, a carência de materiais técnicos e de instrumentos que permitam uma melhor preparação.
Sem esconder a sua insatisfação pelo actual cenário, agravado pelo contexto económico e financeiro que o país atravessa desde 2014, o responsável manifestou-se orgulhoso pelos feitos do Kilandukilu e assegura que o grupo “está longe de desaparecer”, independentemente das barreiras que o mercado da dança vier a apresentar.
Preparação dos 40 anos
Fundado a 15 de Março de 1984, o Kilandukilu está a trabalhar na preparação das celebrações dos 40 anos de existência a se assinalar no próximo ano.
Nesta altura, serão desenvolvidas inúmeras actividades desde campanhas de aulas de dança, espectáculos e um dossier documental sobre a história de um dos mais conceituados e premiados grupos de dança de Angola.
Actuação em festas de noivados e casamentos
Na mesma luta pela sobrevivência encontra-se o experiente grupo Bailado do Kinanixi, um colectivo existente há 33 anos, mas que enfrenta os desafios recorrendo a festas particulares, como noivados, casamentos, aniversários e outros eventos de fórum privado.
De acordo com o vice-presidente e coreográfo do grupo, Paulino Nombele “Boina”, há mais de dez anos que não se realizam, em Luanda, os grandes eventos de dança, situação que deixa a arte despromovida e os grupos vulneráveis.
“Boina” entende que a dança, assim como os grupos que a executam, deviam ser melhor valorizados e promovidos, uma vez que “é uma arte que expressa a realidade de vivência dos povos e suas diferentes culturas”.
“Neste momento, os grupos de dança estão a sobreviver praticamente mais por meio de casamentos, festas de aniversário ou noivado.
Actividades dançantes hoje em dia já não temos. Os grandes palcos viraram apenas espaços para a música, é só vermos hoje o que acontece todos os anos com os Coqueiros”, indicou.
Ausência dos grandes espectáculos de dança
Segundo Alberto de Jesus “Jorix”, coordenador da Companhia de Dança Maianga e Samba, nos últimos anos manter a dança viva no seio do colectivo tem sido uma missão cada vez mais difícil em função da escassez de palcos para a apresentação, fruto da falta de realização dos grandes eventos de dança.
Em declarações a este jornal, o bailarino contou sobre as “dinâmicas” que o grupo tem procurado implementar para se manter activo nestes tempos difíceis, destacando que as actividades extras se tornaram um grande suporte para o sustento do colectivo.
“Têm sido um grande suporte nestes tempos difíceis e temos que recorrer para se manter”, disse o responsável, acrescentando que “actualmente vivemos momentos mais difíceis na nossa disciplina [a dança] ”.
O bailarino, de 49 anos de idade, considera que os grupos de dança estão a atravessar um momento delicado para se manterem firmes no mercado, fruto da carência de espectáculos que possam elevar a dança ao nível de prestígio que merece.
Para o responsável, os promotores de eventos e os agentes culturais pouco têm feito para que a arte possa atingir o mesmo nível de valorização que a música, o que, no seu entender, é uma “injustiça”, uma vez que as duas artes são inseparáveis.
“Os promotores quando realizam eventos esquecem-se da nossa disciplina. Sinto que há uma espécie de ‘boicote’ para que a nossa arte não esteja representada da maneira que merece”, expressou.
Desistência da dança por força das necessidades
A pouca ou quase nenhuma realização de eventos de dança de grandes dimensões faz com que os integrantes dos grupos se encontrem em situações caricatas, enfrentando necessidades materiais, logísticas e falta de motivação.
Esta situação, segundo afirma Carolino Pembele, coordenador do grupo de dança Luz e Vida, do município do Kilamba Kiaxy, tem levado com que alguns bailarinos abdiquem da dança para se dedicar a outras áreas profissionais por sentirem que a arte não pode garantir o sustento de suas famílias.
Segundo o bailarino, a realidade não apenas afecta os grupos de dança, mas “empobrece a arte, em particular a dança, e a cultura em geral” por ser uma área abrangente a várias facetas da vida social.
O mesmo afirma não entender as razões da pouca promoção da referida arte nos dias de hoje, e apela ao ministério de tutela e às grandes organizações de eventos maior atenção e intervenção para que a dança seja valorizada como uma área profissional e que não seja vista como “uma muleta da música”.
“Se existem os festivais nacionais de música, de poesia e literatura, não se entende porque não temos festivais de dança como antigamente.
A Baía de Luanda e o Estádio dos Coqueiros deviam ser usados também para promover a dança, as artes plásticas, a literatura e outras.
Deste jeito estaríamos a dignificar as diferentes artes da mesma maneira”, apontou.
AGRUDANÇA aposta na profissionalização da dança
A Associação dos Grupos de Dança de Angola (AGRUDANÇA) diz estar a trabalhar na promoção e valorização da dança, em especial, no processo de profissionalização da arte para garantir a autossustentabilidade dos grupos.
De acordo o presidente daquela organização, Adriano de Freitas, a associação, criada em 2020, está com as atenções viradas às acções que visam assegurar a auto-capacitação dos grupos e a sua sustentabilidade financeira.
“A associação foi criada com o objectivo de profissionalizar os grupos, procurando sustentabilidade financeira dos mesmos.
Para tal, achamos por bem unirmo-nos para juntos encontrarmos soluções para melhoria da arte”, explicou.
Com o lema “cientificidade e profissionalização da dança”, consta da lista de prioridades da organização a aposta na formação dos integrantes dos grupos de dança, sublinhando que a dança, mais do que uma arte, é uma ciência e, por esta razão, os fazedores precisam estar munidos de conhecimentos para melhor a compreenderem e a executarem.
Sustentabilidade
Adriano disse ainda que a associação pretende fazer da dança uma fonte de rendimento para os respectivos grupos, de modos que a partir da arte se desenvolva o empreendedorismo cultural no ramo da dança.
Defende que é possível tornar a arte da dança rentável o suficiente para garantir o sustento dos seus fazedores.
Por esta razão, entende ser necessário a aposta na formação dos artistas e na criação de projectos que fomentem o sector atraindo investidores.
“É possível fazer da dança uma fonte rentável, basta acreditarmos e trabalharmos para tornar isto real.
Noutros países, por exemplo, há bailarinos que só vivem da dança, se formam para isto e são tratados com respeito e dignidade, porque não fazermos também aqui onde temos ricas danças?”, expressou.
Intercâmbio cultural
O responsável frisou que a sua organização tem em carteira um projecto de intercâmbio cultural entre Angola e Espanha, cujo objectivo é desenvolver um estudo para a uniformização da dança Kizomba a nível dos países da Europa, bem como na criação de plataformas de reconhecimento do estilo a nível mundial.
“A nível da Europa temos assistido a uma proliferação da dança Kizomba, sentimos que o estilo está a perder a sua originalidade, porque há pessoas misturando com passos de outros estilos.
Então, este projecto vai permitir a uniformização da dança para que ela seja reconhecida e ensinada com regras internacionalmente conhecidas”, adiantou.
Integrantes
A associação, segundo o seu presidente, é constituída por um conselho directivo e uma assembleiageral, e cerca de 300 grupos membros dos mais variados estilos, com representantes espelhados nas províncias de Luanda, Benguela, Malanje, Huambo e Bié.
Conta ainda com um estatuto que estabelece o limite de mandato da direcção, que é eleita em assembleia geral por todos os integrantes.
Por: Bernardo Pires