Em Buenos Aires, na Argentina, Juan Martin Guevara, irmão de Ernesto Che Guevara de La Serna, falou ao jornal O PAÍS do livro que escreveu em homenagem ao seu mano mais velho “Mi Hermano El Che” e dos momentos em que o também médico entrou para a revolução em Cuba e noutros pontos do mundo em nome dos povos oprimidos
Che Guevara, seu irmão mais velho nascido em Rosário, na Argentina em 1928,apesar da sua morte em 1967 na Bolívia, é um nome que continua a fazer eco no mundo.
O que é o seu livro “Mi Hermano El Che?”
Na realidade, o objectivo do livro é humanizar a figura de Che Guevara e as pessoas saberem como é que ele era no seio da família e como nasceu e cresceu em Rosário, sua terra natal, na Argentina.
Que memórias tem de Che Guevara antes de ser o caminheiro que o mundo até hoje conhece?
O Che era muito meu mais velho, basta ver que ele nasceu em 1928 e eu em 1943. São catorze anos de diferença.
Era uma relação de irmão mais velho e de irmão menor.
Ele era um irmão mais velho que cuidava de mim e estava sempre preocupado em saber de todos, porque éramos cinco (de pai e mãe) e mais três de pai.
No vosso tempo, em casa, qual era a maior ocupação do Che?
O Che, como o tratávamos em casa, era muito estudioso, tinha muitos livros no seu quarto.
O Che nos habituou, muito cedo, a ler e a discutir questões sobre liberdade e educação, além de que falava muito de medicina, porque gostava de ver as pessoas com saúde.
No seu livro aborda muitas das características do Che, pode citar algumas?
O Che era o nosso companheiro ideal e de sangue. Sempre defendeu políticas de esquerda e estavam assentes em muitas características como alguém muito inquieto com as injustiças, era um grande investigador lendo e conversando com as pessoas da sua idade. Portanto, essas coisas fizeram dele um grande homem no mundo.
O Che era irredutível nas suas ideias?
Não, mas gostava andar de bicicleta, como mostram algumas fotos dele no passado, e um dia o questionei, porém ele respondeu que é importante ir sempre, com atenção e cautela, para frente, porque é lá onde está a liberdade dos povos oprimidos.
Essa era também uma das suas características.
Como assim?
O Che sempre pensava para frente, mas com esquemas bem desenhados e punha sempre em prática os seus planos.
A família actualmente ganha alguma coisa a imagem de Che?
A família não ganha nada ou algo com a imagem de Che nas camisolas, bandeiras e noutros artefactos da moda.
Porquê?
O fotógrafo italiano Alberto Korda, que fez a foto, é quem se tornou famoso, porque fez a mesma num barco que transportava armas para Cuba.
Penso que ele estava, até, muito sério na imagem que hoje continua a correr o mundo.
A foto de Alberto Korda fala, como diz o provérbio popular, mais do que mil palavras?
Sim, é uma foto icónica e em verdade a família nunca cobrou algo pela imagem do meu irmão.
Que reconhecimento é que tem na Argentina, em Cuba e noutros pontos por onde passou o Che?
O jornal La Nacion da Argentina é um dos que mais aborda assuntos sobre o Che e ele nos leva a perceber a imagem, a dimensão e o reconhecimento dele na Argentina, em Cuba e noutros pontos.
Nesses países, o Che continua a ser uma transferência transformadora social, política e económica que influencia, por via da história, as mais novas gerações.
É evidente que o Che defendia as políticas de esquerda. Hoje partilhas as mesmas ideias?
Com as suas ideias de esquerda, o Che era inimigo e uma grande ameaça para o capitalismo na época, porque os povos oprimidos precisavam de liberdade e é isso que se chama equidade.
Pelo papel que teve no seu tempo, o Che teve tempo para constituir família?
O Che fez cinco filhos.
A sua mulher do primeiro matrimónio, Ilda Galea, mais conhecida por Ildita, porém teve relação com Lara e depois veio a Seldia, aliás todas fizeram filhos com ele e tiveram nomes que tinham a ver com a família.
Como é que Che, sendo argentino, entra para a revolução noutros países?
Foi um processo que ele consolidou com os estudos e com a leitura, porque ele aprendeu com a vida.
Ele realizou uma viagem de bicicleta da Argentina para outros países da América Latina até aos Estados Unidos da América e foi vendo qual era a realidade dos povos.
Ele não queria ficar somente pelas notícias e então decidiu partir.
E, à medida que foi passando pela Bolívia, Guatemala, Chile e outros países deparouse com muita pobreza e miséria.
Logo era necessário fazer alguma coisa, daí ele ter entrado para as lutas de libertação dos povos.
Nesse período, ou seja, na década de 50 e início dos anos 60 do século passado, Che já era militar?
O Che integrou uma equipa de militares que fizeram uma reforma agrária que favoreciam o campesinato para melhores condições de vida em vários países da América Latina, mas os Estados Unidos da América, na altura, queriam travar esse movimento.
“A libertação dos povos africanos do colonialismo também estava na agenda das nossas discussões”
E como foi a passagem de Che pelo continente africano?
No seio da família, em casa, falávamos muitas coisas e a libertação dos povos africanos do colonialismo também estava na agenda das nossas discussões, sobretudo no período das independências da África do Norte e depois a Sul do Saara.
Isso estava associado à luta contra o colonialismo.
Mas, o Che compenetrou-se mais em Cuba, porque lá ele encontrou semelhanças com a cultura africana e não na Argentina.
Por isso, Cuba também foi a casa de Che onde chegou a ser ministro da indústria.
A passagem de Che em África foi heróica?
Cuba conhecia melhor a luta de libertação dos países africanos. Por isso, houve a necessidade de Che ter visitado África.
Che passou pelo Congo Belga, na época, a capital é hoje Brazzaville, onde manteve contacto com muitas organizações políticas e algumas delegações dos membros do MPLA que estava no Congo Brazzaville, isto nos anos 60 do século passado.
A força de Che foi oxigénio para os nacionalistas africanos? Bem, digo, em nome da revolução cubana, o Che esteve em África e ajudou, com as suas ideias, a combater o colonialismo.
Era uma política anticolonial bem definida por Cuba e os seus aliados na altura?
Sim, era uma política de Estado cubano e os seus aliados, pois já se pensava numa revolução internacional para a libertação dos povos oprimidos africanos e asiáticos em todos os sentidos contra os imperialistas também.
Qual era o sentimento da família ao se aperceber que Che estava numa luta para defender os povos oprimidos?
Para a família não foi surpresa, porque conhecíamos os ideais do Che, então foi determinante, porque ele sabia, a partir de Cuba, o que estava a fazer em nome dos oprimidos.
Então, em Cuba, lutaram para tirar Fulgencio Baptista, um ditador antipopular, do poder por via da revolução cubana em 1959.
Esse foi o conceito de Fidel Castro e seus companheiros.
Depois da revolução cubana Che visitou a família na Argentina?
Em 1961, de forma clandestina, Che foi para a Argentina, onde se encontrou com as autoridades do seu país, sendo certo que passou em casa e nos saudou e depois regressou para Cuba.
Depois foi para o Uruguai e quando se aperceberam do seu regresso para a Argentina, muitos opositores não gostaram.
“Foi uma honra ver o meu irmão descansar na pátria que o recebeu de braços abertos em nome da revolução”
A morte de Che, em Outubro de 1967, tem muitas versões, conhece alguma verdade sobre ela?
É um assassinato.
O Governo da Bolívia o tomou como prisioneiro e depois o encostaram numa parede onde foi morto.
Qual foi a razão?
As pessoas que orientaram a sua morte pensaram que tudo acabaria, mas hoje a verdade vem ao de cima e muitas coisas escritas começam a ser uma realidade e depois de mais 50 anos ele continua a ser uma referência.
E penso que foi uma ordem dos Estados Unidos da América.
As pessoas que estão na imagem, após a morte de Che, ainda estão vivas?
Há um que ainda está vivo, mas já é mais velho.
Che morre na Bolívia distante dos seus companheiros cubanos…
Sim, morreu no interior da Bolívia. A foto de Che era como se fosse um troféu para nós. Foi muito triste.
Depois disso, cinco companheiros seus também foram assassinados na Bolívia.
Dos seis, atiram um na fossa e outros estavam em parte incerta, daí que o Governo cubano e o da Bolívia, anos depois, entraram em conversações e, assim, mostra a fossa onde estavam os quatro corpos.
Depois, no mesmo local, aparece o Che, mais facilmente identificado, porque estava com as mãos cortadas e mais o seu companheiro.
A família fez parte da homenagem em Cuba?
Nesse ano, fui à República de Cuba na homenagem, uma vez que dos cinco irmãos ficamos dois, com a minha irmã, e outros membros da família.
Foi uma honra ver o meu irmão descansar na pátria que o recebeu de braços abertos em nome da revolução.
E a família de Che quando vai para Cuba?
Há muita gente que faz e fez parte do Governo que me conhece . Sempre que vou para lá de férias, a relação tem sido a mesma, aliás o meu irmão era também uma pessoa de trato fácil.
Cuba é a continuação da história da nossa família.
A minha relação com Cuba deve-se também à literatura, porque já representei várias vezes a Argentina em muitos eventos sobre o livro.
Pensa reunir um dia o espólio de Ché?
Para além do livro, tenho esta intenção de recolher o seu espólio, porque, quando ofereci o meu livro “Mi Hermano El Che” ao embaixador de Angola na Argentina, Fidelino Peliganga, recebi das suas mãos uma fotografia do Che com Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola.
Senti-me tão alegre que me correram lágrimas, portanto compreendi a dimensão do meu irmão mais velho.