Sem financiamento, sem políticas que incentivam o investimento no sector, o cinema angolano vive um “estado de falência” há mais de dez anos. A crise financeira só veio “destapar” o que estava oculto há décadas, consideram produtores do sector ouvidos pelo jornal OPAÍS
Após se terem passados duas décadas de guerra civil, que colocou o cinema ‘refém’ das implicações políticas e militares, com abertura para a produção apenas de documentários de guerra e de campanhas de sensibilização ou mobilização das massas, em 2002 o Estado angolano disponibilizou verbas para a reabilitação dos cinemas e aposta na produção e dinamização do cinema nacional.
Com a iniciativa, são incentivados os projectos de uma nova geração de realizadores, que deu origem, em 2003, ao Instituto Angolano de Cinema, Audiovisuais e Multimédia (IACAM), e é traçado um plano para a recuperação, restauro e conservação do acervo fílmico de Angola. Passados cerca de dez anos, o estado do cinema nacional, segundo alguns produtores, “deixa a desejar”, com o sector a enfrentar dificuldades de várias dimensões, sendo a falta de apoio financeiro e de políticas de estímulo ao investimento no sector apontada como “os maiores entraves”.
Em declarações ao OPAÍS, o produtor e realizador Manuel Terramoto disse que desde que o Estado angolano deixou de injectar verbas no sector do cinema e importar filmes nunca mais houve investimentos na respectiva área artística. Segundo afirma, as salas de cinema encontram-se abandonadas e a maioria em avançado estado de degradação, acrescentando que “os pouquíssimos filmes que têm sido feitos são fruto do ‘espírito aventureiro’ de alguns jovens e de uns poucos que têm fontes de financiamento”.
“Não há um fundo do Estado para o Cinema, nenhuma política acolhe o Cinema. O PIIM não inclui a reabilitação das salas de cinema dos municípios e as salas de cinema pertencentes ao Estado não funcionam, e as dos centros comerciais não acolhem filmes angolanos e, se o fazem, os filmes ficam poucos dias apenas”, apontou as limitações, o artista. No seu entender, a situação poderia ser melhorada ou minimizada, sobretudo nesta altura de crise, se o Estado criasse uma lei que obrigasse as salas de cinema a exibirem filmes nacionais e em períodos regulares.
“Mercado do Cinema é inexistente”
Para o produtor e director artístico Hochi Fu, a nível do mundo cinematográfico Angola ainda não tem mercado. O também realizador justifica a sua posição explicando que, para existir um mercado como tal, deve existir uma relação de procura e oferta, permitindo a abertura de mais espaços de criação, produção e promoção dos filmes nacionais, mantendo o intercâmbio com outros mercados regionais e/ou internacionais.
Salienta que, até ao momento, não existem políticas que visam criar uma sincronia entre a produção, a distribuição e a exibição de filmes para tornar o cinema “sustentável”, facto que o leva a reiterar que a existência de um mercado nacional de cinema “ainda é uma utopia”. Sendo um dos maiores produtores e realizadores das últimas décadas, Hochi Fu acredita que a solução para o ‘romper’ das barreiras para o desenvolvimento do cinema nacional é a separação das questões políticas das artes.
“Primeiro sou de opinião que precisamos deixar de misturar artes, sobretudo o cinema, com questões políticas. Temos que deixar de olhar para o cinema como um espaço de elites e começarmos a dar espaço ao criador, ao artista. Quanto mais darmos estes passos, mais o cinema angolano vai crescer”, apontou. Entende que o cinema precisa de espaço e liberdade que permitam ao artista criar, recriar e expressar-se com maior liberdade possível, respeitando os limites legais, mas que isso só é possível se houver aposta em iniciativas que visam conferir autonomia aos fazedores e à arte em si.
Carência de espaços para a exibição de filmes
Uma outra preocupação que aflige a classe cinematográfica é a quase inexistência de espaços que promovam o cinema nacional, ou seja, a carência de salas de cinema onde possam ser exibidos filmes nacionais. Na visão do realizador Nguxi dos Santos, actualmente os filmes nacionais estão sem espaços para serem exibidos, recorrendo muitas vezes a projectos filantrópicos “singulares” que levam a produção nacional ao encontro do público nas periferias de Luanda.
Segundo afirma o cinema nacional só ganha expressão em festivais cinematográficos (nacionais e internacionais) e/ou em feiras de artes cénicas, ao passo que, sublinha, a sua expansão devia ser uma tarefa diária envolvendo não apenas os artistas e produtores como também as organizações culturais e as instituições ligadas ao Ministério de tutela.
Produção de um documentário gasta entre 15 e 20 milhões Kz.
De acordo ainda com Nguxi dos Santos, a produção cinematográfica é uma área que exige custos financeiros elevadíssimos em qualquer parte do mundo, e em Angola não é diferente. Explica que, para se produzir um documentário nacional com a qualidade mínima aceitável são necessários entre 15 e 20 milhões de kwanzas, sendo a maior parte destes valores destinada a gastos logísticos, sem contar com a remuneração dos actores ou equipa técnica.
“Com pelo menos 15 a 20 milhões de kwanzas nós podemos produzir um bom documentário, isto sem precisar sair de Luanda, porque, se quiser ir para as restantes províncias, o custo se torna maior por causa da carência de meios e o custo da deslocação”, estimou. Estes custos, segundo o actor, são quase impossíveis de serem recuperados porque não há investimento no cinema nacional, o que faz com não haja também clientela ou consumidores.
Reforça que os produtores sobrevivem de “amor a arte” porque, se fosse a depender dos retornos financeiros, já não teríamos pessoas a produzir filmes em Angola, uma vez que os custos são altíssimos e não há apoios ou incentivos. Como solução, o realizador aponta igualmente à criação de legislação que incentivem o investimento no sector do cinema, bem como, de políticas culturais onde o cinema esteja devidamente engajado, convidando a classe empresarial a olhar para a arte como um forte potencial para o desenvolvimento do país.
“Se não houver apoio financeiro e políticas culturais onde o cinema esteja engajado, não vamos conseguir fazer nada, porque todos nós precisamos de suporte para alavancar a arte”, ressaltou. Para que se tenha um trabalho de boa qualidade, além da competência do próprio artista, é preciso que se faça um sério investimento na produção cinematográfica. Este investimento, explica o produtor, vai reflectir-se na aquisição de meios técnicos e tecnológicos de qualidade e outros custos de produção.
Associação com pouca “expressão”
Apesar da existência da Associação Angolana dos Profissionais de Cinema e Audiovisual (APROCIMA), fundada em 2014, os produtores ouvidos por este jornal afirmam não serem visíveis os feitos desta organização em prol do cinema nacional. Para o também realizador Dorivaldo Cortês, a APROCIMA pouco tem feito no sentido de promover a arte e galvanizar os produtores a fim de tornar o cinema nacional mais atractivo e apetecível aos olhos do público e dos investidores.
“Devia haver um maior trabalho de advocacia por parte da PROCIMA no sentido de encontrar mecanismos para que o empresariado nacional e estrangeiro pudesse investir na produção de conteúdos televisivos ou cinematográficos nacionais e, infelizmente, isso não conseguimos sentir da parte desta associação”, expressou. Dorivaldo Cortês desafia as associações cinematográficas a unirem esforços no intuito de atender às preocupações e às necessidades da classe e fazê-las chegar junto das entidades competentes para a melhoria da condição do cinema local.
Refere ainda que o cinema nacional tem tudo para dar certo e ser uma indústria rentável ao nível de outros países do continente, como a caso da Nigéria e África do Sul, entretanto, este feito só é possível se forem melhoradas as políticas culturais e houver atracção de investimentos no sector. O início da produção cinematográfica em Angola é datado desde final do período colonial, nos anos 1900.
De acordo com registos, o filme ‘O Caminho de Ferro de Benguela’, realizado em 1913, por Artur Pereira, é o primeiro registo datado do cinema em Angola. Recorde-se que o surgimento do cinema em Angola teve como base a exploração das paisagens turísticas, diversidade cultural dos povos, hábito e costumes, bem como o registo do crescimento e desenvolvimento do império colonial português no antigo Reino do Congo.