É a primeira companhia de dança (profissional) em Angola e uma das mais antigas da África Subsariana, resistindo a inúmeras dificuldades que vão acompanhando o trajecto do colectivo com mais de três décadas de vida, que tem contribuido, significativamente, para a promoção, expansão e profissionalização da dança contemporânea no território angolano.
A ideia de criar uma companhia de dança profissional em Angola remonta ao início da década de 1980, numa altura em que o pano- rama cultural nacional era dominado pelas danças populares urbanas como a massemba (que deu origem ao semba), kazukuta, rebita, kilapanga, kabetula, e outros estilos folclóricos regionais, e mais tarde a kizomba (resultante da fusão entre o semba e o zouk antilhano).
Em princípio, a intenção era implementar no país recém-independente uma dança que expressasse a visão da modernidade, sem retirar a essência da expressão artística e cultural, reflectindo as vivências das populações naquela altura e a necessidade de se dinamizar o universo da dança em Angola equiparando-o ao resto do mundo.
Na altura, enquanto directora da escola de dança do Conselho Nacional de Cultura (mais tarde Secretária de Estado da Cultura, do então Ministério da Educação e Cultura), Ana Clara Guerra Marques acreditava que o país carecia de um ensino profissional no campo da dança e que tal feito só seria possível se, paralelamente às escolas de arte, houvesse uma estrutura que funcionasse como pólo de divulgação da dança cênica e das suas profissões, permitindo que os bailarinos tenham um desenvolvimento contínuo e ininterrupto movido por desafios constantes.
Assim, sob sua liderança, surgiu a CDC, inicialmente com o nome de Conjunto Experimental de Dança (CED), consumando a sua primeira apresentação pública em Dezembro de 1991, com a obra “A Propósito de Lweji”, baseada na história da raínha do antigo Império Lunda narrada na obra de romance do escritor Pepetela intitulada “Lweji: o nascimento de um império”.
Nos anos seguintes, foram se realizando outras apresentações com o conjunto a conquistar o carinho do público através das suas brilhantes actuações, que passaram a fazer parte das atracções culturais favoritas dos angolanos, com maior precisão para os luandeses que eram os mais privilegiados vis- to que, é na capital onde eram realizados os maiores espectáculos da companhia.
Três décadas de “abandono”
Ao longo dos mais de 33 anos de existência, a CDC-Angola queixa- se de ter sido abandonada, deixa- da à sua própria sorte, e sem apoio quer por parte do ministério da tu- tela quer de instituições ligadas ao sector cultural. Segundo Ana Clara Marques, a CDC, apesar de ser a primeira companhia de dança no país, desde a sua fundação nunca beneficiou de qualquer apoio directo ou indirecto do governo, estando sempre dependente de apoios de empresas privadas e parceiros individuais que se solidarizam com a situação do conjunto e se predispõem em apoiar em situações pontuais.
“A companhia nunca teve apoio do governo. A drª Rosa Cruz e Silva, na altura que era ministra da Cultura, até prestou algum apoio de forma pontual, e acompanhou-nos em certas ocasiões, viajou connosco, chegou até a criar alguns pacotes de donativos para a companhia junto de algumas empresas e a partir daí podíamos participar em algumas actividades do ministério e enfim, mas, apoio directo do governo existiu, nada de nadinha”, afirmou a dirigente artística.
A CDC, segundo a responsável, vem enfrentando inúmeros desafios e dificuldades, há várias décadas, agravados pela falta de apoio sobretudo material e financeiro, situação que deixa o conjunto vulnerável face aos desafios do dia-a-dia do mundo da dança. Ana Clara adianta que para a realização de espectáculos, a companhia vê-se obrigada a “mendigar” apoio junto das empresas priva- das e entidades individuais, situação que, no seu entender, demostra a falta de interesse e cinismo por parte das entidades governamentais do país em relação às artes no geral.
Na visão da directora e pesquisadora artística, o Estado tem a obrigação de criar um fundo de apoio às artes para fomentar o sector e dignificar os fazedores, sublinhando que arte é deve ser vista como… “É preciso que o Ministério da Cultura crie mecanismo de aquisição de apoio aos artistas. Tem que haver políticas culturais que prevêem o apoio às artes e aos artistas, como é em todo o mundo”, defendeu Falta de incentivo e de políticas culturais.
Com um total de 10 bailarinos e colaboradores, entre instrutores e funcionários administrativos, a companhia queixa-se da inexistência de políticas culturais e de incentivo às artes, facto que entende ser reflexo de um sistema educativo artístico falido, movido pela falta de vontade e de interesse do governo.
Adiantou que variadas vezes os artistas são “obrigados” a “pedir esmola”, batendo portas de empresários para ver o seu trabalho, que fez com tanto suor e esforço próprio, a ser financiado para que o público possa usufruir, mas que, o governo pouco ou nenhum interesse dá a este esforço. Como solução para colmatar as dificuldades do sector artístico e da cultura em geral, Ana Clara Guerra defende que sejam feitos investimentos visíveis e profundos no sector e, sobretudo, nos artistas que são, reitera, a peça fundamental das artes, porque são eles quem fazem a arte existir e ter expressão.
“Deve-se investir no artista porque os artistas são mui- to importantes para a sociedade. Eles educam, ajudam a desenvolver o lado intelectual e emocional da sociedade através das suas artes. As pessoas vão ao espectáculo não apenas para ficarem entre- tidas, elas aprendem qualquer coisa e lhes fica marcada na memória, elas vêem as suas vidas, suas situações a serem apresentadas de forma artística e isso as comove, cria um impacto nelas e isso engrandece a sociedade, ajuda ela a tornar-se cada vez melhor”, reforçou.
A ausência de políticas culturais, segundo Ana Clara, leva ao contínuo empobrecimento não apenas das artes, mas da própria sociedade em geral porque a ar- te transforma a sociedade, impacta as pessoas, molda os seus caracteres e faz elas mudarem de atitude tornando-as pessoas mais intelectuais, mais emocionais, humanas e afectivas.
“O progresso da dança é inevitável” Desde a sua criação, a CDC-Ango- la, segundo a directora, sempre teve uma visão global sobre o futuro da dança em Angola, razão pela qual procurou olhar para a formação como o caminho certo para a profissionalização da dança elevando-a às exigências dos padrões mundiais. Afirma que neste quesito, a maior barreira tem vindo da parte das entidades que, acusa, movidas pelos interesses políticos e comerciais, tentam a todo custo impedir o progresso da dança em Angola querendo fazer transparecer que “o tradicional é e sempre deve ser a referência do país” nos palcos nacionais e internacionais.
Reforçou que, assim como as sociedades, as artes são dinâmicas e a dança não foge à realidade, por isso entende que tentar “impedir” o dinamismo de progresso da dança ou das artes é um esforço em vão por- que ela une pessoas, une nações e, à medida que vai permitindo interações entre diferentes nações, acaba ditando a necessidade de um progresso constante e contínuo.
“É assim em quase todo o mundo, excepto no nosso país, que quer sempre olhar com relutância para a formação e a inevitável mudança do panorama da dança em Angola. Um governo que, politicamente, quer, a todo custo, limitar-se ao folclore, usando todos os tipos de argumentos para justificar este imperativo de não evoluir nos campos artísticos, recorrendo, insistente- mente à mal interpretada bandeira do retorno e resgate das tradições, sem pensar que o progresso é inevitável”, expressou.
Ana Clara reafirma que nenhuma arte vem para excluir a outra, mas que ambas podem coabitar sem uma sobrepor-se à outra, contruindo, ambas, para o desenvolvimento da sociedade em todos os sectores porque a arte, adianta, é também um sector que pode fomentar a economia quando bem aproveitada e feito um sério investimento nela.
Carência de uma sala adequada para os ensaios
No leque de insuficiências que a CDC apresenta, a mais notável é a necessidade de uma sala que ofereça as condições minimamente aceitáveis para a realização dos ensaios e aulas práticas. Ao que constatou a equipa de reportagem do Jornal OPAIS, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola realiza os seus ensaios num espaço adaptado, na zona do Futungo-II, no município de Belas, em Luanda, mas que não oferece as condições exigidas pela arte, limitando os trabalhos dos professores e bailarinos.
Segundo Ana Clara, para a realização de ensaios de dança contemporânea o espaço deve ter, em princípio, um chão de madeira que permita o retorno das vibrações das danças, assim como para possibilitar a protecção física dos bailarinos durantes os movimentos peculiares que vão fazendo ao longo dos ensaios. Não tendo estas condições, a responsável explica que tiveram que ser adaptados esferovites que são colocados sobre o chão e por cima uma capa napa longa para permitir que os bailarinos não sintam o impacto do chão com tanta violência à medida que vão executando movimentos delicados, arremessando seus corpos ao chão durantes os ensaios. Pouca dimensão do espaço, falta de condições climáticas que proporcionem um ambiente adequado para os ensaios, dado o longo período de tempo que estes levam a realizar o referido treinamento, e outros equipamentos de projecção acústica fazem parte também das necessidades que a companhia almeja ver colmatadas.
Companhia de Dança Inclusiva A CDC apresenta-se como a primeira e única companhia de dança inclusiva, isto é, tem também no seu leque de artistas, bailarinos portadores de deficiência física, mas com muita qualidade profissional, como é o caso do jovem Samuel Curti. Integrante da companhia há 16 anos, Samuel é um jovem cadeirante bailarino com experiência e aptidões qualificadas para, segundo a professora, actuar em qualquer companhia de dança contemporânea ao mais alto nível.
Samuel diz ser uma pessoa sonhadora e lutadora, e corre atrás dos seus sonhos e objectivos não se deixando limitar pela deficiência física. Ao dançar, apresenta-se de forma livre e espontânea com a ou- sadia de projectar qualquer movimento que lhe seja proposto desde que a sua condição o permita. “As pessoas pensam que só as pessoas com duas pernas e dois braços podem ser bailarinos, mas não é verdade. Na realidade a dança é um dom que pode ser dado a qual- quer pessoa, com ou sem deficiência física, o que define é a aptidão e a dedicação individual”, frisou.
“Eu vim parar aqui como percussionista e, aos poucos, fui ganhando gosto pela dança e nada me impediu para eu pudesse me tornar no bailarino que sou hoje”, contou. Enquanto integrante da Companhia e um dos bailarinos mais antigos, Samuel conta que já teve o privilégio de viajar em 37 países e 58 cidades do mundo, levando a sua arte para os diferentes continentes, reiterando que sempre se destacou pela positiva durante as suas apresentações.
Bailarino expatriado Residente em Angola há cinco anos, Andy Medrano, de nacionalidade cubana, é bailarino e professor de dança na CDC há seis meses. Disse que veio a Angola dedicar-se exclusivamente à dança, ajudando a desenvolver o panorama das danças clássicas no território angolano, juntando os seus ideais e habilidades aos de Ana Clara na companhia de dança contemporânea.
Formado em artes cênicas, na especialidade da dança, em Cuba, Andy considera que ainda há um enorme trabalho por se fazer para que a dança contemporânea em Angola tenha o valor e a visibilidade que merece, acrescentando que o governo precisa fazer um sé- rio investimento em prol do desenvolvimento não apenas da dança, mas das artes em geral. “A dança contemporânea em Angola tem sido um grande desafio.
Eu sinto que a única que tem feito um grande esforço no sentido de desenvolver a dança com um peso a nível artístico é a CDC, então, eu acho que é preciso que faça um investimento sério nesta Companhia”, defendeu. Quanto ao processo de ensino e aprendizagem da dança contemporânea, Andy explica que trata- se de um processo contínuo com resultados a longo prazo, mas que exige formação específica e qualificada para que se possa obter resultados consideravelmente positivos.
Salientou que para se tornar um bailarino de dança contemporânea não basta ter o domínio técnico da dança, é preciso fazer uma formação técnica superior e, se possível, uma pós-graduação para se ter maior domínio teórico e prático da arte. “Para ser um bailarino profissional, você tem que se formar, tem que conhecer, tem que se formar, não basta saber mexer o corpo, há todo um trabalho físico, trabalho anatómico para que a pessoa saiba mover o corpo na posição certa e transmitir a mensagem a cada movimento que fizer”, explicou o assistente coreográfico e professor de dança contemporânea.
Igualdade de Gênero
Entre os bailarinos da CDC consta a jovem Jéssica Sanga, a única menina da companhia (bailarina estagiária), pertencente ao conjunto há cerca de um ano. Proveniente do bairro da Samba, Jéssica avança que foi motiva- da a fazer dança contemporânea pelo seu teor artístico e educativo, reiterando que ambiciona tornar-se uma bailarina profissional e ser destacada entre os melhores de Angola. “O que mais me motivou é o te- or educacional, ou seja, a dança contemporânea tem essa exigên- cia para que a pessoa se torne num bailarino profissional é necessário que aposte na formação, e como eu quero ser muito boa naquilo que fa- ço, então escolhi a dança contem- porânea que é uma arte muito exi- gente e educativa”, afirmou. Apesar de ser a única rapariga no meio de 9 rapazes, Jéssica mostra- se uma jovem determinada e resi- liente, que promete tudo fazer pa- ra conquistar o seu lugar e tornar- se uma bailarina profissional da companhia e ajudar o conjunto na missão de desenvolver e expandir a dança contemporânea em todo o território nacional.