A elaboração de facturas atípicas para o dote que se resumiam no exagero de artigos e avultadas somas em dinheiro, incluindo bens nunca antes pedidos tradicionalmente, nomeadamente geradores, plasmas, terrenos e materiais de construção, estava a dividir famílias e a frustrar o sonho de muitos jovens constituírem famílias e criar lares felizes em Cabinda
O facto estava a preocupar as autoridades lo- cais e a população de Cabinda, o que motivou a Secretaria Provincial da Cultura a promover, recentemente, a primeira Conferência Provincial sobre o Casamento Tradicional com a participação de vários estratos da sociedade entre autoridades tradicionais e religiosas, académicos, magistrados judiciais e do Ministério Público, juristas e outros interessados.
O encontro visou proporcionar condições para uma discussão aberta sobre o casamento tradicional atendendo ao contexto em que é realizado o evento nos últimos anos, bem como procurar influenciar os principais autores sociais das famílias sobre o conjunto de bens que devem constituir dote de acordo com a realidade de cada região de Cabinda. O conclave visou igualmente contribuir para se banir as más práticas que nada têm a ver com os usos e costumes da região, buscar mecanismos para evitar a imitação de práticas que não abonam o bom nome e o prestígio do povo de Cabinda, assim como discutir a delegação de poderes tradicionais segundo a estrutura existente para validar a relação de bens a serem entregues pelo noivo à família da noiva na cerimónia do casamento tradicional.
Os participantes ao encontro, que decorreu na sala de conferências de Simulambuco, abordaram temas relacionados com “O casamento tradicional, civil e religioso: sua interligação na constituição da família”; “A importância do casamento tradicional na estabilização da família e da sociedade”, “A interculturalidade nas cerimónias do casamento tradicional em Cabinda e a autencidade regional” e ainda “A problemática do dote ou alembamento no casamento tradicional em Cabinda.”
Recomendações
Depois de dois dias de debate, os representantes dos quatro municípios chegaram a um consenso de que deve haver uma harmonização sobre as etapas do casamento tradicional, sua denominação, assim como definiram a relação dos bens que de- vem constar no dote. Do encontro, saiu a decisão de que a relação dos produtos do dote seja feita pelos pais e não pelos tios, como tem aconteci- do, e permitir à mulher que vai ser pedida em casamento presenciar a elaboração da relação dos produtos do dote.
Aos sobados e regedorias foram-lhes conferidos competências para definirem e intervirem na nomeação dos produtos do dote, de modo a prevenir que hajam exageros de bens a serem solicitados pela família da noiva. Depois de elaborada a relação dos bens constantes no dote para o casamento tradicional, segundo recomendações da conferência, a lista deve ser entregue à Secretaria Provincial da Cultura para efeitos de validação e posteriormente remeté-la à família da noiva.
Novo procedimento
“Sem este procedimento a família do noivo pode recusar a factura”, assegurou ao jornal OPAÍS o secretário provincial da Cultura, Barros André. Os advogados tradicionais enquanto celebrantes dos casamentos tradicionais serão registados pela Secretaria da Cultura como agentes fiscalizadores para acompanharem a implementação das medidas da reunião. As medidas para harmonizar e conferir originalidade aos rituais do casamento tradicional em Cabinda entraram em vigor em Novembro passado e no período de um ano, a Secretaria Provincial da Cultura deverá avaliar com os seus parceiros a implementação das conclusões e recomendações da conferência.
Críticas às listas de bens no dote de casamento
O Bispo da Diocese de Cabinda, Dom Belmiro Chissengueti, criticou, na conferência, as longas listas de bens pedidos no dote de casamento tradicional que não terão possibilidade de serem respondidas por desempregados, pessoas de salários miseráveis e dependentes. “Isto tem sido uma das causas bastante frequentes nas abordagens que fazemos com os jovens de não poderem constituir família”, destacou.
O prelado católico apelou, com efeito, aos mais velhos, sobretudo as autoridades tradicionais, a terem uma palavra a dizer face à desarmonização da comunidade quando não há famílias constituídas. Em quase toda parte da África negra, referiu, a realidade é quase igual: “Com famílias instáveis, facturação cara, casamentos adiados e uma espécie de amor livre que não ajuda a construir a Nação e a promover o desenvolvimento”, realçou a entidade máxima da Igreja Católica em Cabinda.
“Neste tratamento degradante a mulher insere-se também aquilo que ela sofre em função dessa factura alta que é passada à família do marido em razão do seu casamento, ou seja, ela entra na relação em posição fragilizada, torna-se propriedade da família, é por isso que quando o marido morre a sua família que tinha entregue uma factura bem alta aproveita para se vingar recebendo tudo o que ele produziu, inclusive os bens da mulher entram em risco”, concluiu.
Aspectos positivos
Em relação ao casamento tradicional, segundo referiu, há aspectos muito positivos que devem ser tomados em linha de conta, tais como a segurança, a certeza e o conhecimento da pessoa que entra em determinada família, bem como o acolhimento que é dado a essa pessoa, a corresponsabilidade e o compromisso ao longo da vida. “Quem casa nunca está só”, referenciou o bispo. Salvaguardados esses aspectos muito profundos do casamento tradicional, o bispo Belmiro Chissengueti reprovou os aspectos sombrios que devem preocupar os intelectuais, os pensadores e estudiosos de Cabinda. “Se o casamento é um acto livre e o amor não tem cara, é preciso investigar as raízes do regionalismo, que de alguma forma nos invade e divide a província de Cabinda entre os do Litoral, os do Zenze e os do Maiombe”.
“Como realizar uma reconciliação antropológica e social para que nos possamos acolher, é também um passo para a regularização dos nossos matrimónios que, às vezes, encontram nisso verdadeiros obstáculos objectivos”, fundamentou o pastor da igreja católica apostólica romana. Para o bispo de Cabinda torna-se imperioso dar resposta quer política, social ou cultural ao tratamento degradante dado à mulher quer dentro do matrimónio quer antes dele. “Era de esperar que depois da explosão escolar houvesse um olhar diferente para com a mulher. Na verdade, a situação está a piorar porque os intelectuais e os cientistas estão também aba- tidos pelo medo e assobiam de lado no momento em que deve- riam agir deixando a mulher indefesa diante de uma arrogante dominação machista”, lamentou.
O Casamento Tradicional Cabinda
Em Cabinda, à entrega do dote ou alembamento é a condição indispen- sável para que haja casamento tradicional. Este chega mesmo a ter maior impacto e valor que o casamento civil ou religioso. A não entrega do do- te acarreta consequências graves que podem reflectir na infertilidade da noiva ou na doença dos filhos.
Ao contrário da longa lista de bens hoje pedidos à família do noivo, no passado o dote era considerado um gesto simbólico e de respeito à família da noiva e era composto por utensílios de lavoura como enxada, catana, uma arma de fabrico caseiro para o sogro, bens alimentares, 10 litros de vinho tinto e igual quantidade de vinho de palma, peixe seco, peças de pano, indumentária para a sogra e a noiva, animais domésticos como galinhas, cabrito, patos e porcos, aguardente e um valor simbólico em dinheiro. lado no momento em que deveriam agir deixando a mulher indefesa diante de uma arrogante dominação machista”, lamentou.
POR: Alberto Coelho, em Cabinda