Vivem em Luanda, há 41 anos e têm as suas impressões digitais expressas em cada uma das obras que produziram e ainda produzem junto do mercado do São Paulo, no distrito urbano do Sambizanga, sendo hoje referenciados como excelentes escultores de instrumentos musicais tradicionais como o batuque, pwita, hungo, dikanza (reco-reco), chocalhos e aparelhos de ressonância musical
São chefes de família, todos eles artesãos, oriundos de diferentes municípios da província do Moxico. Chegaram à cidade capital, Luanda, em 1983, por força da guerra que devastou o país, em geral, e a sua província em particular. Têm a arte como a sua fonte de sustento e não só.
É uma herança vinda dos pais, dos avôs, dos tios e de outros membros da família, tidos na região Leste do país, como renomados mestres, no que à arte de esculpir, e não só, diz respeito.
A sua adaptação, nos seus primeiros dias de estada em Luanda, foram os mais difíceis de sempre, para quem acabava de chegar à cidade cosmopolita, em busca de sossego, abandonando a terra natal e a família, num clima de tensão enorme, e ter encontrado outro de depreciação absoluta.
A falta de solidariedade por parte dos citadinos anfitriões foi apontada como um dos factores que imperou para a depreciação dos artificies recém-chegados, levando o núcleo a unir-se cada vez mais.
Quanto se sabe, estes, não tiveram o consolo merecido dos citadinos residentes naquela área. Poucos houveram, que embora timidamente procuravam aconchegar-se à comunidade, mas ainda assim, houve quem viesse e multiplicava os insultos contra os cidadãos indefesos, tratando-os ironicamente por deslocados ou refugiados.
A arte
Fruto da sua enorme criação e veia artística, muito rapidamente, estes escultores identificaram-se com a sua arte, produzindo utensílios diversos e instrumentos musicais tradicionais, que passaram a circular um pouco por toda a província pelas suas mãos.
À época, a produção dos instrumentos musicais incidia, sobretudo, no batuque, na pwita, no hungu, na dikanza (reco-reco), nos chocalhos e nos aparelhos de ressonância musical.
A estes, juntavam-se uma série de bancos de pele, máscaras, pilões e almofarizes de grande e pequena dimensão, ao que seguiam também gravuras com diferentes símbolos, como o Sona e tantos outros, em larga escala. Estava-se assim diante de um dos grandes atelieres de artes naquela circunscrição de Luanda.
Com este talento artístico, os artesãos foramse revelando cada vez mais, aproximando os munícipes e em muito pouco tempo, o espaço tornou-se uma grande referência no domínio das artes a céu aberto, ao nível do município do Sambizanga.
Com o aumento do volume de obras, assim como a demanda que se foi registando ao nível das referidas criações, o núcleo artesão, decidiu reforçar o seu aparato juntando-se à área adjacente ao Mercado do São Paulo, que mais tarde viria a transformar-se num grande Atelier a Céu aberto durante vários anos.
Renascimento do espaço
O projecto foi iniciado em 1983, por pessoas idóneas desta comunidade mais a Leste do país, das quais se destaca Man Joel, um experimentado escultor, que vivendo na condição de deslocado, decidiu socorreu-se da arte, criando um espaço de trabalho ao ar livre e que albergasse o maior número de artesãos.
O espaço adjacente ao Mercado do São Paulo, localizados a escassos metros do Prédio do Livro, foi o local escolhido como alternativa para o efeito, tendo, na altura, agregado mais de 40 profissionais.
Antes dos artesãos ali se fixarem, Man Joel, dedicava-se à venda ambulante de obras que produzia durante a semana para o sustento da sua família.
Com a junção do maior número de escultores naquele recinto, deuse assim início aos trabalhos desses em larga escala, uma actividade que perdurou longos anos.
Desarticulação do pessoal
Para mal dos pecados, o espaço sofreu nos últimos anos um dos maiores acidentes de sempre. Um incêndio de grandes proporções deflagrou no local, culminando com o seu encerramento. Em consequência disso, a comunidade ficou dispersa, tendo cada um procurado viver como podia.
José Chimichi um dos mais antigos integrantes do atelier que, apesar das vicissitudes da vida, ainda persiste, afirmou à nossa reportagem, que após um longo período de abandono a que estiveram votados, o elenco continuou a trabalhar na rua.
Realça que por razões de segurança , parte dos seus integrantes, em particular os mais velhos e as suas famílias, foram forçados a se mudarem para localidades diferentes.
Uns, segundo o interlocutor, tiveram como destino o Zango 4, outros o Panguila e os mais fragilizados, a Petrangol, tendo estes últimos calhado no Bairro do Lixo.
O artesão recorda que ao aperceber-se da situação, o administrador David Costa decidiu acomodar alguns artesãos no interior do Mercado do São Paulo, dando-lhes espaço para a execução e venda de obras.
Esta atitude solidária do dirigente durou apenas alguns anos, o mercado foi submetido a obras de restauro, tendo os seus ocupantes sido encaminhados para outros locais.
O artesão, realçou que devido à confusão que se instalou em torno do restauro do Mercado do São Paulo, alguns colegas seus foram encaminhados para o Mercado dos Congoleses, mas, sem qualquer garantia de virem um dia a retomar o seu espaço no São Paulo.
“Primeiro, fomos abandonados e não tínhamos um lugar certo para trabalhar. Depois disso, voltamos a trabalhar na rua. Esta situação fez com que o administrador do Distrito interferisse no caso”, desabafou.
Adaptação na grande cidade
José Chimichi recordou que os primeiros dias da sua estadia, em Luanda, como deslocado de guerra, foram os mais difíceis, de muito sacrifício e de imensas dificuldades, juntando-se a discriminação de que eram alvos por parte de algumas pessoas ignorantes. “Foi uma vida muito difícil. Dormíamos ao ar livre, suportando o frio, a chuva e outras situações.
Mas, como Deus é grande, conseguimos superar, muito embora estejamos a enfrentar outras dificuldades, como a falta de um espaço e meios para trabalharmos à vontade”, lamentou. Pai de oito filhos, José Chimichi, disse ter enveredado pelo Universo das Artes aos 12 anos, no Moxico, terra natal.
Oriundos de uma família de artesãos, Chimichi começou a dar os primeiros passos na arte de esculpir como auxiliar do seu pai, cortando e trabalhando troncos para a feitura de pequenos instrumentos de caça, tais como o porrinho para caçar, machadinhos, arcos para flechas e bancos tradicionais.
Com o passar do tempo, a paixão pela arte foi aumentando cada vez mais, o que o forçou a desenvolver ainda mais as habilidades, estando as suas impressões digitais presentes em cada uma das suas criações artísticas que hoje podem ser identificadas claramente.
Inspirado na Cultura Leste do país e no quotidiano dos angolanos, José Chimichi foi exteriorizando por via da oralidade, da ancestralidade, o que lhe corria pela alma.
Já no que à produtividade se refere, abordamos o seu confrade, Carlos Leyo Sapetulu, que partilhando, há 41 anos, o mesmo espaço, adiantou que o núcleo já teve momentos áureos em termos de produtividade e demanda. “O espaço já teve momentos áureos em termos de produtividade e demanda.
Hoje, aparentemente extinto e escondido, vai-se adaptando a novas realidades, mas, de forma improvisada, contemplando bancos, máscaras, gravuras e diverso material ligado à música tradicional”, disse.
“Naquele tempo, tivemos muito bom rendimento, produzíamos bastante, porque toda a gente tinha conhecimento da existência dos homens do Moxico neste recinto e dos artigos que produziam”, realçou. Leyo recorda, igualmente, que a partir do momento em que o espaço se revelou aberto às artes naquela circunscrição de Luanda, muita gente passou a frequenta-lo, o que hoje já não se verifica.
“Hoje, trabalhamos de forma improvisada num beco, graças à boa vontade do proprietário desta residência, que nos acolheu sem remorsos”, disse Carlos Leyo, lamentando a fraca visibilidade que o mesmo tem, o que leva certas pessoas a passar despercebidamente.
“Aqui o espaço não é visível, estamos a lutar para conseguirmos um outro mais extenso. Tentamos chegar ao Mercado do São Paulo para conversar com o administrador e ver a possibilidade de sermos enquadrados, mas, esta intenção resultou num fracasso absoluto”, argumentou.
O artesão garantiu ainda que, apesar das limitações de espaço, continuarão a produzir os artigos e instrumentos musicais a que sempre habituaram os seus clientes e não só.
“É triste, não pudemos colocar nenhum artigo fora deste recinto para situar os nossos clientes e outros que, eventualmente, vão passando por esta via, porque os fiscais chegam e recolhem tudo. Desta forma, fica-nos difícil actualizarmos os nossos clientes”, disse.