JL, senhores conselheiros e deputados, as autarquias são uma questão táctico-partidária que não convém ao establishment e, por isso, são para empurrar com a barriga ou, perante a pressão nacional, fazer quanto baste? Estou em crer que devíamos assumi-las como uma questão nacional estratégica que carece de imediata implementação para rapidamente se acabar com aquilo que se designou por vergonha nacional que é a de sermos o único país na SADC e dos poucos em África e no mundo que não tem o poder autárquico implantado, apesar deste estar na Constituição desde 1992.
POR: Nelson Pestana
Esta é uma oportunidade de fazer diferente daquilo que se fez até agora; fazer a implementação efectiva das autarquias e não por amostragem como se anuncia. Ou então, a inconstitucionalidade vai continuar, a vergonha nacional vai permanecer por mais doze anos, data prevista para a sua implementação no último grupo de municípios, nas contas de quem tem mantido a situação através de múltiplos artifícios burlescos. Os senhores serão também arrolados no grupo dos violadores da Constituição ou mesmo dos continuadores ou restauradores do eduardismo sem JES que se caracterizou, para além da ganância (que está agora a ser amplamente denunciada, mais fortemente do interior do seu partido), pela arrogâcia e pelo desprezo pelos pobres, pelos mais fracos e pelos camponeses (os do mato). A arma fatal do “partido colonial”, aqueles que se opõem à implemantação das autarquias, é o gradualismo que está previsto no artigo 242º da Constituição! É aqui que baseiam a sua retórica burlesca. A primeira fraude é a de apresentarem este artigo como uma sacro-santa disposição, como se ela existisse isolada ou para lá de toda a filosofia, organização interna e princípios fundamentais da Constituição. Dizem, como senhores da verdade que sempre foram, que esta norma não pode ser ignorada e que apesar de ser uma mera disposição transitória (instrumental ou formal) é assumida como a mais importante do regime constitucional das autarquias. Acontece, que esses mesmos, ignoraram essa disposição durante 25 anos, mantendo o imobilismo da não realização das autarquias e ensaiando, contra a Constituição, as formas mais bizarras de organização política e administrativa, com um único e mesmo propósito: manter intocado o poder hegemónico do seu partido e dar satisfação ao experimentalismo eduardista, alimentado por um chico-espertismo que se repete. Ou seja, para o “partido colonial” as autarquias sempre foram uma questão tactico-partidária, um interesse de grupo que se sobrepõe ao interesse nacional e dos munícipes. Defendem que as autarquias não podem ser implementadas em todo o território nacional, elegendo assim, eles próprios, o “território útil”, onde poderão “ganhar o maior número possível de autarquias”, segundo a recente orientação de JES. Já não se evoca como argumento a necessidade de certo experimentalismo mas o desigual grau de desenvolvimento dos municípios do país. Acontece que o que se tem feito é a agravação constante das assimetrias pois os investimentos são direccionados para as regiões mais apetecíveis aos interesses económicos do grupo hegemónico. Agora, prometem que vão investir nesses municípios e prepara- los para as autarquias, insistindo no modelo jacobino de governação local, através de administradores municipais que são a instituição do Estado mais desvalorizada pelos cidadãos como mostrou, por altura das eleições gerais, a sondagem do ISP Piaget de Benguela. Não querem saber das virtudes da governação autárquica que são louvadas por todos e que não podem desmentir. São precisamente os municípios menos desenvolvidos que precisam de mudar imediatamente de modelo de governação. Não fazê-lo é penalizar duplamente (mais uma vez) esses municípios. Todas as razões políticas e jurídico- constitucionais indicam o caminho da implementação das autarquias municipais em todo território, como o impõe a Constituição nas suas normas materiais que não se prestam a outras interpretações. E, as normas constitucionais materiais sobrepõem-se às normas adjectivas (formais) e constituem “imposições de carácter permanente e concreto”, vinculando o legislador ordinário e demais órgãos do Estado que são obrigados a criar as condições da sua realização. São directivas materiais que não têm sido observadas pela Assembleia Nacional, pelo Executivo, em relação às condições da sua realização e pelo Tribunal Constitucional que tem feito vista grossa, não vendo a inconstitucionalidade continuada por omissão (artigo 232.º da CRA). Mais do que isso; a autonomia local é uma clausula pétrea. Tal como “o núcleo essencial de direitos, liberdades e garantias”, não pode ser atingida, nem pelo legislador constituinte, muito menos pela lei ordinária (artigo 236º, CRA). O gradualismo não pode ser outro senão o que o legislador constituinte, no tempo, determinou. Temos pois que apurar a vontade do legislador constituinte. Sabendo que a solução proposta viola múltiplos princípios e direitos fundamentais da Constituição: (1) o princípio democrático (artigo 2º, 4º, 1), (2) princípio da autonomia (artigo 214º), (3) direito de participação dos cidadãos na gestão dos assuntos públicos, nomeadamente locais (artigos 52º e 213, 2), (4) princípio da universalidade (artigo 22º), (5) princípio da igualdade entre os cidadãos e entre os municípios (artigo 23º), (6) princípio da solidariedade nacional e local (artigos 1º e 222º, CRA), (7) princípio da equidade, cuja aplicação é feita através da descriminação positiva dos “grupos populacionais mais desfavorecidos” e das regiões menos desenvolvidas (artigo 21º, alínea d), (8) principio do “desenvolvimento harmonioso e sustentado em todo o território” (artigo 21º, alínea m), (9) princípio da justa repartição dos rendimentos e da riqueza nacional (artigo 101º) e (10) princípio da generalidade e abstração da lei (artigo 57º, 2) e (11) princípio da razoabilidade e proporcionalidade (artigo 57, 1). Acham que podemos entender que o legislador constituinte, ao prescrever o “princípio do gradualismo” (artigo 242.º, n.º 1), como norma instrumental de aplicação das autarquias municipais, queria contradizer-se, desta maneira tão flagrante e violar tantos princípios da sua própria Constituição? Temos que entender que o legislador constituinte é racional e que quando diz que “os órgãos competentes do Estado determinam por lei a oportunidade da criação das autarquias locais, o alargamento gradual das suas atribuições, o doseamento da tutela de mérito e a transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias locais” (artigo 242.º, n.º 2), quer dizer outra coisa que não seja o gradualismo geográfico, aplicado às autarquias municipais. É mais sensato pensar que se refere, por um lado, ao gradualismo geográfico sim, mas em relação aos níveis infra e supra municipais, onde o poder local tão-somente se implantará, de forma progressiva, em função da aceitação de que uma determinada circunscrição territorial justifica o estatuto de autarquia supra municipal porque tem “especificidades culturais, históricas e grau de desenvolvimento” ou infra municipal porque “tem condições específicas” (artigo 218º, 2 e 3, CRA). Em relação a autarquia municipal a Constituição não fala no critério do “grau de desenvolvimento” e impõe a sua criação como imperativo (artigo 218º, 1, CRA). Assim sendo, o gradualismo referente à autarquia municipal somente pode ser admitido como gradualismo funcional. De dois tipos: gradualismo funcional quantitativo, em relação a extensão ou grandeza das atribuições da autarquia, nos domínios expressamente determinados pela Constituição e gradualismo funcional qualitativo, referente a atribuições em outros novos domínios. Então, para as autarquias municipais, o gradualismo é tão-somente entre a institucionalização da autarquia e o curso progressivo do aperfeiçoamento e o aumento das suas atribuições (artigo 219º, CRA). Finalmente, parece-me incontrovertido, em nome do respeito pelos cidadãos e de uma mínima honestidade intelectual, que o prazo para a implementação das autarquias devesse ser contado a partir de 1992, pois o horizonte temporal desse legislador constitucional não é o mesmo de hoje, pela simples razão de que a Terra continuou a girar e a situação dos municípios se alterou, ao longo destes anos, de tal modo que algumas comunas da época foram elevadas a municípios e alguns municípios foram agrupados. A urgência da implementação das autarquias em todo o território nacional são uma evidência, desde há muito. Não apenas pelas necessidades gritantes de acelerarmos o desenvolvimento e o bem-estar dos cidadãos mas porque são uma dupla exigência: são uma exigência da nossa Constituição e são também uma exigência que decorre do Direito Costumeiro Internacional (artigos 7º, 13º, e 27º, CRA). Daí a nossa vergonha nacional perante o mundo que foi justamente sinalizada pelo PR. Uma norma costumeira internacional assente na convicção partilhada pelos povos de que as autarquias, como uma trave-mestra do Estado Democrático de Direito, contribuem para: (a) o seu aperfeiçoamento, através da distribuição vertical de poderes, (b) uma melhor e mais eficaz governação, pela aproximação dos governantes aos governados, (c) a participação democrática dos cidadãos, na resolução dos problemas das suas comunidades e (d) o reforço da unidade e reconciliação nacionais. Santo ya casola; dizem, não faz milagres! Mas, por favor, leiam só a Constituição e façam dela “a matriz do comportamento [do Estado], dos cidadãos, das forças políticas e de toda a sociedade”, como se diz no seu preâmbulo.