Dados avançados pela Rede Angolana das Organizações de Serviços de SIDA (ANASO) apontam para a existência de pelo menos 5 mil e 250 crianças seropositivas com acesso ao tratamento. Mas, revelou que uma parte considerável está a abandonar a medicação por conta da fome resultante da pobreza
São muitas as experiências que carrega na bagagem da vida em trabalhos com pessoas que suportam no organismo o Vírus de Imunodeficiência Humana (VIH). António Coelho, dedicado e perspicaz, assumiu a presidência da ANASO em 2019. No decurso desse período o líder tem memórias de vivências tristes. A cada missão é uma nova sensação.
Com voz a denunciar sentimento de tristeza, o presidente da ANASO, em exclusivo ao jornal OPAÍS, conta que tem sido uma experiência corrosiva assistir a muitas mães e seus filhos menores desistirem do cumprimento da medicação, por culpa das peripécias da vida por que passam.
“Isso é gravíssimo”, considerou de primeira. O palco onde se desenrolam esses episódios está nas comunidades. Nas zonas suburbanas, onde conseguir um pão e alguns litros de água constitui uma luta diária, porque este calvário está enraizado na crise social, que julgou ser gritante. “As crianças estão a precisar de solidariedade. Quando a gente vai à comunidade, e estão lá as crianças e as mães seropositivas, elas não querem tomar a medica- ção; não querem tomar os medicamentos antirretrovirais, por- que não têm comida. Há fome, na comunidade”, denunciou, expressando profunda dor pela realidade.
O responsável desta organização confidenciou que as mães não encontram moral suficiente para exigir aos filhos a toma das drogas, sem que estes se tenham alimentado de nutrientes, uma vez que, também, as próprias progenitoras não o fazem pelos mesmos motivos. No seu quotidiano nesses trabalhos de aconselhamento nas comunidades para o cumprimento da medicação, António Coelho disse que a primeira coisa que as pessoas pedem é “ajuda alimentar”. “Apresentam os sacos e dizem: há três meses fui buscar os medicamentos, e não estou a tomar, porque não tenho alimentação. Não vale a pena pedirem para ir buscar mais, porque os que tenho não tomei”, reproduziu, fielmente, as queixas de uma mãe, que, perto das 15 horas, não tinha uma refeição, desde o dia anterior.
“Não vale oferecer antirretrovirais, quando não se oferece apoio nutricional”
Visivelmente abalado e inconformado com o facto, e, também, no sentido de destapar a gravidade que pode levar adultos e crianças à morte, António Coelho reiterou com contundência a existência de uma inquietante “fome na comunidade”. Por esse facto, o presidente da ANASO, indignado, condenou a distribuição que o Executivo tem levado a cabo, sem que esta seja precedida ou sucedida de fornecimento de alimentos com os nutrientes suficientes para controlar os efeitos da droga, no organismo. “As pessoas não estão a fazer a medicação, porque não têm como se alimentar.
Então, não vale a pena vir com a máxima de oferecer antirretrovirais, quando não se consegue oferecer o apoio nutricional. Como é que elas vão sobreviver? As drogas são muito fortes”, sublinhou. Para descrever a complexidade do quadro que considerou dramático, António Coelho contou que é no período de Natal, em que as crianças conseguem alguns bens, por conta do momento de alta solidariedade, porém, disse, esta realidade não foi vivida, na última quadra-festiva. “Nós estamos a perder estas pessoas”.
Governo está a falhar
O número de empresas e de empresários que apoiavam as crianças está a reduzir, por encontrarem-se em situação de falência, por um lado, e, por outro, as poucas que restam estão a fazer gestão de contenção de cus- tos, pelo que não podem ajudar a todos os carentes. Citando a Constituição da República, disse que o Governo tem a responsabilidade imperiosa de apoiar estas pessoas seropositivas, uma vez que o seu dever passa pela garantia de qualidade de vida, para os angolanos, independentemente da sua situação serológica. “O Governo está a falhar, porque não está a apoiar. A situação está dramática. O Governo não está a fazer a sua parte. O empresariado nacional faliu, e é aqui onde o Governo deve fazer a sua parte, deve fazer a diferença. É triste”, lamentou.
Mais de 200 mil crianças com SIDA estão sem apoio social
António Coelho avançou que, no país, existem pelo menos 264 mil crianças órfãs com SIDA. No entanto, deste número, 237 mil e 600 não têm estado a receber apoio social, por parte das autoridades. Sublinhou ainda que a situação resulta, também, pela desistência dos hospitais Pediátrico David Bernadino e o Esperança, da prestação de apoio alimentar a doentes. Com o desaparecimento desses serviços, o responsável questionou a maneira através da qual as pessoas portadoras do VIH vão continuar a viver. “Nós temos cerca de 264 mil crianças órfãs de SIDA. Se partirmos do princípio de que, me- nos de 10 por cento dessas crianças têm apoio social, tem-se uma ideia de como estamos. As pessoas estão a morrer não por causa da SIDA, mas, por causa da fome”, alertou.