Estou aqui em Lagona Sereia-Mar. Talvez vocês ainda se lembram daquele amigalhaço meu, o Nzuá-diá-Ngone, «João Lixado», personagem duma minha crónica faz já algum tempo. Ele é cidadão de pleno direito de Lagona Sereia-Mar, uma espécie de Cidade-Estado, tipo Singapura, mas tão mítica quanto o antigo Reino de Prestes João, que diziam embrenhado entre as Sírias e os Iraques de antanho, hoje territórios incendiados por guerras intermináveis.
POR: Arnaldo Goreva
Tudo o que sei é que a Pátria do Ngone é insular, mas ninguém vos dirá de que mares. A curiosidade curiosa mesmo é que também tem uma Mutamba e o seu Largozinho do Pelourinho. Ah, disso vocês também se lembram, ou não?! Pois estou cá em Lagona Sereia- Mar tirando uma sabática dos estresses urbano, humano, financeiro, religioso, social e político daí. Aqui a vida ainda é serena, límpida, higiénica, impoluta. Pode-se afirmar de boca cheia que eles aqui gozam da verdadeira «qualidade de vida». «Não é ficção de cinema», como cantou Dom Caetano.
Outra coisa, aqui a educação é séria. Num dos bancos da Mutamba deles onde estou sentado, tenho à direita uma jovem estudante, e à esquerda um ancião (aqui é proibido chamar velho ou velha às pessoas, dá multa pesada!) lendo descontraidamente o seu livro. Ah, o que lêem? Oh, pasmem-se; a menina, o romance autobiográfico de Simone de Beauvoir: «Mémoires d’une jeune fille rangée »; e o kota (soa mais suave que velho): «O Ministro», romance de Uanhenga Xitu, numa edição de 1990, das Edições ASA para União dos Escritores Angolanos.
Fiquei boquiaberto, o mundo é mesmo redondo, fugir das coisas é mbora ilusão, hão-de estar à nossa espera, querendo ou não, no outro recanto do mundo. Eu, como bom kaluanda que sou, estava com os olhos grudados no telemóvel, nadando nas águas pútridas e malandras do meu facebook. Mas qual é quê? Uanhenga Xitu faz cócegas na cachimónia. Não resisti. Zongolei na leitura do ancião (azar não custa, é melhor evitar multa, e logo aqui nas estranjas!). Estava ele a ler um poema enxertado na Introdução do romance. Uanhenga, poeta? Mas o pior não está aí. Não é que ao tal poema Uanhenga deu o título de PUEMA! Na boleia da leitura alheia descobri que o poema/puema fora publicado em primeira mão na revista ANGOLENSE nº 105, de 11 de Dezembro de 1976. Abaixo deixo- vos dois excertos do longo poema/ puema (decorei-os de relance, o clima daqui favorece a memorização), que vocês vão certamente adorar: (…)
Eu sou o único pUeta de kimbundu que se escreve com “U” no primeiro ano da independência porque com “O” seria um pUeta com boca fechada e não gritaria o “VIVA ANGOLA” “Olá gatuno selecto, de pianinho” “Olá camanguista do-raio” “Olá reaça sem carne no cu” toda na barriga de cuca-nocal (…) – Camaradas, passaporte ou “salvo-conduz” e passa pr’aqui se não tem… – Eu não tenho sou prima do Comandante – Também sou irmã do Comissário – Também eu, sou amiga do Ministro. … e o pUeta de kimbundu sem medo deu um grito que partiu os vidros: – Abaixo os privilégios, guarda-do-Poder-Popular peço cangá-las e kiongá-las! (…) Ora, pra não arranjar maka, porque aqui em Lagona Sereia- Mar zongolar é crime, mergulhei de novo nas lamas do meu facebook, onde uma amiga tarada postou uma foto retratando o perfil obsceno da sua mbunda avantajada. Larguei uma gargalhada explosiva que estilhaçou a paz dos anjos reinante neste paraíso insular. As mulheres daqui, incluindo a jovem leitora que acaba de se ir embora, têm rabos achatados. Inda bem que aqui, em Lagona Sereia- Mar, não há essas coisas de Março- Mulher; mesmo se a alguém ocorresse ler esta crónica, o que disse há pouco sobre elas não ia dar de maneira nenhuma em multa. Ainda bem que os conceitos de beleza não são de todo universais! Akuetuenu mahézuéé!!!