Na localidade considerada “Terra Santa dos Tocoistas” as comemorações alusivas ao centenário daquele que foi o iniciador do movimento teriam sido perfeitas não fosse o facto de o designado Centro religioso de Ntaya estar quase sempre às moscas, apesar de faltar espaço para acolher peregrinos. A curiosidade jornalística levou-nos a saber por quê
Por: André Mussamo, enviado a Maquela do Zombo
Algumas dezenas de metros quadrados de um alpendre com tecto de zinco e engalanado com plantas ornamentais é o símbolo mais visível do quanto as “makas” entre os tocoistas ainda são feridas mal saradas.
Nesta nossa estadia em Ntaya saltou-nos à vista o facto de o pequeno alpendre estar sempre vazio, mesmo quando há chuva, momento em que peregrinos procuram por tudo e mais alguma coisa para abrigar-se. Trata-se do designado “Centro Religioso do Ntaya, Maquela do Zombo”, um “reduto” de prática de culto daqueles que aqui, a metros do sepulcro de Simão Gonçalves Toco, continuam a “resistir” à liderança de Don Afonso Nunes, o proclamado líder da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo no mundo.
Apesar das vestes brancas e a predominância de tons verde em outros ornamentos que ostentam, os “resistentes” distinguem-se por não portarem a estrela tocoista ao peito e as suas manifestações têm, em média, apenas algumas dezenas de participantes. Pudemos vê-los pela primeira vez na manhã de Sexta-feira, 23, marchando sob Ntaya diante de olhar curioso de uns e de desprezo de centenas de outros aparentes irmãos.
Nós, os convidados, sem perceber em profundidade os fenómenos que grassam o tocoismo, e movidos pela curiosidade pro-fissional fizemos questão de questionar os que assistiam, mas, para surpresa, todos fugiam ao nosso questionamento tal e qual se descreve o “diabo a fugir da cruz”, o que por si só aumentou a nossa curiosidade. Só apenas sob anonimato e quase aos sussurros, poucos foram capazes de revelar-nos que aqueles “eram os da outra ala”.
Solicitados a fornecer mais dados, os nossos interlocutores recusaram-se e tiveram de se assegurar de que não foram vistos por outros “irmãos”. Em resumo, falar destas pequenas manifestações era como que uma heresia. Os visados, também pouco comunicativos, recusaram prestar declarações à imprensa.
Um que acedeu falar. enquanto mantinha a sua participação na marcha atirou: “Vocês são todos do outro lado. A verdade é que esta é a terra que Simão Gonçalves Toco nos deixou e daqui ninguém nos tira”. Insistentes, conseguimos abordar um dos “resistentes”, mas apenas ao telefone e sob anonimato, porquanto para prestar declarações o cujo precisava de concertar com a direcção em Luanda, cidade para onde se deslocou a liderança fiel ao designado “grupo dos doze” para participar nas comemorações dos 100 anos de Simão Toco.
Interrogado sobre o porquê da “separação” do grosso dos restantes peregrinos, o nosso interlocutor contou que o seu grupo considera um “conto da carochinha” o argumento de que Simão Toco reencarnou em corpo de um homem na terra e que o movimento por ele começado não tinha “bispos vitalícios e nem santidades à face da terra”. Em uma entrevista às pressas, e prejudicada pelas péssimas condições de comunicação, o nosso interlocutor tratou de relembrar que o “conflito tocoista” mantêm-se apesar de “uns se auto-proclamarem os únicos e os ungidos”.
Para ele, a solução administrativa tomada pelas autoridades do Estado angolano, exarando ofícios a “impor” um certo tocoismo “são apenas decisões administrativas que não entram na esfera da fé daqueles que acreditam em Simão Gonçalves Toco”. Esgotadas as possibilidades de “quebrar o gelo” com fontes tão difíceis para o trabalho jornalístico viramos a nossa atenção para a constatação in loco.
Na tarde de Sexta- feira, de fonte oficiosa alertavam para o facto de os “resistentes” considerarem os “fiéis sob liderança de Dom Afonso Nunes como sendo impostores e invasores”, pelo que tinham de impedir “profanação” da terra de Toco. Com esta informação primária, contactámos as forças da ordem destacadas no local para assegurar a integridade dos peregrinos.
Uma oficial da polícia Nacional, que também apelou ao anonimato, revelou que a corporação estava em posse de informações privilegiadas que indicavam que os “resistentes” prometiam “sabotar os actos deste evento” pelo que tinham solicitado o reforço de efectivos com vista a prevenir a que nenhuma acção contrária à integridade de todos ocorresse em Ntaya.
O oficial, que preferiu “gerir as evidências internamente para não lançar pânico” a meio de tamanha enchente, garantiu que os potenciais insurgentes estavam a ser prontamente vigiados pelas forças da ordem. Entretanto, durante a madrugada de Sexta-feira, quando já não nos encontrávamos no local, terão ocorrido “refregas” entre as partes, porém, sem registo de acções graves.
A troca de mimos terá consistido em uma batalha de insultos verbais entre as partes que quase resvalaram para a contenda física. Tentativas para ouvir a versão da outra parte não resultaram. Os contactados evocaram estar muito ocupados com os festejos do centenário pelo que remeter o pronunciamento para ocasião posterior.
Uma contenda antiga
A querela entre tocoista data dos tempos em que Simão Gonçalves Toco ainda estava vivo, tendo-se agudizado aquando do seu desaparecimento físico em 1984. No processo de sucessão, o tocoismo conheceu tempos difíceis, devido a desentendimentos entre vários sectores da Igreja, e as autoridades da altura não tiveram alternativa senão dar ordem de encerramento da igreja em 1986.
Em 1992, quando sopraram os ventos de democracia em território angolano, a autoridade competente do Estado reconheceu três “Igrejas Tocoistas” distintas: a “Direcção Central (Cúpula)”, os “Doze Mais Velhos” e as “18 Tribos 16 Classes”.
A meio deste emaranhado ainda persistiam outros grupos, que reclamam para si o mérito de serem “fiéis continuadores do tocoismo”. Simão Gonçalves Toco nasceu a 24 de Fevereiro de 1918 na localidade de Zulumongo, tendo recebido o nome kikongo de Mayamona.
Após frequentar o ensino primário na missão Baptista de Kibokolo, concluiu os estudos liceais no Liceu Salvador Correia em Luanda. Por esta altura, descrevem os tocoistas, terá ocorrido um acontecimento milagroso que terá despoletado a sua missão religiosa: “o encontro com Deus em Catete a 17 de Abril de 1935”.
A seguir, Toco regressa à província do Uíge para trabalhar nas missões Baptista de Kibokolo e Bembe. Em 1942, decide partir para Leopoldville (Congo Belga) para colaborar com a missão local e dirigir um coro musical com cantores oriundos da mesma região que ele (Maquela do Zombo), ao qual dará o nome de Coro de Kibokolo.
Em 1946, graças ao trabalho que lhe fora reconhecido no âmbito da missão Baptista e do coro, foi convidado, junto com outros dois nacionais, a intervir nos trabalhos da Conferência Missionária Internacional Protestante, realizada de 15 a 21 de Julho de 1946, na localidade de Kaliná onde dirige uma prece pedindo para que o Espírito Santo descesse em África.
Descrevem as fontes que vimos citando, que a prece é atendida a 25 de Julho de 1949, quando, após um desentendimento com a Missão Baptista de Leopoldville, decide convocar uma vigília de oração na sua residência. Este momento é assumido pelo tocoísmo como o momento em que o “Espírito Santo desceu em África e a igreja cristã foi relembrada”, de forma a retomar o caminho da Igreja original do tempo dos Apóstolos.
Em 1961, quando tem início as campanhas de libertação de Angola no Norte do país, as autoridades portuguesas, conhecedoras da capacidade de mobilização do homem, ordenam a sua ida para o Uíge e a região fronteiriça com o Congo para chamar as pessoas que tinham fugido para as matas na sequência das acções militares. Simão Toco consegue mobilizar milhares de conterrâneos, mas a desconfiança das autoridades portuguesas relativamente às suas intenções faz com que se decidam por enviá-lo para um segundo período de exílio.
Desta vez, é enviado para os Açores, onde trabalhará como assistente de faroleiro. Apesar dos 11 anos que passa no exilio, não esmorece o seguimento da sua missão. Ao longo deste período, o dirigente troca milhares de cartas com os seus seguidores em Angola. Em 1974, na véspera da saída de Portugal do território angolano, Toco é finalmente autorizado a regressar ao seu país, o que acontece a 31 de Agosto daquele ano.