Em 2025, Angola enfrenta mais um surto alarmante e lamentável de cólera, com mais de 8.500 casos confirmados e 329 óbitos reportados até abril do presente ano.
As províncias de Luanda e Bengo concentram a maior parte das ocorrências, sendo a faixa etária entre 6 e 14 anos a mais afectada, responsável por 23,1% dos casos. Esses números escancaram uma verdade incômoda: a cólera é menos um problema médico e mais um reflexo directo da ausência de infraestrutura de saneamento básico.
Neste cenário, serviços como arquitectura, urbanismo e ambiente ganham protagonismo no debate sobre saúde pública.
Os bairros e assentamentos urbanos sem planejamento e a negligência com os serviços de base tornam as cidades ambientes propícios à propagação de doenças de veiculação hídrica, como a cólera.
De acordo com dados da UNICEF, apenas cerca de 53% dos agregados familiares em Angola têm acesso a fontes seguras de água, e esse índice cai ainda mais quando se trata de sistemas de esgoto adequados.
A urbanização acelerada, somada à precariedade dos serviços públicos, cria um ambiente onde a cólera encontra terreno fértil para se disseminar.
A Lei n.º 11/96, de 5 de Abril, que estabelece as bases do saneamento básico em Angola, define o saneamento como um direito universal, essencial à saúde e à dignidade humana. No entanto, a distância entre a teoria da lei e a realidade actual urbana continua gritante.
A Lei n.º 21/91, de 15 de Junho, conhecida como Lei de Bases do Ambiente, também reforça o direito ao meio ambiente equilibrado e saudável, estabelecendo o saneamento básico como parte fundamental da proteção ambiental.
Cabe às autoridades e à administração pública actuar conforme esse marco legal para garantir que políticas de prevenção à cólera sejam tratadas como investimentos estruturantes, e não como respostas emergenciais a cada novo surto.
Algumas iniciativas já mostraram caminhos viáveis: projectos comunitários em Luanda desenvolvidos por ONGs e estudantes utilizaram filtros de areia, tanques de armazenamento e unidades de compostagem como alternativas seguras em bairros sem esgoto.
Países como Senegal e Moçambique também aplicaram tecnologias de baixo custo, como banheiros ecológicos e sistemas de biogás comunitário, para reduzir a exposição a águas contaminadas.
O combate à cólera não é apenas uma responsabilidade dos profissionais da saúde, mas também dos gestores urbanos.
É imperativo que as políticas públicas priorizem investimentos em saneamento nas zonas mais vulneráveis e que envolvam as comunidades locais no processo de decisão e manutenção das infraestruturas.
A participação popular, aliada à atuação técnica, é fundamental para garantir que as soluções sejam apropriadas, sustentáveis e duradouras.
A cólera é um sintoma de uma doença mais profunda: o descaso histórico com o saneamento urbano. A solução passa por políticas públicas sérias, investimentos consistentes e um olhar técnico-sensível que entenda a infraestrutura não apenas como engenharia, mas como um direito urbano e ambiental.
Cabe aos ministérios reunir profissionais como arquitectos, urbanistas, engenheiros sanitários e gestores comprometidos em projectar e edificar localidades que não apenas abriguem pessoas, mas que promovam saúde, dignidade e vida. E, para isso, a infraestrutura de saneamento básico deve ser o alicerce.
Por: Daniel Nguri David
*“Arquitecto e Urbanista”