Durante os anos de resistência ao colonialismo português, a música desempenhou um papel central como forma de comunicação, mobilização e preservação da identidade cultural.
Grupos como o Kissanguela surgiram como vozes artísticas de uma geração que usava a arte para inspirar coragem e manter vivo o sonho de liberdade. Ao falar dos 50 anos de independência nacional, António Miguel Manuel Francisco, conhecido artisticamente como Calabeto, nascido em 1945, destacou que o 11 de Novembro, em cada ano, deve ser um momento de reflexão, tanto do ponto de vista governamental quanto da sociedade, em geral.
Isso por considerar o momento oportuno para o Governo avaliar o que foi feito, o que ainda falta ser realizado, o que ficou pendente e o que deve ser feito de agora em diante.
O membro do agrupamento musical Kissanguela, ligado à JMPLA, frequentemente referido como “Kota Bwé” devido à sua influência e respeito na cena musical angolana, lembrou que em 1974, com os seus colegas, foram transferidos para a secção de música da organização, onde surgiu o Kissanguela, agrupamento que também teve um papel fundamental na luta pela independência do país.
“Nós, no Kissanguela, éramos praticamente um grupo musical da Presidência da República durante o Governo do Presidente António Agostinho Neto, o primeiro Presidente de Angola. Sempre que ele viajava, seja para as províncias ou para o exterior, nós fazíamos parte da delegação presidencial. O papel dos músicos foi crucial para ajudar o MPLA a alcançar vitórias importantes em Angola”, conta com entusiasmo.
Omúsico lembrou de outros agrupamentos musicais da época, como Águia Real, Os Jovens do Prenda e Os Kiezos, mas destacou que o Kissanguela tinha um foco específico: preparar canções de intervenção política. O grupo, por essa razão, recebeu uma breve formação política, o que levou a uma mudança no estilo musical, passando a cantar canções com mensagens políticas.
Disse ser proprietário de várias músicas de impacto, como Avante o Poder Popular, A Vitória é Certa, além de outras canções interpretadas por músicos já falecidos, como o saudoso Santos Júnior, camarada Fató, que ainda está entre nós, também interpretou diversas canções.
Aquando da proclamação da independência, a 11 de Novembro de 1975, recorda que, quando o presidente Agostinho Neto hasteou a bandeira de Angola no Largo 1.º de Maio, esteve presente.
Na qualidade de músico e membro da JMPLA, Calabeto, junto com Filipe Mukenga e Carlos Lamartine, teve a missão de aprender o hino nacional e ensinar um grande coral que entoaria na cerimónia.
“Estivemos lá, como parte da delegação, e nossa contribuição foi importante para esse momento histórico”, afirmou. Nesta fase, o Kissanguela continuou a trabalhar com músicas políticas, fortalecendo as vitórias conquistadas pelo partido no poder, o MPLA, e a contribuir para a consolidação da liberdade.
Pelos vários desafios enfrentados, Calabeto considera que a música desempenhou um papel vital na construção da angolanidade, abrangendo não apenas a música, mas também o teatro, a poesia e as artes em geral, espalhando a cultura por todo o país.
Pelo pendor destas canções produzidas antes e depois da independência, defende que sejam utilizadas como ferramentas para o ensino da história de Angola, pois muitas delas tinham um conteúdo político, embora disfarçado.
“Acreditamos que estávamos a contribuir para a angolanidade, e essas músicas podem servir para transmitir as intenções do nosso povo e fazer parte da história angolana”, disse.
Em relação aos músicos de intervenção popular que produziram entre 1945 e 1980, afirmou que merecem um lugar de destaque na história do país. “Esses músicos deveriam ser reconhecidos de forma justa, para que não se sintam desvalorizados.
O governo está, de fato, trabalhando para garantir que tudo seja feito da melhor maneira e que a contribuição desses artistas seja adequadamente reconhecida”, concluiu.
Música e a história de Angola
Por ter vivenciado o período antes da independência, António Sebastião Vicente, conhecido como Santocas, lembra com orgulho a luta pela liberdade como contribuiu para que o país se tornasse independente.
“Eu e outros fomos aqueles que, durante a Luta de Libertação, demos o melhor de nós para que o país fosse o que é hoje, apesar das dificuldades que ainda enfrentamos. Isso faz parte da nossa trajectória”, sublinhou.
Durante aquela época, antes da proclamação da independência, Santocas e outros músicos – muitos dos quais já falecidos, como Mário Silva, Urbano Castro, David Zé e Artur Nunes – desempenharam um papel crucial na música angolana. Artistas como Lurdes Van-Dúnem, Belita Palma, Olga Baltazar e Cireneu Bastos também marcaram a história musical do país.
“Essas pessoas deram o melhor de si para que hoje tivéssemos este país. Por isso, é importante que aqueles que ainda estão vivos sejam melhor apreciados pelo Governo, para que possam sonhar, antes de partirem, com um reconhecimento por sua contribuição”, aconselhou. Santocas também mencionou as transformações que a música sofreu ao longo das gerações.
Acredita que faz parte da quarta geração de músicos, com figuras como Arthur Nunes, David Zé e Urbano Castro, estes últimos que lançaram discos acompanhados pelo agrupamento Os Kiezos.
No entanto, lembra que, com a instalação da guerra urbana antes da independência, muitos grupos diminuíram e alguns desapareceram. “A guerra afectou os grupos musicais.
O conjunto musical Aliança Fapla-Povo, que incluía Urbano de Castro, David Zé e Artur Nunes, e o Kissanguela, formado por músicos de vários grupos, continuaram activos durante esse período”, explicou.
Após a independência, o país enfrentou enormes desafios, e a música angolana sofreu com a dificuldade de reconstrução. Lembra que, nos primeiros anos pós-independência, houve uma grande paralisação na música e nas actividades culturais.
Durante a década de 70, o Ministério da Cultura e o Conselho Nacional da Cultura criaram mecanismos para reviver a cultura, com a criação de centros recreativos e o surgimento de novos movimentos artísticos, o que fez com que a música e a cultura voltassem a ganhar força.
Guerra civil paralisa vários sectores
No entanto, comentou que, após o retorno das guerras, a música e a cultura foram novamente silenciadas. “Após o fim da guerra civil, em 2002, o país enfrentou uma grande paralisação em todos os sectores, incluindo a música.
Não havia mais discotecas nem fábricas de discos. Os artistas precisavam viajar para a Europa para gravar, o que não era fácil. Eles dependiam de patrocínios, algo que antes, no período colonial, não acontecia”, afirmou.
Santocas ressaltou que, no período antes da independência, havia grandes empresas discográficas, como a Valentin Carvalho, a CDA e a Rebita, que impulsionavam os artistas.
Hoje, observa, a situação melhorou, mas ainda considera necessário mais apoio para que os artistas possam viver do seu trabalho de forma digna e sustentável.
“Embora as coisas estejam a melhorar, é preciso mais para que os artistas tenham as condições necessárias para se destacar. A música e a cultura angolana merecem mais atenção e valorização”, asseverou.
Movimento artístico no período colonial
O vibrante movimento artístico antes da independência é aqui recordado pelo presidente da União Nacional dos Artistas e Compositores (UNACSA), Zeca Moreno, que acontecia especialmente nos bairros e salões de festas, onde surgiram nomes que ainda são referências na música angolana, como Elias Dya Kimuezo, Urbano de Castro, David Zé, Artur Nunes, Carlos Lamartine e Gregório Mulato.
Destacou grupos como Os Kiezos, Negoleiros do Ritmo, Jovens do Prenda e Bongos do Lobito como marcos na cena musical da época, bandas angolanas que influenciaram e foram influenciadas por estilos musicais uns dos outros. “As grandes farras de carnaval, especialmente em Benguela e Lobito, eram momentos emblemáticos dessa época”, afirmou.
O presidente da UNAC-SA observa que, ao contrário dos dias actuais, o movimento artístico no período colonial era muito mais dinâmico, com empresas e pessoas sérias que realmente investiam e realizavam actividades culturais.
“Nos bairros, havia entretenimento nos salões de baile em Luanda, Benguela, Namibe, Huambo, Bié e clubes recreativos, sempre aos sábados e domingos”, lembrou.
Porém, após os acontecimentos de 1977, tentativa de golpe de Estado no país, a produção artística e as actividades culturais sofreram um grande decréscimo, algo que só começou a se reverter a partir dos anos 80 e 90.
A luta pela protecção dos direitos autorais
Zeca Moreno explicou que a instituição que dirige, com mais de 40 anos de existência, tem como missão não apenas representar os artistas, mas também garantir a gestão dos direitos de autor e conexos.
A organização tem-se esforçado para colaborar com outras instituições no intuito de proteger os direitos dos seus associados. Ressaltou, no entanto, a dificuldade enfrentada por muitos artistas devido à falta de sensibilidade de alguns usuários que não cumprem a lei sobre direitos autorais.
“Infelizmente, muitos se furtam de pagar os direitos autorais, prejudicando os autores que ficam sem ser ressarcidos pelas suas criações”, afirmou. Moreno afirmou que, apesar dos desafios, a UNAC-SA continua trabalhando para que esse quadro seja revertido. “Já evoluímos, mas sabemos que ainda há muito a fazer para que os direitos dos autores sejam devidamente protegidos”, concluiu.
Influência externa e a resistência cultural
Bessa Teixeira, ao analisar os 50 anos de independência nacional, traça um panorama de crescimento e desafios enfrentados pela música angolana. Destaca três fases principais no percurso musical do país: antes de 1975, nos anos 80 e 90, e o desenvolvimento até 2025. Observa que a música angolana foi impactada por várias influências externas.
Após a independência, o país enfrentou a forte presença da música caboverdiana, com o estilo Afrozouk ganhando destaque a partir da década de 90. “Fomos atropelados pela música cabo-verdiana e depois pela música nigeriana, que trouxe brilho à África. A Nigéria rompeu com nossa cultura, mas felizmente, a nossa música resistiu”, afirma.
Teixeira cita o impacto da música Kizomba e a ascensão de artistas como Eduardo Paim e Jacinto Tchipa, este último já falecido, conhecido por valorizar e promover a música tradicional Umbundu.
“Jacinto Tchipa fez um grande trabalho, catapultando a música Umbundu para novos patamares. E assim, aos poucos, fomos encontrando nossa identidade”, recorda.
Kuduro: fenómeno popular
Bessa Teixeira ressalta a importância do kuduro, um estilo musical criado pelos jovens angolanos, como um marco na cultura nacional, que quebrou barreiras, tornando-se um fenómeno popular, especialmente entre as crianças e os jovens.
“O kuduro foi uma revolução, foi um marco, mas sofreu pela falta de apoio institucional”, lamenta. Critica a falta de valorização financeira para os artistas angolanos, apontando que, muitas vezes, quando os músicos recebiam prémios, não havia uma compensação financeira adequada.
Importância da música tradicional
Bessa Teixeira também comenta sobre a desvalorização da música tradicional e o esforço para preservar as raízes culturais de Angola. “Muitos músicos que lutaram pela independência e pelo reconhecimento da música nacional, como Eduardo Paim e Sabino Henda, foram esquecidos ao longo do tempo. Hoje, são poucos os que realmente valorizam o legado desses artistas”, lamenta.
Destaca ainda a contribuição das mulheres na música, que enfrentaram desafios imensos, desde a censura até os preconceitos sociais. Músicas como Lourdes Van-Dúnem enfrentaram grandes dificuldades, mas conseguiram se estabelecer como ícones culturais.
“As mulheres, especialmente antes e depois de 75, enfrentaram sérios ataques e preconceitos, mas agora estão sendo reconhecidas como estrelas”, afirma.
Desafios actuais e perspectivas
Para Teixeira, a evolução da música angolana nos últimos 50 anos tem sido marcada por altos e baixos. “A nossa música sempre teve um poder de resistência, mas o apoio institucional foi sempre fraco.
Hoje, a cultura está mais visível, mas a luta continua”, conclui, fazendo um apelo para que o Governo e as instituições culturais continuem a investir na valorização e promoção da música angolana, especialmente as raízes tradicionais que definem a identidade do país.
Valorização das raízes tradicionais
O músico Gabriel Tchiema, ao reflectir sobre os 50 anos de independência nacional, observa que o país não deu passos significativos no que diz respeito ao desenvolvimento e valorização da música nacional.
Segundo ele, os avanços foram tímidos e carecem de maior envolvimento institucional, considerando que ainda não há uma estrutura vocacionada especificamente para a música em Angola, apesar dos talentos e recursos únicos que o país possui.
Tchiema defende que é essencial olhar para a música de forma mais estratégica, com o objectivo de levá-la a um patamar mais elevado, não só para os próximos 50 anos, mas como um legado duradouro para as novas gerações.
Novas vozes e o impacto da música tradicional
Ao falar da produção musical actual, Tchiema observa que, embora novas vozes e tendências estejam a surgir e ganhar espaço no mercado, a música tradicional angolana ainda carece de maior destaque.
Aponta que, em geral, os músicos que mantêm viva a música rústica e tradicional do país, como a Tchianda e outros, continuam sendo ignorados, o que contribui para o enfraquecimento das raízes culturais angolanas.
“Precisamos investigar mais a fundo as nossas raízes, assim como fizeram os jovens nigerianos, que conseguiram levar sua música para o mundo. Para que a música angolana seja ouvida globalmente, é necessário que os jovens músicos angolanos sejam mais ousados e investigativos, resgatando a essência da música tradicional e fazendo com que o mundo também dance ao ritmo angolano”, sublinhou.
Política cultural estruturada
Tchiema defende a criação de instituições de ensino, tanto ao nível básico quanto superior, capazes de transmitir as raízes da música angolana às novas gerações. Para si, a juventude, muitas vezes, não tem culpa por consumir o que lhes é oferecido pela média.
Isso resulta na predominância da música estrangeira nas rádios e na ausência de uma representatividade da música de raiz. “A música tradicional foi uma das armas que incitou a luta de libertação nacional.
Ela deveria ser mais valorizada, mas infelizmente continuamos a promover o que não é nosso”, lamentou. O músico acredita que é necessário adoptar políticas públicas que garantam a inclusão da música tradicional nas rádios e eventos culturais, para que seja ouvida com mais frequência e tenha maior visibilidade.
Protecção da música tradicional e o seu legado
Tchiema destaca que a música tradicional é a verdadeira representação da identidade angolana, e que a sua protecção e promoção devem ser uma prioridade para as autoridades culturais do país.
“Há mais de cinquenta anos, a música tradicional angolana foi uma aliada importante na luta pela independência. Agora, precisamos deixá-la como um legado saudável para as futuras gerações”, ressaltou.
O músico sugeriu a implementação de disciplinas de música nas escolas, de forma que as crianças possam aprender sobre a história da música tradicional desde cedo, e assim contribuir para a preservação e valorização da cultura nacional.
Futuro promissor para a música angolana
Em suas palavras finais, Tchiema reforçou a importância de garantir que a música tradicional angolana seja preservada e transmitida com qualidade e respeito.
Acredita que, com as políticas certas e um maior envolvimento das novas gerações, o país pode deixar um legado cultural sólido, que continuará a ressoar ao longo das décadas. “O que precisamos agora é proteger nossa música e garantir que ela ocupe o espaço que merece no cenário global”, concluiu.
Papel da música e a evolução da Kizomba em 50 anos de independência
No contexto dos 50 anos de independência de Angola, o músico Eduardo Paim reflecte sobre a importância da música como forma de expressão e superação.
Destaca que, antes e depois da independência, a música sempre foi uma maneira natural e vital de os angolanos expressarem sentimentos, como alegria, tristeza, e até mesmo sonhos.
Paim salienta que, durante o período antes da independência, a música foi fundamental para preservar a sanidade mental dos angolanos em tempos difíceis.
“A música era o grande refúgio, um escape para as dificuldades e um meio de combater as ‘malambas’ que poderiam envolver as mentes”, afirmou. Desde jovem, Paim foi admirador de nomes como Urbano de Castro, David Zé, Elias Dya Kimuezo e Sofia Rosa, que marcaram sua vida musical.
“Embora algumas dessas figuras já não estejam entre nós, elas são referências imortais. Se hoje também sou uma referência, é graças ao aprendizado que tive com essas lendas”, acrescentou.
Sobre a contribuição da música para o desenvolvimento cultural angolana, Paim argumenta que, independentemente das fases políticas e sociais, a música sempre cumpriu o papel de informar, educar e unir o povo. “O que muda são os contextos, mas o papel da música permanece o mesmo. Ela é uma constante na vida das pessoas”, disse.
Kizomba: A revolução musical angolana
Paim é amplamente reconhecido como um dos principais responsáveis pela popularização da Kizomba, um estilo musical que mistura influências de diferentes géneros, com forte presença da música africana.
“A kizomba é uma fusão, e a África, especialmente Angola, tem uma forte influência nesse processo. Não é apenas uma dança, mas um reflexo da nossa cultura”, explicou. Lembra que, nos primeiros anos de sua carreira, a dança associada à kizomba era conhecida como “passada”.
A mudança de nome para “kizomba” foi uma forma de dar identidade ao novo estilo, que hoje é reconhecido mundialmente. “Tudo começa com um grupo, e o nosso grupo, o S.O.S., foi o responsável por essa revolução.
Não tínhamos ideia do sucesso que viria, mas a nossa música foi evoluindo e, com o tempo, se tornou um gigante”, disse. Além disso, o músico ressaltou a importância do kuduro, outro estilo musical angolano que também se originou de uma dança popular, mas que, com o tempo, passou a ser reconhecido como género musical.
Aceitação da música e a evolução do estilo
Para Paim, o crescimento da kizomba foi gradual e acompanhado de críticas e elogios. “No começo, a aceitação foi pequena, mas com o tempo fomos reconhecidos.
A música sempre foi um meio de buscar alegria, e a reacção positiva da população nos impulsionou”, afirmou. Hoje, a kizomba ocupa um papel de destaque no cenário musical global, e Paim se orgulha de ser uma das figuras mais influentes na sua criação. “É um prazer ver Angola brilhar através da sua cultura. A Kizomba é a nossa contribuição para o mundo”, concluiu.