O director idealizou uma cidade onde o tempo deveria parecer suspenso, onde cada ruela seria um palco de murmúrios e cada praça, um eco de segredos não ditos. Ninguém podia falar, apenas ouvir ao som da orquestra invisível.
O roteirista, obediente, elaborou o guião, mas sem que ele percebesse, os homens entraram em acção e roubaram a cena. A cidade tornouse Cavalândia, terra rica e de povo humilde, onde a esperança dançava entre a bravura e o silêncio.
Entre as vilas das cidades, o eco de uma promessa sempre se repetia: liberdade, justiça e igualdade. Ora, para muitos, tais palavras eram apenas poeira levada pelo vento. Amara, jovem detentora de uma traseira tipicamente bantu, conhecida pela sua coragem.
Certa vez presenciou injustiças na comunidade e decidiu falar. Sua voz, embora suave, carregava o peso dos que não podiam ou não ousavam se expressar.
Denunciou as condições precárias em que estava mergulhada sua comunidade e a repressão que sufocava qualquer tentativa de mudança. Numa noite, de pouco luar, sem que ela desconfiasse, homens uniformizados chegaram à sua casa e levaram Amara, sem explicações, enquanto sua família assistia, impotente e murmurando: “Os grandes actos de bravura têm preço, por isso muitos, como nós, órfãs da coragem, colocamos a cauda entre os pés e assistimos o rasgar dos nossos sonhos como escreveu o escritor do meu tempo”.
Os dias se transformaram em semanas, semanas em meses e a ausência de Amara tornou-se num lembrete cruel da realidade em Cavalândia: quem desafiava o director desaparecia para sempre como tantos antes dela.
Apesar de desaparecida por meses, Amara continuava sendo motivos de conversa entre seus contemporâneos, quando, por um milagre, ela finalmente reapareceu.
Estava acompanhada por uma comitiva de câmeras e repórteres. Seu rosto antes iluminado pela paixão, estava agora marcado por um sorriso forçado e um olhar vazio.
Naquele dia, ela foi colocada diante das câmeras para agradecer ao “Grande Director”, que, segundo o discurso ensaiado, havia lhe concedido liberdade e justiça. Mas o povo, que observava atentamente pelas telas, não foi enganado.
As palavras de gratidão de Amara pareciam presas numa garganta sufocada pela pressão. Sua voz trêmula dizia uma coisa, mas seus olhos clamavam outra. O ato, cuidadosamente encenado, foi transmitido como um gesto de benevolência.
O director parecia magnânimo, o salvador de uma jovem “arrependida”. Contudo, entre a multidão, alguém murmurou: — Ele partiu-lhe a alma, deulhe uma muleta e agora espera que agradeça pela gentileza. — Xiiu, cala só a boca, estás a falar alto, advertiu outro. A cidade inteira sabia da verdade. Sabia que Amara foi forçada a aceitar aquele teatro para sobreviver.
Sabia que aquelas palavras não eram dela, mas de uma mão invisível que controlava tudo à sua volta. Ainda assim, naquele dia, algo mudou. A coragem silenciosa de Amara ao enfrentar as câmeras, mesmo com palavras impostas, deixou uma mensagem.
O seu silêncio era um grito de revolta. As pessoas começaram a sussurrar o nome dela como um lembrete de que, mesmo nas trevas, a verdade encontra uma forma de brilhar.
Amara, mesmo silenciada, plantou uma semente. Sua resistência passiva diante das câmeras e seu sacrifício involuntário expuseram as contradições do regime.
E assim, em Cavalândia, nasceu um novo movimento, alimentado pela indignação coletiva e pela lembrança de que, no fim, a verdade sempre encontra uma forma de brilhar.
Por: *dito benedito
*Escritor & Jornalista