Como quem não quer nada, quando a nostalgia me consome, vou vasculhando o meu baú de recordações, coisa que faço quando percebo que já não sou mais o “petit” que foi salvo da primeira emboscada pelo comandante Ndozi. Éramos jovens e adolescentes quando tomamos contacto com a guerra para defesa da integridade nacional e fomos apanhados no olho do furacão.
Vergado o regime colonialista de Lisboa, não nos apercebemos de que a força hegemónica na África Austral tinha a marca da discriminação e segregação racial: o regime do apartheid instalado em Pretória desde que era uma colónia britânica.
Fomos para a guerra, enterramos, em poucos casos, nossos camaradas, produzimos a Paz. Essa era a nossa missão enquanto militares, mas a vida não sorriu tanto assim para todos.
Excelente seria se todos os que atendemos à chamada da Pátria para a Resistência Popular Generalizada hoje estivéssemos a desfrutar, efectivamente, os frutos da Paz. Mas muitos tombaram na primeira esquina, outros nem tanto, ficaram nas recordações as suas façanhas.
Hoje, os resistentes e sobreviventes são atirados para o esquecimento e a indiferença. Um dos que chegaram ao Dia da Paz foi o actual comissário da polícia nacional na reforma, Nazaré Manuel Cardoso (Lalé). No baú das recordações, encontro fotos que são retratos da história. Em 1984, a guerra estava no auge, na Cahama. A aviação sul-africana semeava morte e destruição.
A via que ligava o Lubango a Ondjiva era conhecida como a “Estrada da Morte”. Até de noite os helicópteros dos racistas, armados com foguetes, atacavam as colunas militares.
A guerra mudou no dia em que chegaram ao teatro das operações defesas anti-aéreas sofisticadas. Os “karkamanos” experimentaram então o sabor amargo da derrota.
No início da Operação Savana, o comandante das tropas na Cahama era o capitão Farrusco. Face ao avanço das tropas invasoras, foi preciso recuar. Mas depois da vitória das FAPLA na Grande Batalha do Ebo, todo o Sul de Angola ficou libertado, em Março de 1976. As FAPLA enfrentaram milhares de homens, tanques, artilharias de longo alcance à aviação.
Mas as tropas invasoras nunca conseguiram passar as posições da Cahama. Os sul-africanos até atacaram com drones as posições das FAPLA. Na Cahama, não existia dia nem noite. Ninguém registava o dia da semana ou o mês. Os combatentes apenas sabiam que os aviões sulafricanos nunca saíam do ar e despejavam bombas que matavam.
A derrota dos sul-africanos deveuse não só ao heroísmo das FAPLA, mas também à chegada de material de guerra sofisticado. Sobretudo para a defesa anti-aérea. Entre 15 de Dezembro e 5 de Janeiro, as FAPLA eram fustigadas com ataques permanentes da aviação sul-africana. Os aviões estavam sempre por cima da Cahama. Um avião só partia quando chegava o outro.
Bombardeamentos de dia e de noite. Era o inferno. No auge da batalha, os sul-africanos desembarcaram tropas especiais. Os invasores foram atraídos para falsas posições, mas as FAPLA estavam na estrada para Xangongo.
Quem enfrentou as tropas blindadas foi o primeiro batalhão do segundo tenente Carlos Sachimo. Também enfrentou as forças especiais o terceiro batalhão do segundo tenente Kimbi.
Mais duas companhias de tanques comandadas pelos oficiais Silva e Vasco. Tudo mudou quando chegaram à Cahama armas modernas para a defesa anti-aérea. Eram canhões de 57 milímetros sincronizados. Mais o carro de combate Estrela Um, com foguetes.
A artilharia era comandada pelo primeiro tenente Dolizie. Tinha o canhão 130, o mais potente de todos. O segundo tenente Herbert tinha o canhão de 122 milímetros D-30. Os BM21 estavam com os oficiais À Vontade e Jackson. Chefe da artilharia da brigada, primeiro tenente Kiteculo. Hoje, toda a gente sabe o que é um drone. Mas, naquele tempo, ninguém falava nisso.
A guerra de agressão dos racistas sul-africanos a Angola serviu para experimentar novas técnicas de guerra. Uma delas foram os aviões não tripulados. Dada a potência da defesa anti-aérea, os aviões de guerra sul-africanos nunca mais apareceram na Cahama.
Eram enviados os drones. Na Cahama, os karkamanos provaram o sabor amargo da derrota. Abandonaram a região e foram para o Cuando Cubango. O povo voltou do Lubango para as suas terras.
As incursões da aviação da África do Sul no Cunene e Huíla acabaram, e também acabou a soberba de irem bombardear o Lubango quando lhes apetecia. Desde então, sobrevoavam a fronteira.
As FAPLA ainda foram reforçadas com o Quadrat, um sistema de mísseis anti-aéreo com radar próprio, autónomo na condução do tiro. Tinha grande capacidade de alcance, precisão e destruição.
Quando chegou essa arma, os sulafricanos registaram grandes baixas. Foram para o Cuando Cubango, mas lá sofreram a derrota final, no Triângulo do Tumpo.
Até à assinatura dos Acordos de Nova Iorque, os aviões sul-africanos nunca mais apareceram na Huíla e Cunene. Nem os drones. O percurso entre a Cahama e o Lubango passou a fazer-se sem problemas.
Acabou a supremacia dos karkamanos. Na segunda invasão dos racistas de Pretória, o comandante das tropas já era o capitão Nzumbi, o comissário político era o primeiro tenente Lalé, primeiro tenente Nando Mateus, chefe do estado maior, Carlos Bimbe, chefe das operações, David Makenguele, chefe técnico, primeiro tenente Kibela, chefe das comunicações, Nando Conho, comandante do segundo batalhão.
O comandante da região era o tenente-coronel Kianda. As FAPLA foram mesmo heróicas, e muitos dos seus heróis estão espalhados em todo o território nacional. Com o peso da idade e marcas da guerra, até são “insultados” pela geração pós 2002… Honra e glória aos heróis que não regressaram a casa!
Por: Alberto Kizua