Tendo em conta que o senhor já exerceu diversos cargos na antiga TGFA e na Polícia Nacional de Angola, até o de Comandante-Geral, pode apontar, no seu ponto de vista, os três “pecados capitais” que o actual comandante-geral da PN deve evitar cometer para ter êxito na sua nobre missão?
Eu sou um oficial reformado completo: estive no serviço militar, na Segurança do Estado e na Segurança Pública. Sou Tenente-General das Forças Armadas Angolanas e Comissário-Geral da Polícia Nacional de Angola [PNA], reformado. Realmente a Polícia passou a ser a nossa casa afectiva. Foram 32 anos dedicados à casa dos 50 anos de actividade pública. Gostei de ser e estar na Polícia. Dois grandes órgãos que marcaram a minha vida profissional: a TGFA e a PNA. Foram unidades em que deixei as minhas gotas de suor. Não deixo de referenciar a Polícia Fiscal e a ex-Polícia Económica.
Ainda não respondeu à minha questão…
Quando falei aqui da não interferência, já tinha dado luzes. Eu sou de opinião que, quando se assumem esses cargos ministeriais, devia haver uma pequena formação. As pessoas têm que saber quais são os seus limites. Há limites. E de- vemos também saber distinguir o que é o político, o que é o estatal. Saber distinguir o que é a execução, o que é a coordenação. Se nós entrarmos nos meandros de que quem coordena também executa, não vamos fazer nada. É a mesma coisa como um árbitro a jogar futebol. Outra questão é, de facto, aquela que eu disse que hoje conseguiu-se, felizmente. A polícia tem de ter a sua independência financeira. Não porque queremos encher os nossos bolsos. Por outro lado, eu não concordo nada que os comandantes sejam delegados [do Ministério do Interior]. Aliás, isso até é incorrecto.
Por que razão?
Os delegados são uma entidade política e administrativa. Os comandantes são os operacionais, são entidades republicanas, entidades estaduais. O delegado do MININT [Ministério do Interior] pode ser membro da comissão executiva e do comité provincial do partido. Como comandante, como é que vai ser? Não custa nada. Eu não concordo que até no município tenha delegado executivo do MININT. Por quê? É só confusão.
Como assim que é só confusão?
É só confusão. Há coisas que eu acho que devem haver uma certa discussão, uma certa análise em órgãos apropriados. Mas as pessoas não gostam de discutir, não gostam de falar. E eu tenho certeza de que as pessoas vão já ficar zangadas outra vez comigo, porque o Paulo falou. Não, o Paulo não pode ficar calado. Deram-me a boca para que eu possa falar. Tenho 70 anos, não vou ficar mais calado. Porque amanhã, quando estiver ali no R20, ou no Velório da Polícia, ou ainda no [Velório do Cemitério da] Santa Ana, vão dizer sobre o nosso legado, não sei não. É agora que nós de- vemos falar. É agora que nós devemos escrever, no respeito. Dentro daquilo que é a ética.
Infelizmente, nós às vezes temos que recorrer aos órgãos de comunicação social para sermos ouvidos porque não temos onde falar. Queremos falar com esse, está ocupado. Com aquele, está ocupado. Na época em que esteve no activo, tentou passar essa visão ao anterior ministro do Interior… Nós fomos conselheiros. Hoje, talvez, ele entenda que perdeu, na altura, um bom aliado. Os aliados que simularam ser amigos dele, o traíram. Digo aqui, peritoralmente: o traíram.
Eu sempre disse: cuidado. Nem todo aquele que diz “Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, senão aquele que cumpre a sua vontade”. Muitos dizem: chefe, chefe. É mentira. São falsos. O facto de eu poder criticar o meu superior não significa que eu esteja contra ele. O facto de eu contrariar aquilo que eu sei que ele está a cometer como uma irregularidade, não quer dizer que estou contra ele. Estou a ser amigo dele. Isto é o que nos falta. Eu nunca vou trair o meu partido.
Eu nunca vou mudar de camisola. Até hoje, vocês sabem que eu estou no MPLA. Porque o MPLA foi a minha mãe. Eu nunca mudo de mãe. Seja ela em que condições ela estiver. Mas quando eu tenho que dizer aquilo que eu acho que é justo, falo. Falo e nós devemos abraçar. Porque às vezes as pessoas que nos fazem mal estão ao nosso redor. São as pessoas mais próximas. Que não querem que os outros se aproximem.
O senhor, no seu discurso de despedida, falou do tempo de amizade que mantém com o anterior ministro do Interior. Que vem desde a infância. Essa amizade continua até hoje?
Eu sou amigo de todos. Eu posso dizer que tocou um pouco na minha vida e hoje os efeitos ainda são sentidos. Mas é o meu amigo. O que passou , passou. A vida vai para frente. Ah! Eu não fico satisfeito pela infelicidade dos outros. Pela tristeza dos outros. Pela desgraça.
A vossa amizade nasceu onde, senhor comandante?
Do desporto. Na escola, éramos miúdos em Malanje e jogávamos bola. Ele era um bom atleta e corria muito. Nós entramos no momento mais crucial da vida política desse país. Reforçamos a luta de libertação nacional, em 1974. Lutamos pela conservação da independência. Pela soberania. Lutamos pela paz. E hoje estamos a lutar para o progresso. Tanto mais que a nossa geração é que está hoje na presidência. Começamos bem. Nós estamos a ver que estamos a acabar mal. E então… É preciso valorizar. É preciso valorizar. Não entramos sem experiências. Fomos apanhando experiências ao longo dos anos. Então, eu acho que esses 50 anos não nos devem esquecer.
Fala dos feitos da sua geração como sendo a geração de ouro. Há alguma coisa feita pela vossa geração que o deixa triste, olhando para a situação actual do país?
Sim, quer dizer, hoje nós estamos esquecidos. Estamos esquecidos. Sinceramente, o que me deixa triste é isto. Estamos esquecidos. E eu acredito que quase metade ou mais dos nossos camaradas já morreram. Outros já estão aí há dias, mais ou menos dias, já estão a ir. Todos os meses, há sempre: oh, fulano já foi… Uma pessoa pergunta: fulano? E a resposta é: oh, não sabes, já foi. Já está em outra dimensão, agora é da outra dimensão. Então, nós estamos tristes. E eu digo isso porque é possível fazer alguma coisa. Ninguém quer funções ou coisas.
O que querem com isso dizer? Pode ser mais preciso?
Eu, muitas vezes, tenho sugerido, sobretudo nós, generais, comissários, oficiais superiores, não sei quantos, sejamos chamados, seleccionados, em função das aptidões. Nós lidamos com questões políticas, questões diplomáticas, questões económicas, questões comerciais, empresariais, etc. Temos tudo isso. Dê-nos uma pequena informação de 15 dias ou 20 dias. O Instituto de Defesa Nacional até tem dado bons cursos. Aqui, o Instituto de Administração Pública tem dado bons cursos.
Vocês precisam de mais formação?
Sim, vamos fazer esses cursos. Há muitos camaradas com activos que estão paralisados. Porque não têm recursos. Então, não podem ajudar-nos a financiar, ou ajudar-nos a financiar para que esses activos funcionem? Estamos a dar emprego. Eu, todos os dias, sou abordado por pessoas que não têm emprego. Todos os dias. Então, se eu tiver algo que eu posso fazer, um trabalho, vou empregar a esses camaradas, alguns dos nossos camaradas que foram, até, nossos colegas.
Apesar de estarem na reforma, pretendem voltar ao activo no Governo?
Há muita coisa para fazer e não é preciso estarmos inseridos no Estado ou no Governo. Olha para a nossa geração e pergunta: quem de nós, comandantes, está na Assembleia Nacional? Nenhum. Vocês vão falar, está lá Pedro Neto, está lá… São os políticos. Os comissários políticos, entre eles, ajudaram-se e foram lá. Mas comandantes. Quem é hoje o comandante que está numa administração executiva, não executiva, de qualquer empresa? Quem? Nenhum. Nenhum.
Quem hoje está numa actividade estratégica? Então, esses comandantes que andaram ali, que combateram, que esforçaram, que garantiram esse país, estão onde? Isso é que nos entristece. E ninguém fala connosco. Ninguém fala connosco. Recebem, às vezes, orientações. O presidente já disse: ponham os camaradas a fazer palestras, ponham a fazer coisas. Mas não nos deixam fazer palestras.
Isso que o senhor está a dizer acontece?
Sim, porque têm medo de que possamos despontar e ocupar o lugar deles. Isso é uma realidade. Você foi comandante-geral da polícia. Quando você chega num estado desse, você já tem um nível de vida também. Você vai baixar mais. Isso não é gestão. Vai baixar mais. Não consegue comprar bateria de carro. Porque o carro, quando vai à bateria ou vai à revisão, uma pessoa só fica zangada, nervosa. Não pode.
Quais foram os momentos mais críticos da sua carreira político- militar?
Um deles foi o de cumprir missões de alto risco e sozinho, por três dias, na Jamba, para dirigir a operação para detectar as alegadas forças ocultas da UNITA, no âmbito do processo de paz. O outro foi ter estado no Andulo para fardar uma companhia da guarda do Doutor [Jonas] Savimbi, na perspectiva de vir a ser Vice-Presidente da República. Pousar de helicóptero no Cuango sobre forte bombardeamento das forças inimigas, na altura. E, como já referi, salvar os nossos camaradas do Posto Fronteiriço do Mucusso. Dirigir as operações de asseguramento ao Covid 19 e o asseguramento do Papa Bento XVl também foram marcantes.
E como tem sido o seu dia-a-dia, agora que está reformado?
Matabichar, acordar, matabichar e andar por aí. Ir ao Belas Shopping, ver algumas montras e tal, não sei quantos. Disseram, tem que escrever. Escrever o quê? Não sei qual é a realidade. Outros dizem cria em- presas. Mas vai criar a empresa com o quê? Se só a garantia que pedem para você investir numa coisa é superior àquilo que você pede dar. Então, nós estamos aqui à espera do fim dos nossos dias. É verdade. Estamos à espera do fim dos nossos dias. É isso que está a deixar muita gente a ficar desanimada. Está a perder a vitalidade. Você vê os nossos camaradas, contemporâneos, arrombados. Porque não há esta atenção que quem deve prestar. São nossos colegas. É incrível isso que eu estou a dizer. Estou a falar do coração. O telefone não atende, manda mensagem e não responde. São nossos colegas. E agora há um termo que usam quando uma pessoa fala com eles: “Está bem, vou fazer a advogacia”. Quando assim o diz, está tão claro, não vai fazer nenhuma advogacia.
O senhor não está a exagerar?
Não. Eu queria também aqui aproveitar uma oportunidade de lamentar, falando mesmo desse desprezo que nós temos. Nós começamos bem e estamos a terminar mal. Antes, éramos muito valorizados. Éramos “os heróis”. Hoje, somos os delinquentes. E eu falo isso com muita dor, porque eu estou a ser alvo de um processo judicial muito injusto.
O que está na base desse processo judicial e quem o está a mover?
É um processo em que me retiram um terreno totalmente legalizado, com toda a documentação possível, com todos os procedimentos feitos, em que as estruturas do Estado hoje e as entidades que assim o legalizaram existem. Mas um jovem juiz, movido, não sei por quê, em preços e vontades, retira-me o terreno para dar a um forasteiro.
Qual é a dimensão do terreno e onde se encontra a localização?
Eu falo isso publicamente porque já falei, já recorri e nada. Ninguém te liga. Hoje, ninguém quer saber de nada. Hoje, infelizmente, o nosso país, e eu vou citar aqui, as pessoas só trabalham para dois objectivos: satisfazer à vontade e agradar ao chefe. Só trabalham para agradar. Para se manterem no lugar. O juiz toma decisão numa sexta-feira, às 13 horas, para não haver mais recurso, e manda comandos, forças de reacção da Polícia para retirar o terreno. Isso se faz? E até hoje, ninguém faz nada. A lei permite que o cidadão recorra de uma decisão que considera injusta. O senhor já fez isso? A própria direcção da Magistratura Judicial sabe. Tem consciência disso. Eu não sou uma pessoa qualquer. Eu tenho educação jurídica, política, doméstica e familiar. Eu não vou meter-me em falcatruas.
Se o senhor comandante tem to- do o documento do terreno, como é que acabou perdendo deste jeito?
Porque o senhor diz que é dele. Um forasteiro. Primeiro disse ser do Quim Ribeiro, porque o Quim Ribeiro queria-lhe matar, foi-se refugiar na Kissama, não sei se era para fazer guerrilha contra o Quim Ribeiro, mas depois o Quim Ribeiro ficou preso e voltou. Uma história. Põe documento, falsifica documentos, põe datas anteriores, põe datas posteriores. E é assim que nós estamos a funcionar. Eu hoje reclamo isso, publicamente.
E há quanto tempo é que o senhor comandante perdeu este terreno?
Já estamos há mais de seis meses ou sete
E que medidas tomou?
Fiz todos os recursos solicitados. Tem um advogado que fez todas as acções pedidas e aquilo ficou levantado. O advogado vai todos os dias ao tribunal para saber como é que foi o processo. Aliás, o Tribunal da Terceira Sala Civil já sabe tudo. Eles mesmos já lamentam. Eu não sei o que está se passando. Todos sabem desse processo. Mas há um barão que está atrás disso tudo. Há um barão que está atrás disso tu- do. Há muito dinheiro aí em jogo. Aliás, já manifestei a muita gente, mesmo os juízes, que estão admirados por esta situação. É um assunto antigo.
O que é que o dono, a pessoa que alega ser o dono do terreno, está a fazer?
Olha, como é possível que haja uma providência cautelar e o homem esteja a vender o terreno. Está a vender parcelas. Está a construir e ninguém faz nada. Mesmo denunciado, mesmo enviando fotografias, provas concretas, ninguém faz nada. Isto é que me irrita. Há uma providência cautelar, o senhor está a fazer, vendeu parcelas, estão a construir. Até hoje. E o que mais me ofendeu foi ser retirado o terreno com forças de reacção, a Polícia de Intervenção Rápida [PIR] e comandos das Forças Armadas.
Forças policiais que o senhor comandou…
Sim. Mas isso é mandado a pedido do próprio juiz, que, segundo a lei, eles são soberanos nas suas decisões. E como nós não somos soberanos, então, temos que nos sujeitar. Mas comigo isso não vai pegar.
Há mais alguma coisa que queira acrescentar que não lhe foi questionada?
É preciso que nós nos entreguemos. Não é o Estado que vai fazer tudo. Eu falei de formação. Nós andamos esse mundo. Eu fui membro do Conselho de Chefes de Polícia Internacionais do mundo. Todos os anos, eu ia aos Estados Unidos. Eu fui o chefe da Comissão de Peritos de Defesa e Segurança da última reunião do Comité dos Países da Linha da Frente. O Pedalé era o chefe da direcção, a última missão que ele cumpriu. Temos tanta experiência para morrer moribunda. Então, é isso que muitas vezes nos desanima.
Eu penso que podemos, sim, realmente fazer muita coisa boa. Vamos nos unir, vamos nos aproximar cada vez mais, vamos nos reconciliar cada vez mais. Agradeço a vossa presença, que foi corajosa, porque muitos de vossos colegas fogem. Têm medo, porque se fizerem entrevista ao Paulo de Almeida, ou seja, lá quem for, vão ser punidos. Nós temos que acabar com este sentimento de receio, de medo. Por outro lado, importa referir que aceitei dar esta entrevista porque este ano fiz 50 anos desde que entrei na vida política e militar do nosso país.
Muita gente tem-me aconselhado a ficar calado, a não dizer na- da, deixar as coisas correrem, mesmo que elas sejam boas ou más. Tenho 70 anos de idade. A Bíblia diz que já chegamos ao nosso limite de idade. Tudo daqui para frente é sobrevivência ou a Deus pertence. Como não temos espaços para falar, transmitir as nossas experiências, conhecimentos, ideias e críticas, o único escape que encontra- mos são estas vossas gentilezas.