Aos 37 anos de idade, Zaiadiaco Pedro Pinto, o guarda da empresa Activa, que disparou mortalmente contra três taxistas e de seguida retirou a sua própria vida, no bairro Calemba-2, carregava uma ficha de conflitos enorme, quer no serviço quer na zona em que vivia.
Por isso é que naquele dia 22, sexta-feira, as pessoas que já o conheciam julgaram que das suas constantes ameaças ele não passava, até que alvejou mortalmente contra os três taxistas, Sobakidi Miguel, Gabriel Ferreira e Mbuta Futila, tendo de seguida acabado com a sua própria vida.
As versões são desencontradas, a mais recente, depois de um aturado trabalhado de investigação, aponta que, naquele fatídico dia, Zaiadiaco, que é natural do bairro Quiquila, município de Quimbele, província do Uíge, teria cobrado uma dívida que já durava dias a um dos taxistas que guardava a viatura na “placa” defronte o seu posto de trabalho. O valor da dívida não foi revelado.
Mas, o taxista teria solicitado calma a Zaiadiaco, prometendo que devia pagar tão logo voltas- se daquela que seria a sua primeira corrida, uma manhã cinzenta sob insistentes chuviscos. Recusando a proposta do taxista, cujo nome não foi possível apurar, Zaiadiaco ameaçou o homem com um primeiro disparo no ar, o que obrigou o taxista a fugir para um local incerto do outro lado da estrada.
Em defesa do colega, alguns taxistas da “placa” tentaram buscar satisfações, quando, em resposta, Zaiadiaco começou a disparar mortalmente contra os homens, sendo que alguns deles tentaram fugir, mas foram alvejados mortalmente. De seguida, o homem decidiu acabar consigo, retirando a própria vida.
Óbito em lugar incerto
Entretanto, percorrida uma semana, continua incerto o local do óbito e o paradeiro da família do agente de segurança privada que matou os três taxistas e suicidou- se. O óbito, que estava inicialmente no bairro Wengi Maka, passou para o Bita Progresso, Cacuaco e agora anda em local incerto porque a família tem medo de sofrer eventual retaliação por parte dos familiares dos três homens mortos.
um histórico de conflitos Zaiadiaco prestava serviço na empresa Activa há mais de um ano. Ele terá substituído o irmão, que teria sido demitido por indisciplina.
Zaiadiaco, tratado por “Operativo” pela maior parte das pessoas, tinha na protecção de viaturas, que passavam a noite defronte o seu posto, um rendimento extra. Entretanto, vezes sem conta, relatam os moradores dos arredores, Zaiadiaco se desentendia com os populares e com os taxistas, sobretudo quando estes não pagavam os valores correspondentes à protecção das viaturas.
“Ele já chegou a ameaçar que vai atirar nas pessoas várias vezes. Também dizia que vai se matar. Brigava por tudo e por nada. Quer dizer, ele era um doente. E os próprios chefes dele sabiam disso”, desabafou um taxista.
Armazém sob controle da polícia para evitar sabotagem
Desde a ocorrência, o armazém de venda de produtos diversos, em que trabalhava o guarda, encontra-se encerrado e sob controle dos agentes da Polícia Nacional. A medida foi aplicada para evitar a fúria da população que, desde a ocorrência, mostra-se chocada com a situação e culpabilizar os responsáveis pelo estabelecimento por estes já terem conhecimento, por via de muitos relatos, sobre o comportamento do agente de segurança privada.
“A população está de facto muito revoltada com tudo que aconteceu. E, por isso mesmo, é que a família do guarda decidiu abandonar a casa em que vivia e agora está em local incerto. Mas o nosso apelo é pedir calma à população e deixar que a polícia resolva o problema porque justiça pelas mãos próprias é, igualmente, crime”, alertou o porta-voz da polícia em Luanda, Nestor Goubel, em declarações ao jornal OPAÍS.
Expulso de casa
Também na casa onde vivia até recentemente, antes de cometer o homicídio e suicídio, no interior do bairro Vila Kiaxi, Zaiadiaco foi expulso pela dona por comportamento agressivo. “Tanto é que, tão logo houve essa tragédia, as pessoas se dirigiam nesta mesma casa.
Mas aí, deram conta de que ele já tinha saído de lá por causa mesmo desse histórico de violência”, contou, ao OPAÍS, um dos agentes da esquadra de Polícia da Vila Kiaxi, local onde decorre o processo-crime.
Empresa de segurança dificulta colaboração
Os responsáveis da empresa de segurança, que constituem, até ao momento, a única ponte de contacto quer para a polícia como para outros interessados, não dispõem, igualmente, de informações sobre o paradeiro do óbito e da família do guarda cujos restos mortais encontram-se na morgue do hospital Josina Machel, conforme soube o jornal OPAÍS.
Apesar dos nossos contactos com os reparáveis da referida empresa de segurança, estes não conseguiram precisar o salário de Zaiadiaco, o seu processo de recrutamento, os procedimentos de selecção e outras questões que podem destapar o seu grau de frustração.
Um histórico de sangue
Ocaso do Calemba 2 abriu, esta semana, as feridas de outras famílias que já viram as vidas dos seus entes queridos interrompidas com a fúria de segurança impreparado. É o caso de um agente de segurança, que fazia a guarda de protecção numa padaria, no município do Cazenga, em Setembro de 2023, que disparou mortalmente contra dois colegas de trabalho e o chefe.
Também em Julho de 2023, um outro cidadão, cujo nome não foi identificado, funcionário de uma empresa em Benguela, disparou mortalmente contra o seu colega, após uma discussão sobre posições hierárquicas gerada por expectativa de conseguir atingir cargos de chefia. O incidente aconteceu no município do Lobito, durante o horário de expediente dos funcionários da respectiva empresa.
Tudo aconteceu em função de um desentendimento que gerou ira a um deles, este que usou a própria arma de serviço e disparou à queima-roupa contra o colega, afectando o abdómen.
segurança mata colega ao inspeccionar a arma
Já em Dezembro de 2020, o Serviço de Investigação Criminal no Uíge deteve um cidadão nacional de 28 anos, funcionário de uma empresa de Segurança Privada, suspeito de homicídio com recurso a ar- ma de fogo tipo AKM, contra o seu colega de profissão.
O triste episódio ocorreu no bairro Papelão, concretamente nas imediações da Igreja Bom Deus, numa altura em que o suspeito preparava a renda de turno.
Por imperícia de manuseamento da arma de fogo, isto é, no acto de inspecção, produziu um disparo que atingiu a região da clavícula esquerda com orifício de saída na caixa torácica do lado direito, o que provocou morte imediata.
Guarda que mata patrão
Também em Novembro de 2018, Vitorino Reis, 26 anos, vigilante afecto a uma empresa de segurança, matou a tiro o proprietário da residência em que trabalhava, identificado por Dão Trungono, 30 anos, de nacionalidade vietnamita, tendo roubado a quantia de quatro milhões de kwanzas.
Segundo a Polícia Nacional, o crime ocorreu no bairro Chinguar, no distrito urbano do Benfica, quando o segurança, munido com uma espingarda do tipo AKM, entrou na residência da vítima e exigiu que lhe fossem entregues os valores monetários que estavam guardados num cofre.
O guarda disparou contra o patrão, tendo atingido a região do abdómen, causando morte imediata. Acto contínuo, arrombou o cofre e roubou os valores monetários e pôs-se em fuga, tendo sido mais tarde capturado pelas forças da ordem.
Sindicato diz que alertas nunca faltaram
O secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores de Segurança Privada, Francisco Simão, diz que os casos de mortes envolvendo seguranças de em- presas privadas não são um assunto novo.
De acordo com Francisco Simão, para além dos casos que não chegam à mídia, mais de duas ocorrências do género são registadas todos os anos e que chegam ao conhecimento da sua organização, que controla mais de 10 mil agentes de segurança de 400 empresas privadas. De acordo com o responsável, as empresas de segurança estão subdividas em primeira, segunda e terceira categoria.
Conforme referiu, a maior parte das empresas que operavam no país é de terceira categoria, que pagam um salário abaixo dos 30 mil kwanzas, sem alimentação, sem ajuda médica, sem segurança social e sem o mínimo de preparação dos efectivos que são retirados de casa para um posto de trabalho, onde passam a ter em sua posse o controle de uma arma. “Todas essas irregularidades concorrem para estes incidentes que temos visto.
Um indivíduo desepreparado, com um salário baixo e que ainda atrasa, que passa fome e sem assistência médica, com uma arma na mão, não tem como não causar tragédias. E foi isso que aconteceu a semana passada”, apontou
Francisco Simão acrescentou ainda que, dos encontros que tem vindo a manter, quer com a polícia, quer com os responsáveis das empresas de segurança, tem vindo a alertar sobre todas as vulnerabilidades e irregularidades a que estão expostos os agentes de segurança privada, mas infelizmente todos os esforços têm sido em vão.
“Falta de alerta é o que não tem faltado. Infelizmente, não nos ouvem. E o resultado de toda ignorância são estas cenas tristes, que poderiam ser evitadas caso as empresas fossem mais responsáveis e as autoridades fossem mais rígidas na atribuição de licenças para as empresas que não têm condições para operar”, frisou.
Polícia “na corrida” para alternância do quadro
Já o director-adjunto de comunicação institucional e imprensa da Polícia Nacional, subcomissário Mateus Rodrigues, disse que a polícia tem conhecimento das irregularidades cometidas por algumas em- presas de segurança privada e que trabalha para a inversão do quadro.
Em termos práticos, Mateus Rodrigues apontou o processo de substituição de armas de guerra por armas de defesa pessoal em curso em todo o país. Embora esteja a decorrer numa velocidade gradual, o director- adjunto de comunicação insti- tucional e imprensa da Polícia Nacional garante que o processo continua a seguir o seu passo nor- mal, apesar de haver ainda resistência de algumas empresas. “Como sabe, muitas dessas em- presas existem há mais de trinta anos.
E ainda vamos constatando algumas resistências, mas é um processo que está a decorrer e seguindo o seu curso normal”, explicou. Outrossim, Mateus Rodrigues reconheceu haver, por parte de muitas empresas, a falta de preparação dos seus efectivos, mas que têm sido articuladas com medidas efectivas com essas empresas para que adoptem uma postura mais responsável, a julgar pelos novos tempos e desafios que a actividade de protecção física exige.
“Temos vindo a acompanhar a actividade destas empresas. Reconhecemos haver ainda muitas irregularidades, mas é uma questão que temos vindo a chamar a responsabilidade dos responsáveis destas empresas para que não voltemos a registar casos do género”, destacou.
Por outro lado, Mateus Rodrigues não avançou números de empresas privadas de segurança que já fizeram a troca de armas de guerra para as de defesa pessoal. Mas, dados a que OPAÍS teve acesso apontam que a Polícia só recebeu, desde a entrada em vigor da medida, 1.900 armas de guerra das mãos de 240 empresas de segurança.
Sociólogo liga ocorrências a frustrações e pressão social dos agentes de segurança
Por seu lado, o sociólogo José Lourenço entende que o comportamento dos seguranças que disparam contra vidas indefesas enquadra-se na visão do “comportamento desviante, aberrante, intolerante e marginal” derivado de várias situações sociais que os indivíduos enfrentam.
O académico não descarta a possibilidade destas ocorrências estarem ligadas a um histórico de estresse e frustrações eleva- das em que estão envolvidos estes seguranças, provavelmente, no seio familiar e laboral em que prestam serviços.
“Frustrado com as rejeições de que são alvos no seio da família e laboral, estes homens vêem como única saída de serem respeitados tirar a vida de outras pessoas e as suas próprias vidas, como aconteceu agora”, alertou.
Tendo em conta os níveis de pressão social que os cidadãos sofrem diariamente, sobretudo actualmente com as dificuldades financeiras, José Lourenço defende a necessidade de as empresas de segurança formarem continuamente os seus efectivos, quer em matéria de defesa pessoal, quer em gestão de conflitos, atendimento ao público e contacto com as pessoas.
Outrossim, o sociólogo defendeu, por parte das empresas, o pagamento regular dos salários para diminuir a pressão social que estes efectivos passam no dia-a- dia. “Instamos ainda o Executivo, através do Ministério do Interior, a inspeccionar todas as empresas do ramo de segurança pessoal e industrial privadas, para aferir a organização e processos internos de recrutamento e selecção do pessoal que trabalha nesta área. Vê-se que merecem mais dignidade e justiça social”, defendeu.
Psicólogo defende exames aos agentes de segurança
Para o psicólogo clínico Leandro Freire, o acto de um segurança armado matar 3 pessoas e depois cometer suicídio é um caso trágico que pode ser analisado sob a perspectiva da psicologia do comportamento suicida e da violência.
Conforme explicou, a sociedade demonstra, cada vez mais, a necessidade de acompanhamento psicológico, tendo em conta a problemática que se vive causada por vários fatores. De acordo com o especialista, os agentes das forças de defesa e segurança, que usam ar- mas como ferramenta de trabalho, devem ser submetidos a exames psicológicos de modo a garantir que estejam em condições de lidar com estes meios.
Leandro Freire esclareceu que, apesar da escassez de dados, é possível delinear quatro fatores preponderantes e possíveis desencadeadores do triplo homicídio seguido de suicídio come- tido por este segurança. Entre os factores, apontou o estresse ocupacional ou síndrome de Burnout, Síndrome do “Ethos do Guerreiro”, transtorno de estresse pós-traumático e factores organizacionais.
Disse ainda que alguns transtornos mentais, como a esquizofrenia ou transtornos de personalidade, podem estar associados a um maior risco de comportamento agressivo. “A psicologia propõe que é crucial abordar qualquer sinal de pensamento suicida com seriedade e buscar ajuda profissional.
Muitas vezes, esses comportamentos são o resultado de um acúmulo de problemas não resolvidos e a intervenção adequada pode ser fundamental para prevenir tragédias”, apontou. De modo geral, o clínico de- fendeu ainda a necessidade de se realizar um estudo para se apurar as possíveis motivações deste acto de forma a ajudar a prevenir futuros incidentes do género.