Ao entrar no interior do bairro Caop, alocado ao distrito urbano da Vila, município de Viana, a partir da guarda passagem de nível da linha férrea, o ambiente é de agitação. Logo ao início, pessoas a venderem em tudo quanto é canto, inclusive na linha de comboio, sem temor pela própria vida.
Entre os vendedores, perfilam jovens que vendem aparelhos de som e colunas com ligações ao sistema de Bluetooth que espalham música por tudo quanto é canto. Mário Zico é um desses vendedores.
Numa das pequenas colunas, das tantas que carregava nas mãos, a música “Tropa da Caop” era das que mais se ouvia e em modo repetitivo. “Essa música fala mesmo daqui, da nossa banda e da nossa realidade.
É o nosso hino, Kota”, desabafa o jovem, visivelmente emocionado com a música que tornou-se viral e retrata fielmente a vida e o dia-a-dia da Caop, uma das zonas mais sofridas do município de Viana no que à delinquência diz respeito.
A música é um retrato fiel daquilo que se vive no interior da Caop que se estica entre A, B e C. Entretanto, a agitação, logo no início, a entrada do bairro, é descontinuada à medida que a reportagem do jornal OPAIS vai entrando e constatando a realidade.
As ruas principais são largas e possibilitam a entrada e saída de viaturas de um lado para o outro, sobretudo no período seco, realidade que é invertida em épocas de chuvas, em que a trafegabilidade é feita de forma sofrível.
“Só é bom passar aqui no tempo seco. Quando chove passamos mal, mano”, alerta o jovem e músico Milagre, a voz que deu o coro à música “Tropa da Caop”. Com orgulho, Milagre fala do sucesso e dos contratos que está a ter desde que a música começou a tocar. Mas disse que a música acaba por se um desabafo de todas as tragédias que já assistiu no bairro que o viu nascer. “Vi muita gente a morrer.
Vi pessoas que foram picadas com faca. Esse bairro é muito perigoso. O que a pessoa constrói em um ano, pode terminar num minuto. Por isso, quando fiz o refrão da música foi mesmo para desabafar tudo que sinto e vivo. É triste, mano”, desabafou.
Um cerco apertado
Apesar das ruas principais serem espaçosas, as travessas são apertadas e com casas de construção arrojada, retratando a carência da grande maioria dos moradores. Os mototaxistas constituem o principal serviço de transportação de pessoas e bens, coadjuva- dos com pequenas viaturas, na sua maiorias em mau estado técnico, sobretudo os do tipo Starlt e Corolla (acaba de me matar), que rasgam Caop adentro e a outros destinos como a Boa-Fé, Malueca, Mulenvos, Belo Monte, Seis Cajueiros, Rastas e outros bairros circunvizinhos.
“Nós aqui é que ajudamos as populações. Um dia sem sair às ruas, o povo passa mal. Mas as condições das vias nos dá cabo dos amortecedores, triângulos e rolamentos. E só podemos trabalhar até 20 horas. Porque mais para acima os assaltantes levam tudo”, lamenta o taxista Landú, na curta conversa com a nossa reportagem no interior da sua viatura Toyota Starlet vulgo “Bolinha”.
Perigo à solta
A movimentação pelo bairro deve ser com todo o cuidado para não cair na malha dos marginais que estão em quase toda a superfície à espera e à procura das suas vítimas “Não entra nessa rua, mano. É muito perigosa. Podes voltar sem o telefone. Ali os miúdos não brincam. E muitos deles são mesmo nossos filhos.
Mas nós os pais escondemos para não serem mortos pelo SIC”, começa por alertar Tia Zefa, moradora há mais de 20 anos na Caop B. Enquanto alertava a equipa do jornal O PAIS, Tia Zefa fazia questão de esconder o rosto com medo de sofrer represálias às mãos das “Tropas”, como são chamados os delinquentes do bairro, que volta e meia vagueiam na zona de um lado para o outro a procura das suas vítimas
Tia Zefa, que vende fuba à porta de casa, perdeu a conta do número de pessoas que viu serem assaltadas, muitas vezes, com recurso a arma de fogo e outros objectos contundentes. Refere que durante o período diurno as principais vítimas são os visitantes e os transeuntes que rasgam o bairro adentro.
Já à noite, frisou, os moradores constituem as principais vítimas, com os assaltos às residências a perfilarem na linha da frente. “Aqui já vimos muitas coisas. Mas não podemos falar mui- to porque eles (os bandidos) nos chamam de bufos.
E se abrirmos a boca, amanhã podem nos matar”, diz a anciã de 62 anos de idade, com um tom tímido. Para quem for autuado pelo crime, a cooperação, contam os moradores, deve ser essencial para evitar tragédias como espancamentos, ferimentos e até mesmo mortes.
Conforme relataram os moradores, dos assaltos, a preferência dos marginais recaem para telefones, perucas, dinheiro e calçados de marcas apetecíveis e conhecidas.
Esconderijos da criminalidade
Os becos e as obras inacabadas são os esconderijos preferenciais para onde os homens do alheio se refugiam depois de cometerem as suas acções. Esses locais também são quartéis-generais dos meliantes de onde engendram todas as suas artimanhas. Vezes sem conta, relatam os moradores, a Polícia recolhe corpos nos becos e nas obras inacabadas da Caop, em que, sobretudo, mulheres e adolescentes constituem as principais vítimas, embora se reconheça a diminuição destas práticas.
“Hoje em dia já não é como antes. Já vivemos tempos piores mas ainda existem alguns casos. Todo o cuidado é pouco, meu irmão”, avisa outra moradora que não se quis identificar por medo.
Lutas de ‘gangs’ aterrorizam o bairro
Ao circular pela Caop é possível ver em todas as artérias jovens a fazerem consumo de drogas e álcool à luz do dia. Quando já estão em estado etílico avançado, desaguam as suas frustrações em rixas entre grupos rivais, o que terminam, muitas vezes, em mortes e ferimentos graves.
Aliás, foi por esta razão que os grupos rivais definiram barreiras que proíbem os da Caop A em circular na B e estes não podem entrar na C e vice-versa.
Os moradores, muitas vezes, são as principais vítimas destas brigas porque acabam por levar por tabela toda rivalidade. “Quando eles estão a lutar, o bairro pára. Ninguém sai e ninguém entra. Isso acontece todas as semanas, aponta Domingos Pereira, morador, que já foi, muitas vezes, vítima das rixas entre grupos rivais.
De acordo com o morador, na sua maioria, os meliantes são jovens da zona que conhecem as entradas e saídas que, apesar de todo o trabalho feito pela polícia, insistem na prática. “Podemos dizer que os tempos passados já foram piores. Agora nota-se uma certa calma. Mas a verdade é que o nosso bairro não é nada sossegado. É muito difícil morar aqui”, frisou.
Carência de tudo
A separação pelos muros e a linha férrea do comboio entre a Caop e a sede urbana do município de Viana não esconde a realidade que é vivida pelos moradores do bairro que sentem-se marginalizados pela carência de serviços sociais básicos e as desigualdades.
Todos os dias são obrigados a fazerem a travessia na conhecida ‘Ponte Amarela’, que interliga a Caop ao centro urbano de Viana.
A referida pedonal, que ao longo do dia também tem servido de mercado em que são comercializados diversos produtos, à noite é frequentada por marginais que levam os bens e utensílios das populações que diariamente fazem a travessia de um lado para o outro através daquela estrutura.
Essa situação faz com que, a determinadas horas da noite, muitas pessoas evitam utilizar a ponte, arriscando a sua vida com a travessia perigosa na faixa de rodagem da via nacional 230, conhecida também como estrada de Catete, a Deolinda Rodrigues. Rosa Mussole é uma das moradoras que diariamente faz essa travessia.
É estudante do primeiro ano curso de enfermagem, no Instituto Superior Politécnico do Cazenga (ISPOCA), a jovem lamenta a vida sofrida em ter de se deslocar todos os dias de um ponto para o outro à procura de condições que o seu bairro não oferece. “Muitos de nós chegamos tarde ao bairro, porque o que procuramos aqui não tem.
Até os centros de formação são todos privados. Como é que os jovens não ficam marginais se os únicos lugares para passar o tempo que temos são as barracas, lanchonetes e bares?”, questiona a jovem de 25 anos de idade.
Correrias diárias
Para além da correria laboral diária, a travessia de um lado para o outro é motivada pela busca de serviços de que a Caop não dispõe como agências bancárias, identificação, registos, notários, formação, saúde, escolas e lazer, sobretudo para os jovens.
Os únicos hospitais públicos que a Caop dispõe é a Tenda Azul e o Cinco onde dão entrada, diariamente, casos de malária, doenças diarreicas e traumatismos, resultantes, muitas vezes, das lutas de gang’s e acidentes de viação com os mototaxistas (kupapatas), a liderarem o número das ocorrências.
“O hospital, como vê, atende todas as Caop’s. E nem sempre conseguimos dar respostas à procura. Quando estamos no momento de pico, alguns casos transferimos para os hospitais do Kapalanga, Mãe Jacinta, Ana Paula, Casa Amarela e no Zango”, descreveu uma técnica em serviço no hospital do Cinco.
A escola do Cinco é também das poucas referências do segmento de ensino. O resto das unidades são de iniciativa privada, cujos preços nem todos conseguem suportar, o que faz com que mui- tas crianças fiquem fora do sistema de ensino.
Policia assegura combate, mas sublinha complexidades do bairo
A Polícia Nacional, por via do porta-voz do órgão em Luanda, Nestor Goubel, reconhece a onda de criminalidade nas Caops e aponta o difícil acesso, a falta de iluminação pública e outros factores como estando na base da complexidade no combate ao crime.
Segundo o oficial, o extenso território da Caop, que se estende até outros bairros periféricos de Cacuaco, torna ainda mais o combate à delinquência num desafio diário e constante, o que exige do órgão a operacionalização de novas estratégias.
Ainda assim, Nestor Goubel assegurou que a Polícia tudo tem feito para estancar o crime, com operações constantes, policiamentos e abordagens de situações que configuram atentado à segurança e ordem pública.
“E fruto disso temos registado várias detenções e ao esclarecimento de uma série de crimes que assolam as nossas populações”, destacou. Outrossim, Nestor Goubel manifestou preocupação com o posicionamento de certas famílias que não colaboram no esclarecimento dos crimes. “Os delinquentes são jovens locais.
E, muitas vezes, as próprias famílias não ajudam a Polícia, pelo contrário, dificultam a nossa actividade”, deplorou, acrescentando ainda que “queremos mais participação das famílias. Só com as famílias juntas vamos poder combater o crime na Caop e noutros bairros de Luanda”.
Soltamos a voz para sermos ouvidos
O DJ e produtor Gumastó, autor da música “Tropa da Caop”, disse que usou o talento que tem para juntar os diferentes grupos do bairro com o objectivo de pôr fim à onda de delinquência que se apoderou da zona.
Conforme contou, por via da música, foi possível notar que os jovens da Caop têm vontade de seguir uma nova vida, desde que lhes sejam dadas as oportunidades. Aliás, esse posicionamento, frisou, ficou claro e conhecido aquando da participação de todos os jovens que participaram da referida música no podcast do Fly Squad, aonde os mesmos pedam auxílio da sociedade para abandonarem o mundo do crime.
Formação, emprego e espaços para a ocupação dos tempos livres é o que Gumastó defende para retirar a juventude da Caop A, B e C da delinquência. Referiu que, embora a música tenha unido os principais grupos rivais da zona, ainda assim, Caop é uma zona de alta perigosidade que carece do apoio da sociedade e menos julgamentos. “Para nós também não foi fácil ter que juntar grupos que não se cruzam.
É que os de um lado não podem atravessar a fronteira do outro, porque a situação saí fora do controlo e termina em tragédia. Mas conseguimos. E hoje há uma certa calmia no bairro”, notou. Com a música a tocar em tudo quanto é canto, Gumastó disse esperar que a Caop seja vista com mais atenção por parte de quem governa e toma as decisões.
“Da nossa parte está feito, soltamos a voz para sermos ouvidos. Agora é preciso que os jovens sejam apoiados com formação, escola e emprego. As pessoas envolvidas no crime têm vontade. Mas sem apoio é difícil sair da vida que levam”, explicou
Sociólogo defende programa de reabilitação comunitária dos jovens
Por seu lado, o sociólogo José Lourenço defende a criação de um programa social de reabilitação dos jovens entregues ao mundo da delinquência. Segundo o académico, esse programa passa pela construção de escolas, centros de formação, empregos e a valorização do talento de cada um dos jovens, no mundo do crime.
Em seu entender, as condições de habitabilidade dos jovens que vivem em zonas como a Caop podem, facilmente, atrair os jovens para a delinquência. Mas, frisou, se houver uma atenção e interesse das famílias e do Estado, na criação de oportunidades, isso pode ser travado.
“Devemos criar as oportunidades necessárias para que os cidadãos evitem cair na criminalidade. E essa responsabilidade deve ser partilhada entre as famílias e o Estado”, apontou.
Administração local e municipal em silêncio
Sobre o assunto, as autoridades de Viana não aceitaram se pronunciar. O director do gabinete de Comunicação da Administração Municipal, Januário Damião, que se encarregou de fazer a ponte de contacto entre a nossa reportagem e o administrador do distrito urbano da Vila, não o fez, apesar de solicitar o envio das questões, já em sua posse, desde o fim da manhã da última Quarta-feira, dia 23 de Outubro.