Era costumeiro o encontro e reencontro com as idades, lá na árvore grande do bairro, na rua dos Pula-pula, lá onde as pessoas quase que não dormitavam, se não fosse por causa das arruaças, das músicas altas em cada roulotte, a escassos metros uma da outra, era por causa dos roubos que não tiravam férias.
A cada roubalheira havia uma informação adicional numa parede com distinta visibilidade, apontando as pessoas e casas a seguir dos futuros assaltos.
Que aventuroso! Naquele dia estávamos nós a dar alguns sobrevoos, estávamos a adornar o verbo, tirando do âmago o que cada um de nós mantinha encoberto com a idade, com o tempo a passar por nós com cada pressa, a cobrar de nós vidas externas, muito para lá, sem ao menos dar a nós mesmos um pouco de recuo, um pouco de nós.
Debaixo da árvore, sobre o pneu sujo de cor já há muito agastada, estávamos nós. Gayeta decidiu acordar memórias, embalar o instante com os amigos da vida já passada, com os quais a mesma atreveu-se a colocá-los bem perto dele, e o trabalho, incontáveis vezes, quis separá-los, mas, como pessoa cultivada, teve os pés bem fixos em cada caminho que trilhou, sabia bem de ondem vinha e com quem não podia faltar quando tudo se lhe parecesse bem ou mal na sorte.
Entre viagens e risos, encontros e reencontros, Gayeta começou a dar vida ao verbo, a vasculhar o tempo e a contemplar nele seu o poder, quando ainda estávamos na segunda classe, na escola 815, quando Zombo, seu colega, armado em grandão e espertalhão, começou a ameaçá-lo e obrigálo a trazer faz-me-rir para comprar pastéis da tia Nguevinha, depois do recreio.
Aqueles pastéis davam água na boca de tanto cheiro, embora fossem feitos com água da cacimba, facto que fora descoberto somente anos mais tarde, porém os alunos não paravam de lá ir, até parecia que, com aquela água, os pastéis eram mais saborosos.
Numa segunda-feira, Joel havia ameaçado novamente Gayeta, e orientou-o a trazer o conhecido faz-me-rir para saborear os deliciosos pastéis com gelado, a grande verdade é que Gayeta não sabia por onde tirar os ditos faz-me-rir, e feito criança assombrada pelo medo foi mexer na pasta da sua mãe, Gina, que o pegou bem com a mão no acto.
Afinal, há tempo que em casa já desaparecera o famoso faz-me-rir, que, naquele mesmo dia, fez Gayeta chorar de tantas palmadas, que teve de contar em choro e gagueira a causa de toda astúcia.
Admirada, a mãe disselhe – Afinal! Vamos lá na tua escola para conhecer esse tal de Zombo, que me vai saber bem.
Ao chegar a escola, a mãe não fez caso, escondeu-se e deixou o clima tomar as rédeas de tudo, quando chegou a hora do recreio, Zombo apareceu instantaneamente com as mãos bem enfiadas na mochila de Gayeta, impossibilitandoo de se pôr em fuga.
Já tomado pelo medo, disse com a voz já muito hesitante- Não tenho. Zombo ao levantar a mão, a mãe de Gayeta vinha às pressas e prendeu-a no alto antes mesmo de pousar na cara do filho.
Arrebatada pela raiva disse – Você é que é o Zombo, não é?! Naquele mesmo dia os pais de Zombo apareceram na escola.
Maka grande! Ele passou o tempo de aulas varrendo o pátio da escola e, lá em casa, passaram-lhe uma boa sova, que daí em diante ficou quieto.
Nunca mais se meteu na vida de Gayeta. Naqueles tempos as crianças não experimentavam traumas ou a gente é que não sabia dar nomes às coisas e aos estados da alma.
Felito, soltou sua típica gargalhada, e começou a introduzir a trama que teve na mesma escola junto do colega Betinho, com quem eram recebidos as coisas num benco que dava acesso ao outro lado da rua, por um dos colegas que, embora estivesse na segunda classe, já tinha o hábito de tirar proveito das coisas dos outros, receber lápis, dinheiro e comida.
Outras vezes, enchia Betinho e Felito de chapadas que eles saíam do beco em direcção a casa com lágrimas enquanto corriam, e ele dizia – Se chegarem nas vossas casas a chorar, amanhã vou vos bater mais. Dizia alto no meio do beco e sorria por entre eufóricas artimanhas.
Numa sexta-feira treze em que Felito e Betinho saíam da escola felizes pelos resultados que tiveram nas provas, ao passar pelo beco, deparam-se com Kalike, antes mesmo de estarem próximo dele, os dois decidiram não mais acobardar-se em medo, meter-se em choros e fugas, levantaram a cabeça e juntos enfrentaram o Kalike, que de força não tinha tanta, pois prevalecia nele mais a atitude, mais a esperteza.
Naquele dia, deixaramno deitado, em ranhos, choramingando, envergonhado, os dois passaram-lhe uma boa sova, que ficou na memória do beco.
Betinho e Felito só passavam lá os dois, quando um saísse primeiro, o outro ficava à espera, quando o outro ficasse doente, o outro mentia doença para não ir estudar também.
Por: FERNANDO ADELINO