Sandálias, chinelos, sapatinhos, pulseiras e outros acessórios de vestimenta são alguns dos artigos que podem resultar da transformação dos pneus em bens úteis, além de estar a contribuir significativamente no processo de reciclagem durante estes anos de trabalho.
A arte feita completamente de forma artesanal começa com a procura de pneus velhos inutilizáveis, deitados ou abandonados em qualquer ponto da cidade, com maior incidência nas zonas periféricas e adjacentes a estabelecimentos de recauchutagem.
Identificadas as zonas em que facilmente se encontram os pneus, que são a matéria-prima, reúnemse condições para o transporte até à oficina do artesão, situada na sua residência, no bairro Paraíso, município de Cacuaco, em Luanda.
Após serem alojados num espaço propício, começa o processo de higienização dos pneus, antes mesmo da sua transformação em obra de arte, que tem atraído a atenção dos citadinos, entre outros.
Segundo o artista, o primeiro passo é colocar os pneus num tanque ou banheira espaçosa com bastante água e detergente em pó, vulgarmente conhecido como “omo”, onde ficam por dois dias, para permitir a extracção de todo o químico que os mesmos carregam, prejudiciais à saúde.
Findas as 48 horas de limpeza da matéria-prima, começa-se com o corte, que é feito com facas rudimentares, extremamente afiadas e resistentes, capazes de rasgar um pneu com facilidade e dividi-lo em vários pedaços de diferentes tamanhos, a depender das medidas das obras a serem feitas.
De lixo para chinelos e sandálias novas
O processo de produção de chinelas ou sandálias, que são os artigos mais solicitados pela clientela ao artesão do Paraíso “escondido” nas periferias de Luanda, inclui uma série de habilidades que devem ser dominadas pelo artista de 47 anos de idade, dos quais 23 dedicados a esta arte.
Além de saber manejar a faca e fazer os devidos cortes aos pedaços de pneus, saber desenhar é uma habilidade quase que “obrigatória”, porque é o passo que define a estrutura da obra.
Depois do corte, explica João Florindo, são feitos desenhos nos pedaços, para demarcar os limites de cortes delicados que vão definindo assim a estrutura, o tamanho e estilo do produto final.
Outros pedaços são cortados finamente para produzir cordas finas e compridas de borracha que servem de fitas para chinelas, sandálias, bolsas e outros acessórios que podem ser produzidos pelo artesão.
As fitas são também usadas para dar um estilo próprio ao produto, formando diferentes tipos e feitios. Neste processo, disse, a produção de chinelas e sandálias são os mais simples, chegando a fazer, em média, dois a três pares por hora, a depender do estilo e do tamanho.
Também conhecidos como “luaco” ou “londide”, os chinelos e sandálias de pneu, segundo o artesão, também tratado de ‘mestre Rasta’, chegam a ser mais resistentes que os “normais” e transmitem uma sensação de entusiasmo e espírito pan-africanista a quem os utiliza no seu dia-a-dia.
“As pessoas quando colocam não reclamam de nada, elas são mais resistentes, não rebentam à toa e fazem as pessoas se sentirem especiais, porque sente que está a preservar a nossa cultura, a preservar a cultura dos nossos mais velhos. É o chinelo de um africano de raiz”, considera orgulhosamente o artista.
Produção de artigos de uso doméstico
Para os automobilistas, os pneus têm um tempo determinado de durabilidade e utilidade, a depender do seu uso e da sua qualidade e resistência. Diz-se que, entre as várias razões que podem levar um pneu a ser considerado “inútil”, destaca-se o desgaste da sua parte exterior, criando dificuldades na travagem.
De igual modo, o excesso de furos, fuga nas laterais ou algum inchaço podem, facilmente, proporcionar a sua explosão durante a marcha do veículo. Quando apresenta estas características ou outras piores, imediatamente, o pneu é substituído e automaticamente descartado, considerado impróprio para o uso.
Noutras palavras, torna-se “velho”, “cansado” ou “inútil” para o uso em viaturas. É nestas circunstâncias que, involuntariamente, aplica-se a célebre frase do nobre químico francês Antoine-Laurent de Lavoisier «Na natureza nada se perde (…), tudo se transforma». O pneu velho é transformado em obra de arte “nova” e muito “útil”.
Ao que pôde nos mostrar o artesão, com um pouco de criatividade, inspiração, paciência, dedicação e domínio técnico, é, sem sombra de dúvidas, possível transformar os pneus velhos em outros objectos novos de uso doméstico e não só, além de chinelos e sandálias.
Fruto de muitos anos de prática, o mestre Rasta disse já ter feito cadeiras, bancos, mesas, cadeirões, vasos decorativos, vasos de plantas, bases de colchão para crianças, mesas de bar, e tantos outros artigos que têm sido úteis para uso em residências, estabelecimentos comerciais e até mesmo em escritórios.
“Eu faço muita coisa, senhor jornalista. Faço banco, mesa, cadeiras, base de camas para as crianças, já fiz até cadeiras e mesas para bares e roulottes e algumas também para escritórios.
Sou um artista que não tem limites na sua imaginação, às vezes, é só a falta de apoio que me limita”, afirmou o artesão, enquanto afinava as fitas para concluir mais um par de sandálias solicitado por um cliente.
Espaços de lazer
Delicadamente, explicou que os pneus velhos podem ser também bastante proveitosos para quem possui quintal espaçoso com área verde e um espaço propício para um almoço em família.
Podem ser feitos assentos fixos à volta de uma árvore ou poltronas improvisadas, para permitir que as possas possam repousar aproveitando a sombra da árvore.
O mestre Rasta afirmou que é possível serem produzidos bancos com encostos ou pequenos aposentos de baloiços, capazes de proporcionar momentos de lazer e descontracção para os pequeninos, sublinhando que tudo só depende da capacidade de criação do artista e daquilo que o cliente está disposto a pagar.
“Se o cliente me pede para fazer um jogo de cadeiras, tudo à base de pneu, eu faço, é só ele fazer o adiantamento de uma parte do pagamento para me permitir comprar alguns materiais mais adequados para execução e para servir também de incentivo a mim e a minha equipa de trabalho”, adiantou.
Diferente das chinelas, sandálias e bolsas ou acessórios de vestimentas, a produção de artigos de uso doméstico é mais complexo e demorado. Em média, o artesão leva seis a oito horas para ter uma cadeira devidamente concluída, incluindo a pintura ou a decoração do artigo que pode ser feito tanto com tintas, como com spray.
Carências dificultam a realização de projectos
João Florindo contou que pretende abrir um atelier de artes para ensinar outras crianças e jovens a técnica do seu trabalho, no entanto, a falta de condições e de apoio tem-lhe deixado desmotivado.
“Tenho aqui um espaço, por trás da minha casa, já limpei, é uma área grande, quero abrir um atelier para poder ensinar outros jovens e crianças a fazerem esses trabalhos.
Também, poder-lhes ajudar na criação dos próprios negócios, mas, como não tenho a possibilidade de construir, nem de colocar pelo menos um bate-chapa porque tudo está caro, fico um pouco triste com esta situação”, disse.
Outra situação que tem dificultado o artesão na conclusão dos seus projectos é a falta de meio de transporte para facilitar o transporte das suas mercadorias, assim como a sua própria deslocação no exercício do seu trabalho.
O artesão revela que chega a gastar mais de 10 mil kwanzas no aluguer de motorizadas de três rodas para o transporte das suas mercadorias ou até mesmo da matéria-prima para o seu pequeno estaleiro.
Sublinha que, com o auxílio de um meio de transporte, pode facilmente levar os seus trabalhos a vários pontos de Luanda e fazer entregas ao domicílio a custo zero, porque o que tanto anseia é ver o seu trabalho a ser reconhecido e espalhado por vários pontos da cidade.
“Com uma motorizada de três rodas, eu não me importaria de levar os meus produtos ao cliente sem cobrar nada. Levaria até a casa dele sem pagar nenhuma taxa.
O mais importante para mim é ver o meu trabalho a chegar distante, noutros municípios e, até mesmo, fora de Luanda, mas tudo isso só depende dos apoios”, reforçou.
Um trabalho que inclui a família toda
Como se tem dito em adágio popular “filho de caçador deve aprender a caçar”. João Florindo faz jus ao ditado ao incluir a sua esposa e três, dos seis filhos que tem, na prática da arte.
Apesar da nossa equipa de reportagem não ter encontrado a sua esposa, por esta se encontrar ausente para tratar questões de saúde, uma das suas filhas que se encontrava a trabalhar consigo mostrou-nos como a prática faz a mestria, independentemente da idade.
Com apenas 11 anos de idade, a pequena Augusta Florindo é encarregue de executar os pedidos menos trabalhosos, como produzir chinelas e sandálias para crianças e adolescentes ou fazer as fitas para serem usadas nos acabamentos em obras de adultos.
“Costumo a fazer sandália de bebê, chinela de crianças, colocar fita nas sandálias que o papá tem feito e também ajudo quando ele tem muito trabalho”, contou a pequena, que estuda a 5.ª classe num dos colégios próximo de casa.
Sem timidez, Augusta disse que se sente orgulhosa em auxiliar o pai nas suas tarefas e que quando crescer sonha em ser uma empresária para ajudar o negócio do seu papá a prosperar.
Uma arte que preserva o ambiente
Areciclagem de objectos para outros fins é uma iniciativa digna de aplausos, transformado em arte tem tornado o trabalho mais atractivo. Os pneus são obejctos resistentes, chega a levar quase um século para se decompor.
Por esta razão, muitos optam por queimá-lo para livrarem-se dele, uma acção que traz consequências drásticas para o ambiente, danificando gravemente a camada de ozono que protege a atmosfera dos raios solares e de outros gases nocivos.
Neste quesito, o acto de transformar pneus em obras de arte constitui uma acção consciente de preservação ambiental, pois, além de reaproveitar os pneus para acomodar as pessoas, reduz a possibilidade de alguém queimá-los para obtenção de fins lucrativos ou comerciais.
Perfil do artesão
João Florindo Catuta, mais conhecido por Rasta, é natural de Benguela, província de Benguela, nasceu a 24 de Setembro de 1977, no bairro da Graça, no Município de Benguela, província com o mesmo nome. Começou a dedicar-se à arte aos 25 anos de idade, por influência do seu tio, que também era artesão e se dedicava à produção de cestos, balaios e outros artigos artesanais.
Aos 28 anos de idade, viu na arte de transformar pneus a sua paixão e, com a ajuda de amigos, passou a desenvolver habilidades nesta área, que lhe permitiu se mudar para Luanda onde vive, há mais de 18 anos, com a sua esposa e filhos.
Através desta arte, João Florindo já teve a oportunidade de participar em várias feiras artesanais e festivais de arte em Luanda e noutros pontos do país, destacando-se a presença em algumas edições do Fenacult, festival de artes no Palácio de Ferro, FestSumbe, Feira Internacional de Benguela, FILDA, entre outros.