A luta para a recuperação dos haveres poupados pelo impacto das águas das chuvas é feita, todos os dias, pelos sinistrados dos bairros localizados à beira da vala de drenagem, à direita da rua Direita do Dande
Os moradores dos bairros Riceno, Kawanga, Kitonhi, Mifuma, Caboxa e Kingombe, no município do Dande, em Caxito, província do Bengo, desdobram-se a salvar mobílias, utensílios e electro-domésticos, roupas, calçados e materiais escolares, parcialmente poupados pelas inundações resultantes da chuva que se abateu sobre a capital da província, na Quinta-feira, 14, e Sexta-feira, 15.
Entre os haveres, foi possível divisar colchões, botijas de gás, fogão lençóis, cobertores, televisores, aparelhos de som, pratos, panelas e talheres, além de vestuário, livros e cadernos que os proprietários procuravam transladar para o lado da vala, menos afectado pelas enxurradas. Aliás, a reportagem de OPAÍS constatou, igualmente, parte de haveres de alguns familiares completamente estragados, como é o caso de bens alimentares, cadeiras, mesas e camas, sobre os quais, durante o desmoronamento, terão caído adobes e ferros, que compunham as paredes e o tecto das habitações mais atingidas pelas águas.
Com duas casas caídas, no bairro Kingombe, o velho Neto André Sebastião de 65 anos de idade, apela às autoridades do município a ajudar a população na aquisição de combustível para manter o funcionamento das electrobombas, através das quais se está a fazer a sucção das águas pluviais, desde Sexta-feira, 15. “Nós já perdemos muitos haveres com a queda das nossas residências.
Arcámos com essas despesas da gasolina, por quatro dias, já não temos mais dinheiro. Queremos que o Governo nos ajude, por- que, se não, é difícil ter as máquinas a funcionarem e recuperarmos as poucas coisas que estão no interior das casas. Neto André Sebastião, que considera a sua e a actual situação dos vizinhos como péssima, deseja que o Governo do Bengo se apresse a salvar os sinistrados da chuva, antes que se abata, no município do Dande, outra enxurrada que pode comprometer ainda mais a vida dos munícipes.
“Também queremos aqui assistência alimentar, porque desde que choveu, na Quinta e Sexta- feira da semana passadas, esta- mos entre a rua e a boa vontade de algumas pessoas”, ironizou o morador de Kingombe. O ancião e militar denunciou que a situação dos moradores não agravou só por causa da chuva, mas devido a um esgoto mal concebido por uma alegada equipa de chineses, sem capacidade de manter a corrente de água captada da zona urbana do Dande para uma bacia de retenção instalada no bairro Kingombe, de onde as águas podiam fluir para o rio. “Esse esgoto é que está a precipitar a água para as ruas dos bairros.
Isso quer dizer que, enquanto no bairro Mifuma e noutros da par- te de cima não acabar a água, aqui vai ser muito difícil termos sossego”, informou o idoso. Segundo ele, o esgoto que devia evitar enchentes é que está a causá-las. Por isso, propõe que se corrija ou se retire o ramal do esgoto que sai de Mifuma para o Kingombe, porque não funciona. Por seu turno, Maria da Conceição Júlio Paiva (Mulata) disse que a sua casa de quatro quartos desabou, sendo que ela e os filhos se encontram ao relento e totalmente dependente da ajuda de familiares e amigos, para passar as noites e ver os filhos a improvisarem algumas refeições.
A senhora não entende como os homens do Governo, até à data, não dizem, pelo menos, onde os familiares afectados do Kingombe serão realojados. “As crianças já não estão a estudar, porque não temos onde ficar”. Na zona da Açucareira não se preparou um centro para o realojamento. Muitos de nós estão a ir para lá, por ser uma das áreas menos afectada do município-sede. Mas aí cada família está a arrendar um sítio para ficar temporariamente”, revelou Maria Júlio Paiva, contrariando a informação segundo a qual a administração está a acomodar os sinistrados, nessa zona.
Reclamado tratamento desigual
António João Pereira da Silva, que diz ter nascido no bairro Kingombe, reprova o tratamento avantajado que os governantes do município do Dande estão a dedicar aos moradores da Mifuma, onde, segundo eles, deram duas electrobombas, diferente de uma, no seu subúrbio, assistência alimentar e procedem visitas de constatação com alguma regularidade, por aí viverem familiares de alguns dirigentes do município. O munícipe recordou que a condição de sinistrados em que se encontram, desde Sexta-feira, 15, é a mesma, o que, no seu entender, não devia deixar margem para soluções desproporcionais.
“Aliás, se a intenção for essa, o mais justo é a maior quantidade de ajuda vir para nós, porque, a água que não pára de sair dos esgotos não vai deixar em paz as casas que ainda estão de pé”, frisou António da Silva. Quem alinha neste diapasão são as senhoras Conceição Abel de 32 anos, Rosária Gabriel de 53 e Rosa Bernardo de 60, que alegam o facto de o Kingombe ser a área diagnosticada pelas próprias autoridades municipais como das mais carenciadas do corredor direito da rua direita do Dande. Elas manifestaram o seu descontentamento, por saberem que os vizinhos dos outros bairros receberam produtos alimentares para cobrir algumas necessidades pontuais. “Se tem um pouco, ou não dão para ninguém ou dão para todos, porque isso de atenderem uns e outros não, cria insatisfação, ainda mais nesse momento de aflição”, reclamaram as senhoras.
Três meses de chuva
Jandira da Silva Domingos, de 23 anos de idade, explicou que já chove com alguma preocupação, desde Janeiro deste ano. “Mas quando chovia, não chegava a este nível de consequências. Já a chuva da semana passada inundou todas as ruas e as águas começaram a entrar nas casas, tendo derrubado algumas”, contou Jandira Domingos, realçando que a casa da sua mãe ficou inundada, ao ponto de ter molhado todos os haveres e destruído alguns. Jandira informou que, além das electro-bombas cedidas pelos Serviços de Protecção Civil e Bombeiros do Dande, os moradores de Mifuma envidaram esforços para alugarem outra de um munícipe para reforçar o processo de sucção das águas.
Até Terça-feira, 19, dia desta reportagem, a mãe e alguns irmãos de Jandira ainda não tinham conseguido um pouso seguro, improvisavam acomodamento no bairro social. Entretanto, ela e algumas irmãs decidiram dedicar algum tempo na casa dos pais (no Mifuma), onde cresceram, no sentido de controlarem e removerem alguns haveres ainda aproveitados. “Perdemos o guarda-roupa, a cama, as bancas e a arca, que, por causa da água que atingiu a sua parte de baixo e do motor, ficou inoperante”, lamentou a jovem, que apela ao Governo a pôr cobro a essa situação, antes que aconteça outra tragédia. Um dos pormenores que Jandira achou por bem referir é o de que, contrariamente à tragédia de 25 de Dezembro de 2023 em que as enchentes só derrubaram casas de adobe, nessa, por causa da quantidade da água, até algumas residências construídas de blocos de cimento foram abaixo.
Adaptação difícil no 25 de Dezembro
O pessoal que, até então a administração já realojou no bairro 25 de Dezembro, na comuna das Mabubas, queixa-se de muitas dificuldades para se adaptar à nova realidade, já que, segundo alegam, quase tudo tem de ser adquirido nos bairros de origem e a dinheiro. Martina Cassule Carlos proveniente do bairro Kawango disse que lá já estiveram concentrados numa creche, de onde foram organizados, em grupos, para o novo sítio. Pelo que ficou a saber dos dirigentes municipais, a solução para ela e os vizinhos, termina mesmo no bairro onde estão reassentados, porque cada um vai herdar o espaço de terreno que lhe foi atribuído.
Para ela, a nova realidade vai obrigá-la a fazer uma mudança radical no seu e no ritmo de vida da sua família de casa. “Temos de comprar produtos alimentares onde saímos, se não quisermos comprar caro nas cantinas dos moradores das casas sociais do bairro 25 de Dezembro, que são os antigos desalojados de 2013”, declarou Martina Cassule. Apesar da distância e dos 500 kwanzas mensais que têm de pagar aos moradores antigos, Martina dá-se por contente por poder retirar desse centro habitacional água canalizada e potável.
Produção de carvão para sobrevivência
Helena Jacinto louva a oferta de tanques plásticos protagonizada, recentemente, por um grupo de deputados de um partido, mas la- menta o facto de os mesmos não estarem a ser atestados com água para os desalojados. “Eu acho que o mais difícil foi feito, só não entendo como é que a comissão que nos trouxe aqui não consegue tirar água da se- de do bairro 25 de Dezembro para pôr nos tanques”, deplorou Helena, alegando que a distância para a fonte do precioso líquido não é muita.
Quanto à adaptação ao novo habitat, preferiu falar da opção à produção de carvão, que já dominava, produto que passará a vender na localidade e fora da mesma para adquirir água, alimentação e suportar a formação dos filhos. Entre os contratempos, citou a proximidade com a mata, de onde se precipitam alguns répteis, como cobras e lagartos grandes, que chegam às cubatas montadas de paus e chapas de zinco, representando um perigo para os seus ocupantes.
Meio quilograma de arroz por família
Às populações reassentadas no bairro 25 de Dezembro preocupa a falta de transparência e justiça dos responsáveis para a distribuição que é feita no local por organizações civis e partidárias. Muitos realojados contaram que as últimas visitas deixaram produtos alimentares com uma quantidade considerável, mas os coordenadores indicados não foram prudentes na divisão, ao ponto de darem para cada família meio quilograma de arroz, uma lata de massa de tomate e um pouco de óleo.
“O feijão e as roupas usadas não nos foram distribuídos, porque a população, verificando que havia roubos, ficou chateada e invadiu os quites”, contaram algumas senhoras, que revelaram também a oferta de uma máquina moageira cujo paradeiro se desconhece. Por causa disso, a última organização que veio ao terreno oferecer comida não deixou os coordenadores locais distribuir os produtos, tendo-se responsabilizado eles mesmos pela referida divisão. A anciã Maria Francisco António, desalojada do bairro ribeirinho do Bula, está no local desde Janeiro. Ela lamenta a falta de apoio.
A única coisa que a conforta é a de que vai ser proprietária de um terreno localizado numa zona alta, que não terá muitos incómodos durante as as próximas enxurradas Mas a idosa não põe de lado a preocupação pela forte ventania que faz nessa área do bairro 25 de Dezembro, muito menos da proximidade de animais como cobras, lagartos, escorpiões e centopeias. Aos 60 anos de idade, todos vividos no bairro Bula, Maria António relatou que as inundação da sua residência e dos seus vizinhos foi causada pelo transbordo do rio Dande, tal como se deu com alguns moradores de Caboxa que também foram reassentados aí. Para não condicionar o ano lectivo de netos e sobrinhos, ela preferiu deixá-las na comuna- sede com alguns familiares, amigos e conhecidos, que considera serem de alta confiança.
Instituições do Estado não poupadas por chuva
Curiosamente, algumas instituições do Estado, como são os casos dos Bombeiros e da Administração Municipal do Dande não foram poupadas pelas águas das chuvas, ao ponto de terem parte dos seus quintais completamente intransitáveis, o que vai exigindo um esforço virado para dentro, no sentido de se mudar o quadro. O administrador-adjunto do município do Dande, Ambrósio Ma- mata, que, por sinal, calçava botas específicas para evitar pisar na água, reconheceu que, quando chove com maior intensidade, é difícil haver em Caxito uma zona não afectada. As águas da chuva inviabilizaram também o sentido ascendente Kitonhi-Sassa, obrigando a que, actualmente, o trânsito automóvel seja feito de forma alternada.
Questionado sobre tal, Ambrósio Mamata explicou que a situação deve-se a certas construções que foram feitas nessas imediações, que obstruíram um pequeno canal que transportava as águas da chuva para a vala de drenagem. O responsável deixou expresso que o Governo vai retirar também os cidadãos que construíram nas linhas de água.
Quanto ao processo de reassentamento da população afectada pelas chuvas, o administrador-adjunto referiu que algumas empresas, igrejas e organizações colaboraram com o Governo local, cedendo espaços para reassentar temporariamente as vítimas das enxurradas, o que, conjugado com os locais seleccionados pelos dirigentes da província, está a facilitar o processo de realojamento, desde o ano passado. Ambrósio Mamata esclareceu que a administração achou uma solução oportuna na distribuição de seis chapas de zinco para cada sinistrado utilizar na composição do tecto da sua cubata, por causa da carência, usando as da casa antiga para sustentar as partes laterais.
Informou, igualmente, que os lotes estão atribuídos para, depois, se construírem residências definitivas, já que a zona do 25 de Dezembro oferece segurança, no periodo chuvoso. Relativamente aos problemas de transportes públicos, instituições de saúde e de ensino, Ambrósio Mamata garantiu que a administração está a trabalhar para que sejam reforçados os serviços que já existem (transporte) e haja outros (saúde e educação), no local.
O administrador-adjunto do município do Dande assegurou, para os próximos dias, a distribuição de água, por camiões-cisternas da administração, aos tanques plásticos, recentemente instalados no centro de realojamento do bairro 25 de Dezembro, na comuna das Mabubas. Considerando a chuva como obra da natureza, Ambrósio Mamata pediu à população afectada para ter calma, paciência, fé e esperança, porque, segundo ele, a administração está a fazer tudo que pode, para ver a situação actual revertida a favor das vítimas das chuvas e da enchente do rio Dande.