Autor do memorável sucesso “Pôr-do-sol”, que durante vários anos serviu de separador dos noticiários em Angola, Manuel Bernardo Sangue “Sanguito” é uma das principais referências do saxofone angolano. Em entrevista ao jornal OPAÍS, o instrumentista fala do cantinho “Refúgio”, projecto artístico-cultural que visa “Repescar Histórias”, congregando especialmente músicos aposentados e amigos
O ano 2024 está a começar com uma certa reticência quanto a investimentos. Como está em termos de projectos além da gravação do novo disco?
Na verdade, não sou uma das pessoas muito ligadas ao que pensar o daqui a dois, três meses. Eu sou mais “mediático”. Quer dizer, eu vivo o dia-dia.
Tenho um projecto, penso abrir o meu restaurante, que vai se chamar Refúgio. Por quê desta denominação ao espaço?
Refúgio porque a palavra em si mesmo já diz o que quer dizer Refúgio… É o meu cantinho, o espaço para aqueles que se querem agregar também a esta família do Refúgio. Vai ser um cantinho para amigos, em especial aqueles que basicamente já estão aposentados.
Eu vejo muita malta, contemporâneos, muitos deles, com 70 e poucos anos, já não têm muito o que fazer, ficam sempre em casa. Então, estou a tentar fazer o Refúgio, precisamente para este fim. Receber as pessoas que já estão aposentadas para não morrerem lentamente. O projecto consistirá no repescar de histórias.
De que forma irá repescar essas Histórias?
No fundo é um refúgio cultural, é mais para falarmos de cultura. Vamos falar de tudo um pouco. Vamos falar, por exemplo, dos escritores, dos músicos, dos artistas em geral.
Também vou arranjar um cantinho para expor alguns discos e livros aos Domingos, obras de algumas pessoas, para que as pessoas que cá vierem poderem beber um pouco desses autores, comprando as suas criações.
É uma simbiose que eu quero fazer. Na verdade, não é um negócio que eu vou fazer, mas é bem sabido que onde há gastos tem que haver retorno.
Em que pé ficou o anterior projecto que congregaria artistas deficientes?
Na verdade, este é um projecto que ainda está na forja, porque atendendo às condições do país, muita coisa está a descair, não há condições. Mas, isso estará incluído no projecto que vem. É uma simbiose que vai estar com todos os condimentos.
Como é que a juventude se tem evidenciado quanto aos seus projectos artísticos?
Por exemplo, eu tenho muita juventude que aqui vem em minha casa e pretende ouvir muita coisa. Então, nós vamos criar um ambiente artístico, não propriamente de palestra, mas vamos falar de música.
Há muita juventude que não sabe o que é o semba, porque muitos de nós não passamos. Digo nós, os mais velhos, porque eu também bebi deles.
Eles são as pessoas mais indicadas e ainda temos alguns aí vivos. Vou reuni-los para a juventude saber o que é o semba. O objectivo vai ser este.
Qual é o ponto de situação do Projecto Quintal da Cultura?
O Quintal da Cultura vai ser o mesmo espaço que é o Refúgio. Deixa de ser Quintal da Cultura e passa a Refúgio.
Na verdade, eu queria designar Quintal da Cultura, mas depois pensei que esta denominação já é uma responsabilidade muito ampla. Preferi pôr Refúgio porque é mais meu.
Não é tão extenso como Quintal da Cultura. É muita responsabilidade. Já agora, qual é a percepção que tem do país em termos de executantes de metais?
Tenho estado a dar réplicas, algumas “aulas” a alguns jovens que têm estado a aparecer a tocar saxofone, dando conselhos, e outros que tocam violino.
Pelo menos eu sinto-me feliz, porquê?
Diria que tanto eu como o Nanutu somos os persistentes da música instrumental em Angola. Se nós na altura desistíssemos, talvez hoje não teríamos também a juventude a interessar-se e isso satisfazme. Temos muitos seguidores, dizem. Eles são meus seguidores e estão sempre atentos ao nível de saxofone.
O projecto veio para ficar?
Sim, vai ter que continuar. Enquanto estivermos vivos não vai parar. Só pára quando “bazarmos”. Na verdade, não são alunos, não os assumo como alunos. São pessoas interessadas, aproximadamente 30.
Entre eles, violinistas que me têm pedido conselhos. Peço-lhes que prestem mais atenção na afinação que é a parte mais importante. Que sejam humildes, porque fazer música não é fácil, principalmente em Angola.
Tal como eu, estão muito mais músicos. Comecei muito cedo, comecei pouco depois dos anos 70, mas, na verdade, foi em 67 que dei os primeiros passos na guitarra, depois fui a clarinete ou na requinta e de lá para cá o piano. Só que engrenei mais no Sax. Aconselho-os sempre a tomarem atenção.
Quantos instrumentos toca?
Tocar mesmo, eu só me responsabilizo pelos Saxes. Os outros são mais para as minhas composições. Guitarra, a dikanza foi o Zé Fininho quem me ensinou, o Bonga também deu-me umas aulas de reco-reco, mas é a dikanza e aprendi uns toquezitos com o Candinho já falecido e Joãozinho, nas Congas. Mas eu já não me assumo como instrumentista nesta área. Agora, como instrumentista na área do Sax, sim.
Como foi para si em termos artísticos e não só o recém-terminado ano 2023?
O ano 2023 foi agradável, houve muito trabalho. Foi um ano que não deixou a desejar aos outros. É sabido que cada ano que passa, mais dificuldades surgem e com essas nós não podemos chorar pelo leite derramado, como se diz, temos que seguir sempre em frente. Pela luta de 2023, foi boa, em relação a 2022, 2021.
Sabe que houve a Covid, foi o momento mais complicado para as nossas vidas e foi um ano que, na verdade, tive algumas boas surpresas, recebendo mais uns netinhos…, enfim. Ao nível profissional foi bom e ao nível de saúde também. Houve alguns sobressaltos, enfim, tudo, foi bom.
Quanto ao lado artístico, o que conseguiu fazer neste ano?
Estou a gravar desde o princípio do ano passado o meu novo CD. Tenho estado a trabalhar. Começo, por exemplo, às 19 horas e vou para a cama por volta das 07 horas.
Tenho também um amigo com quem tenho estado a trabalhar, o Halton Ventura. Estou a trabalhar a meio gás com três músicos, o trompetista Mário Pemba, que também tem três discos no mercado e o Halton Ventura, produtor do disco.
Nós temos estado a fazer algum estudo de modo a criar uma forma de estar no Semba, porque nós estamos de passagem. Se for o caso de ter que estar a fazer covers, nós não deixamos o legado.
O legado é aquilo que nós temos que deixar, aquilo que nós fizemos. É o caso de músicas inéditas, próprias e tem sido essa a minha luta. Estamos a ver se este ano consigo tirar o disco, vamos ver como é que vão correr as coisas. Sabes que neste ano as coisas não estão nada boas, então vamos ver. Se não conseguir vai ficar para 2025.
Qual será o título do disco e quantas faixas terá?
Ainda não pensei no título, tem vários, estou a pensar fazer um disco com 16 faixas. Neste momento, tenho 25 músicas gravadas, maioritariamente inéditas, isto é, 90 % originas e os 10% serão covers.
Este é o projecto que eu tenho. Como é constituída a ficha técnica do novo disco?
Por motivos de finanças, vou ter poucos músicos. Mas, neste momento, estou a trabalhar com Michael Pemba na produção, Carlitos Chiemba também já pôs baixo em alguns temas e eu estou a colocar também guitarras, teclados e baixo.
Agora também estou a colocar congas e reco-reco, isso para suprimir custos. Mas, em princípio também, o jovem Texas, guitarrista que faz questão de fazer parte do meu projecto, João Sabalo, que também foi trompetista do Semba Tropical.
Estou a terminar e também poderei integrar o Bichinho que, em princípio, vai pôr congas num ou dois temas para o incentivar. Foi aluno do Joãozinho.
A quem cabe a captação, mistura e masterização do trabalho?
A captação cabe ao Mundo Som. A mistura e masterização à Cervantes em Portugal. Estou a fazer os possíveis e tudo vai depender da disponibilidade financeira. Tão logo a tenha avançarei. Faltam apenas alguns condimentos. Já tenho grande parte das músicas feitas, só faltam alguns condimentos.
Já tem alguma música deste disco em promoção?
Ainda não, vou tentar fazê-lo talvez na próxima semana. Dar um cheirinho nas redes sociais. Como estão agendados os concertos para este ano? Não podemos falar muito ainda, porque o ano está a começar.
Tenho agendados 10 concertos. Estas dez actividades são casamentos, aniversários de empresas e pessoas singulares.
O que mais lhe terá marcado ao longo da sua trajectória artística?
Muita coisa… é muito complicado. São muitos, estamos a falar de 1976 para cá. Foi muita coisa. Mas, tenho o exemplo de quando, em 1983, fui repescado.
Eu tinha entrado num percurso mais antigo, estava a fazer música e depois fui para as FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), nos anos 77, mais ou menos. Quando da independência, Agostinho Neto tinha decretado uma lei que dizia que os órfãos de guerra, que é o meu caso, e os filhos únicos, estariam isentos da vida militar. Então, nesta altura, beneficieime disso.
O que aconteceu depois?
Só que depois voltaram a me chamar em 1980 e 1981, isto, na vigência do M’Beto Traça. Eu explanei o que era, fazendo menção àquele decreto e ele não quis saber. Vou para a Marinha de Guerra de Angola. Na altura, o Roque, que eu conhecia, estava vivo.
Ele insistindo, voltou-me a tirar da Marinha e manda-me para o Cuando Cubango, onde permaneci um ano. Já estamos em 1982, 83. Depois saio daí e vou para a 7ª Região Militar. Este percurso que eu lhe estou a contar foi o que mais me marcou, porque interrompi parte da minha vida como músico.
Foi um dos piores momentos que eu tive porque fui interrompido, sem poder continuar.
Estes momentos não se resumem somente à vida militar, mas também a artística?
Com certeza. Depois de ter vindo para cá, passado uns anos, aí em 1990, fui convidado para ir com a Banda Semb’África a Holanda. Lá ficamos seis meses, foi também uma das piores recordações. Não tínhamos dinhero, fazíamos uma refeição básica por dia, perdeu-se muito tempo e foi uma das piores experiências.
Outra que eu tive na Guiné Bissau com o Juka, em 1997. Fomos para fazer 15 dias e acabamos por ficar mais de 30 dias. Também é outra situação que acabamos por sair daí sem nada no bolso. Era uma vida muito, muito apertada.
Naquela altura tive um grande apoio do Tabanka Jazz que vivia lá e, por acaso, apoiaram-me bastante. Agradeço a eles o resto da minha vida. Sem eles, nós aí estaríamos mesmo mal, mal.
Foi graças ao Tabanka que nós conseguimos sobreviver a alguns problemas que lá houveram. Depois houve uma intentona de golpe de Estado na altura. Nós estávamos lá.
O Nino Vieira pediu à Embaixada Portuguesa para que nos fossem buscar, meteram-nos no avião e volto a Lisboa. Estes foram alguns dos problemas que tive ao longo da minha vida como músico.
Enquanto militar, como fazia soar a sua música no quartel, uma vez que o país estava a braços com uma guerra fratricida?
Enquanto militar, tinha cubanos. Dizer que eu fiz o Curso Médio de Enfermagem e naquela altura não queria fazer-me evidenciar para que não me colocassem nas linhas da frente.
Estava a fugir um pouco, mas acabei por ficar. Conheci uns cubanos, entre eles o General René, o comandante que acabou por me puxar para o lado deles.
Havia lá guitarras, maracas e transportavam-nas. Nessa altura que eu disse que também dava uns toques de guitarra e começamos a interagir tocando.
Eu passei-lhes noções de como se toca o Semba. Basicamente, o tempo eram mais fogueiras e ficávamos à volta a tocar guitarra, cantando, sobretudo, nos tempos livres, porque os outros eram muito complicados.
Quando é que foram feitas as suas primeiras composições?
As primeiras músicas comecei a fazer em 1979, 80 e parte delas não foram gravadas. Gravo depois uma em 1983, que foi intitulada “Pôr-do-sol”, era o separador dos noticiários.
Depois sou dispensado das FAPLA e Semba Tropical, foi com este conjunto que eu gravei a referida música. Gravei os outros temas em 1997, este foi o meu primeiro álbum “Lenta Vida”.