Aguisa de introdução, se observarmos os últimos eventos que marcaram quase todo o século XX e os que se debatem actualmente no cenário internacional, consideraríamos consensual a ideia de que a procura pela maximização do poder e influência por parte dos Estados sempre teve como objectivo impedir a subjugação perante um poder homólogo.
Como sempre se verificou, as unidades moldam a estrutura do Sistema Internacional, criam e recriam-na para que esta sirva os seus interesses, entretanto, só as nações providas de loucuras controladas conseguem dominar o sistema.
As loucuras são produzidas pelas singularidades que detêm e neste ponto, em particular, as loucuras geram disputas pelo protagonismo internacional.
Hoje ainda que se custe admitir, o mundo ainda encontrasse fraccionada, cujos pretagonistas são bastante conhecidos pelo seu repertório, referimo-nos a duas grandes Nações insanamente singulares que dominaram toda a metade do século XX, pelas suas disputas durante a Guerra-Fria e revolucionaram o debate sobre a política internacional.
Entretanto, se antes debateram por questões ideológicas, hoje as motivações são outras. Abordagem compartilhada pela maioria dos especialistas em Relações Internacionais, após o fim da guerra fria em 1989, sugere que se deu naquele período o fim da contenda ideológica entre o bloco leste, que tinha a Rússia como Estado-Núcleo, e o bloco Ocidental com os EUA na vanguarda, ou seja, deu-se o “fim da história”, como sugeriu Francis Fukuyama, proclamando os EUA única superpotência, directores da Nova Ordem Mundial e automaticamente o prestígio de “nação mais poderosa do mundo,” deixando a Rússia na posição de perdedora e fracassada.
Entretanto, com este cenário criado, por que é que a Rússia ainda preocupa? Poderão existir várias razões que justifiquem a contenda, todavia, em nossa análise, existem duas razões pelas quais o Ocidente liderado pelos EUA embirra-se com a Rússia.
A primeira é de compleições geopolíticas e a segunda é de compleição civilizacional. Do ponto de vista geopolítico, começaremos por recitar o célebre advérbio de [ CITATION MAC43 \l 2070 ]: «Quem dominar a Europa Oriental comandará o Heartland, quem dominar o Heartland comandará a Ilha Mundial, quem dominar a Ilha Mundial comandará o Mundo»[ CITATION MAC43 \p 595-605 \l 2070 ].
A abordagem geopolítica do problema EUA/Ocidente vs Rússia fundamenta-se profundamente no instinto de sobrevivência natural e na incerteza ou imprevisibilidade da combinação dos factores geopolíticos que possam fazer emergir uma nação tão poderosa que subjugará todas as outras.
Nesta vertente, a Rússia possui atributos geográficos que se estiverem devidamente alinhados e projectados por uma organização politicamente forte lhe garantirá o controlo do mundo.
Para compreendermos melhor, recorremos a [ CITATION MAC43 \l 2070 ] que considera a Rússia de “eixo geográfico da História”, por possuir um território transcontinental cuja configuração geográfica lhe dá o atributo de Heartland, ou seja, o coração da terra, centro terrestre ou mesmo de área pivô, dentro de uma abordagem euro-asiática.
Nesta linhagem [ CITATION KUL14 \l 2070 ], salienta que a Escola euroasiana, que tem com principal ideólogo Aleksandr Dugin, fundador da teoria geopolítica Neo-euroasianismo, parte do princípio da teoria terrestre de Mackinder, para afirmar que a Rússia é o centro da Eurásia e assim, por conta da sua posição geográfica e seus recursos naturais, conseguiria restabelecer seu poder e segurança, tornando-se novamente uma potência global.
Historicamente, a Rússia sempre teve pretensões hegemónicas e por este motivo sempre foi alvo de incursões político-militares de Nações que tentaram invadir e dominar o seu vasto território e estender sua influência pela Europa, Ásia e pelo mundo, tentaram os mongois, os franceses e os alemães, entre outros.
Os maiores receios do Ocidente e principalmente dos EUA são que a Rússia se fortaleça o suficiente para restabelecer seus satélites e inverta o avanço ocidental para o Leste europeu, ameaçando a segurança dos seus principais parceiros ocidentais com os quais possui laços históricos e civilizacionais.
Por outro lado, após a questão “Guerra-Fria”, o espólio territorial não impediu que a Rússia continuasse com os seus estratégicos arsenais nucleares, elemento que serviu e ainda serve de principal carta para a Rússia afirmar-se como potencia militar e exercer deste modo maior influência nos estados sob sua esfera e discutir o protagonismo regional e internacional com o Ocidente.
Nesta ordem de ideia, temem porquanto, que nesta investida forneça esta tecnologia a Estados médios anti-ocidente para unirem forças, ou que trabalhe fortemente no desenvolvimento de armas com capacidade de destruição mais elevadas do que as armas nucleares dos EUA/Ocidente, de modo a assumir o directoria mundial.
Estes factores por si só constituem uma ameaça aos interesses dos EUA/Ocidente, por considerarem que uma Rússia forte colocaria em causa a paz e a segurança internacional, alterando de certo modo o status quo vigente.
Entretanto, recorrendo-se da história, os EUA perceberam desde muito cedo que não poderiam comandar o Heartland eurasiático e como alternativa, suas políticas externas gravitam em torno de medidas para enfraquecer e conter o poder russo, seguindo deste modo os preceitos da “Doutrina Cheney-Wolfowitz”, que de acordo com [ CITATION FRE11 \l 2070 ], tem como objectivo prevenir a emergência de um novo rival, dito de outro modo a estratégia dos EUA segundo esta doutrina centrar-se em evitar a emergência de qualquer potencial competidor global futuro.
Apesar desta doutrina ter sido dirigida, a China que emergia na viragem século e para todos os Estados pivôs regionais emergentes e pelo facto de que a Rússia nesta altura estava politica e economicamente arruinada, a doutrina tem um fundamento intemporal e voltou a ser debatida com o empoderamento de Vladimir Putin na Rússia através da sua Democracia Soberana que lhe garante o efectivo controlo de todo aparelho estatal Por outro lado, na vertente civilizacional, enquadrado nos últimos eventos que se sucederam ao fim do bloco soviético [ CITATION HUN09 \l 2070 ], salienta que neste novo mundo a política local é a da etnicidade e a política global é a das civilizações.
A rivalidade das superpotências foi substituída pelo choque das civilizações. Salienta ainda que neste novo mundo os conflitos mais generalizados, mais importantes e mais perigosos não ocorrerão entre classes sociais, entre ricos e pobres ou outros grupos economicamente definidos, mas entre povos pertencentes a entidades culturais diferentes.
[ CITATION HUN09 \l 2070 ], sugere que a configuração do mundo após 1990 trouxe à tona o debate sobre a nova forma de conflitos enraizados por motivações civilizacionais, descrevendo deste modo o choque entre as principais civilizações mundiais através dos seus Estados-núcleos.
No caso entre o Ocidente e a Rússia, por exemplo, possuem fronteiras civilizacionais muito próximas, o que agrava ainda mais as hostilidades derivadas de uma luta natural de conservação de seus hábitos, costumes, língua e religião.
Para seremos precisos, segundo [ CITATION HUN09 \l 2070 ], a fronteira civilizacional entre o Ocidente e a ortodoxia passa desde há séculos em pleno coração da Ucrânia.
No passado, durante alguns períodos, a Ucrânia ocidental pertenceu à Polónia, à Lituánia e ao Império Austro-Húngaro.
Uma grande parte da sua população esteve ligada à Igreja uniata que pratica ritos ortodoxos, mas reconhece a autoridade do Papa e falam ucraniano. Em contrapartida, os habitantes da Ucrânia oriental são esmagadoramente ortodoxos e em grande parte falam russo.
Esta disputa está na base do conflito existente entre a Rússia e a Ucrânia, iniciada no dia 24 de fevereiro de 2022, que aparentava ser de curta duração, mas, no entanto, vai se prolongando cada vez mais, reforçando mais uma vez que as apirações geopolíticas e civilizacionais tendem a gerar mais caos do que as ideologias.
Em suma, estes dois polos estratratégicos estão condenados a uma relação tensa, enquanto o poder de um ser tido como ameaça a existência do outro, por tudo aquilo que pretendem alcançar no cenário internacional e pelo legado que pretendem deixar para suas gerações vindouras.
O cálculo racional dos pressupostos geopolíticos e civilizacionais feito pelos EUA/Ocidente e pela Rússia é que determinarão o status quo da cena internacional e nesta investida toda a comunidade internacional deverá sabiamente escolher que posição seguir, pois que quando fricções entre gigantes ocorrem, todo o resto sofre, as instituições vocacionadas para regular os apetites hegemónicos falem, desestruturando um todo sistema que devia ser protegido sobre os pilares da paz e do progresso da humanidade.
Por: WILSON ADELINO FILIPE*
*Especialista em Relações Internacionais, palestrante, investigador e analista de Inteligência Criminal