Eram três dias ininterruptos de acontecimentos culturais, gastronómicos e tantos outros, realizados durante a Festa da Ilha de Luanda, na segunda semana do mês de Novembro. Tendo no passado movimentado turistas de vários pontos do país e do estrangeiro, o que impactava no fomento do turismo cultural e da restauração na cidade capital, Luanda
O evento já foi considerado um dos cartões postais ilustrados da cultura luandense, desde os primórdios, para o nosso país, e inscrevia-se no conjunto das festas populares e tradicionais.
Esta festividade, cujo impacto transcendeu as nossas fronteiras, mobilizava todos os luandenses e não só. Do ponto de vista cultural, a Festa da Ilha caracteriza-se de uma utilidade que sempre transcendeu o motivo pelo qual a qualifica, tendo como objectivo venerar uma divindade marítima, a Kyanda, para que esta proporcione tranquilidade, pesca abundante no mar e evite calemas.
Devido ao seu cunho cultural, o festejo chegou a inspirar grandes figuras ligadas à música, às letras, às artes plásticas, ao carnaval e de tantas outras manifestações artísticas.
A abordagem genérica da tradicional Festa da Ilha levou-nos a constatar vários questionamentos sobre a organização, que muito tem preocupado os axiluandas, sobre o fraco impacto que o evento tem tido nos últimos anos, assim como o incumprimento de vários rituais.
Este grande evento, com tradição milenar, pelo que constatamos, começou a perder o seu impacto na década de 90.
A partir de então, muitos ilhéus começaram a alienar as suas residências e parcelas de terrenos a comerciantes de vários ramos e imobiliárias que, nesses espaços, edificarem prédios para vários fins.
A mudança intensa provocou um movimento migratório dos ilhéus, que alguns investigadores caracterizaram como a “Diáspora Axiluanda”, cujo processo, em termos culturais, é considerado o início de desterritorialização da Ilha.
Já há décadas que não se realiza a cerimónia do Kakulu, um ritual através do qual sobretudo as mais-velhas da Ilha se trajavam de garridos panos vermelhos e ofereciam comidas e bebidas à divindade marinha, a Kyanda, para que ela fosse benigna no encher das redes de pesca de seus maridos, os pescadores.
Colocava-se uma toalha branca rendada, com a maré baixa e ao cair da noite, em que se colocavam passas, figos, vinho abafado e demais quitutes que pudessem agradar ao espírito aquático. Era ainda feito o xinguilamento.
Na manhã seguinte, se a divindade se tivesse sentido agradada, nada seria encontrado na praia. Para melhor compreendermos os motivos que estão na base do enorme fracasso deste grandioso evento, decidimos ir ao encontro de ilustres figuras ligadas às artes e outras, que outrora estiveram directa ou indirectamente envolvidas na realização daquela que foi uma das maiores festividades ao nível da capital do país.
Abordamos alguns moradores daquela pitoresca ilha. A falta de apoio das autoridades administrativas, as iniciativas da comunidade, a ausência de rituais à Sereia, a desactivação da autoridade tradicional na circunscrição, a não realização da procissão, entre outros aspectos, são apontados como um dos factores que têm contribuído para o declínio da Festa da Ilha de Luanda.
Começamos com Manuel Rafael, um jovem pescador de 37 anos, residente na Ilha do Cabo.
Questionado quanto à percepção que tem hoje sobre a realização da tradicional Festa da Ilha, referiu que esta regista hoje um fracasso absoluto e já não tem o impacto que teve anteriormente.
O jovem realçou que, na maior parte dos casos, quando o evento está a decorrer, poucos são os munícipes que se apercebem devido à sua fraca divulgação.
Rafael, que terá herdado do pai a arte de pescar aos 19 anos, lamentou o facto de este festejo ter perdido o protagonismo que teve nos últimos anos, e desafia os empresários, as autoridades administrativas e as diferentes associações a redobrarem esforços para a sua revitalização.
“Faço um apelo às nossas autoridades administrativas, os empresários e outros, que, na década de 80 e 90, movimentaram a Festa da Ilha, a não se esquecerem daquele que foi um dos grandes eventos culturais da cidade de Luanda.
Apoiem-nos, por favor”. Questionado quanto ao seu dia-a-dia no alto mar, Rafael referiu que não têm sido tão bons, uma vez que a ausência de rituais ligados à Sereia, que não se regista há vários anos, ao contrário do que fazia anteriormente, tem contribuído para os baixos níveis de captura de pescado.
O jovem sublinha que, caso a sociedade prestasse maior atenção à Festa da Ilha, cumprindo as suas regras para a qual foi idealizada, divulgando-a, à semelhança de outras actividades que se realizam com regularidade um pouco por toda a província de Luanda, “estaríamos a dar relevância e valor a um evento que se tornou uma referência no conjunto de outras festividades na terra da Kyanda”.
Ausência de autoridades tradicionais contribui para o ‘fracasso’
Por sua vez, o vice-presidente da Associação dos Naturais e Amigos da Ilha (ANAZANGA), João de Sousa, questionado quanto ao actual modelo de realização da Festa da Ilha, devido à fraca divulgação, salientou que um dos motivos tem a ver com a ausência de uma autoridade tradicional na comunidade, a falta de patrocinadores e uma organização eficiente que envolva diferentes actores.
Admitiu que, apesar da sua fraca promoção, é extensivo ao público e é comemorado anualmente, mas não na dimensão a que os munícipes se habituaram nas décadas de 80 e 90, por falta de recursos.
O responsável garantiu que a associação está a trabalhar num memorando de modo a revitalizar o evento, mas não no formato anterior, para devolver a alegria dos citadinos.
“Estamos expectantes quanto ao desfecho do memorando e, tão logo for certificado, avançaremos. Tudo está a ser feito para que se tenha, nos próximos tempos, uma festa mais extrovertida ao mais alto nível”, disse João de Sousa.
Festa a três pancadas
o presidente do grupo carnavalesco União Mundo da Ilha, António Custódio, indagado quanto à percepção que tem actualmente da Festa da Ilha, adiantou que o evento não se faz sentir por falta de incentivos das autoridades administrativas para que os munícipes da ilha possam preparar uma boa festa.
O responsável sublinhou que, enquanto não for solucionada esta situação e do novo regente tradicional para aquela circunscrição, nada ficará resolvido. “Posso dizer que actualmente não temos Festa da Ilha.
Este ano fez-se uma, ‘a três pancadas’, para aldrabar o povo. Uma festa de grande dimensão como é a Festa da Ilha tem que ser muito bem pensada e organizada da melhor forma, para que seja amplamente participativa e não uma coisa insignificante ‘a três pancadas’, conforme aconteceu. Foi uma autêntica brincadeira”, desabafou António Custódio.
O responsável recordou que, no passado, ao realizar a Festa da Ilha, se conseguia ocupar todo o perímetro com barracas e actividades culturais. Dava-se mais destaque aos artistas da ilha e não só, o que não se faz actualmente.
“Hoje é tudo feito ‘a três pancadas’, só para não passar a data em branco. Nós membros da ilha não somos subvencionados”.
Custódio referiu que gostaria de ver a ilha muito bem organizada, onde administração trabalhasse com os munícipes para tentar ver o que é melhor para a comuna, visto que o que fazem não é o mais certo.
“Por não termos governantes com uma certa inclinação para o lado cultural, acaba-se por matar esta festividade e Kakulu, o ritual à Sereia. Não temos nenhum soba na ilha, não temos ninguém que consiga intervir diante dos dirigentes.
É necessário fazer este ritual”. António Custódio defendeu, igualmente, a necessidade de as autoridades administrativas reunirem-se com os munícipes para juntos traçarem planos e coordenadas para festa, e, caso tal não aconteça, vamos assistir cada vez mais à decadência desta festividade.
Socorrendo-se do tempo, António Custódio referiu que as festividades que mais movimentaram a Ilha de Luanda foram as últimas de 1980 até 90, uma vez que se sentia o movimento do evento em todo o perímetro da ilha e não só, envolvendo grande parte do pessoal da circunscrição.
Festa da Ilha deve ser preservada
E nquanto isso, o anfitrião e escritor Fragata de Morais, questionado quanto à percepção que tem sobre o tradicional evento, advogou a necessidade de se preservar, no mínimo que fosse, a tradicional Festa da Ilha.
Referiu que nos últimos anos esta festa já apresentava sinais de erosão natural, com a saída massiva dos naturais da Ilha para o Sambizanga (daí o nome, Samba ni Zanga) e outros pontos de Luanda, e com a “colonização” de outras gentes de toda Angola, especialmente os Ovimbundu.
No entender do escriba, foi um processo natural que teve como consequência imediata a aculturação do pouco que sobrava das tradições originais de Luanda.
Já no que aos rituais à Sereia se refere, recordou que estas cerimónias eram levadas a cabo por vários motivos: evitar acidentes no alto mar, calemas, oferecendo comida e bebida à divindade marinha, a Kyanda, para que fosse benigna no encher das redes de pesca dos pescadores.
Segundo o escritor, ainda hoje, quando há calemas, a população ilhoa observa que o facto se deve em grande medida ao incumprimento da tradição.
Por seu turno, o também escritor John Bella, convidado a dar o seu ponto de vista sobre o evento nestes últimos anos, ressaltou a decadência desta festividade por não haver uma defesa das autoridades pelos nossos valores culturais.
“Assistimos, sem nada fazermos, à destruição de uma cultura milenar, tanto quanto já vimos o fim da tribo axilwanda”, desabafou o escriba.
Já no que à intervenção diz respeito, para a sua revitalização, preservação e legado, John Bella referiu que, caso haja ainda tempo para salvar alguma coisa, esta incidiria no investimento imediato do homem.
Anciã axiluanda preocupada com a banalização da Festa e seus rituais
Quem se manifestou preocupada pela forma como o evento tem sido banalizado ultimamente é a anciã Beatriz Domingos António, de 79 anos.
A antiga varina do grupo carnavalesco União Mundo da Ilha e integrante do colectivo “mamãs ligadas aos rituais à Kyanda”, sobretudo, o Kakulu, afirmou que a Festa da Ilha está a perder a tradição e o impacto que teve anteriormente, devido ao incumprimento das normas de que se rege.
A anciã referiu que o evento realizado actualmente não reflecte a defesa de um património que desde então foi valorizado e preservado, e muito menos obedece às suas normas.
Insatisfeita, adiantou que não pode ser comparado ao anterior, pese embora ocorra em contextos diferentes. Um factor importante que também preocupa a anciã prendese com a ausência das autoridades administrativas nas acções de incentivo aos preparativos para a referida festa que, segundo a interlocutora, têm constituído um grande obstáculo na sua concretização.
Deste modo, desafia as autoridades administrativas a realizarem encontros de auscultação e concertação com a comunidade ilhoa e não só, para salvar o evento que, pela fraca atenção que lhe é dada, entrou em decadência total.
“O que nós assistimos hoje, em relação à Festa da Ilha, é muito triste e corremos o risco de entrar em colapso, ao perder uma das maiores atracções turísticas de Luanda, que pela força e o grande empenho dos seus organizadores chegou a constar no calendário dos maiores eventos do mundo”, sustentou a anciã.
Falta de dinamismo
Beatriz António lamentou ainda o facto de não haver, por parte das autoridades, nenhum dinamismo a quem o dever cabe, na promoção e valorização do evento.
Preocupada com a situação, contestou a forma desenfreada como a festa tem sido comemorada actualmente, o que, no seu entender, é uma autêntica falta de respeito aos princípios de que rege, sobretudo, aos aspectos tradicionais.
A anciã recordou que, muito antes da independência do nosso país, e depois desta, a Festa da Ilha sempre cumpriu o seu curso normal e obedeceu a todas as regras que se impunham para a sua realização, especialmente os rituais, em particular, o Culto à Sereia, a Divindade do Mar, e à procissão, incluindo a religiosa.
A antiga varina do União Mundo da Ilha, recorda que, pela especificidade do evento, o conclave incluía nas suas concertações associações, autoridades tradicionais, técnicos do Ministério da Cultura, patrocinadores, entre outras individualidades, para tornar a festa mais inclusiva e participativa, e tudo, segundo a interlocutora, corria sem sobressaltos.
“Hoje, lamentavelmente, sob o olhar atento, impávido e sereno das autoridades administrativas, vemos o maior evento da Ilha de Luanda a cair no esquecimento. Estamos a perder o conceito de tudo.
É muito grave”, desabafou a anciã. Beatriz António recordou que anteriormente a Festa da Ilha era antecedida de um ritual à Sereia, o tradicional Kakulu, que consistia na oferenda de alimento a esta divindade.
Para o cumprimento deste desiderato, de acordo com a interlocutora, as entidades envolvidas na cerimónia tinham que se acampar durante duas semanas à beira do mar, preparando tudo para a reverência devida.
Um outro aspecto importante, realçado pela anciã e que também tem contribuído para a ausência do Kakuku, nas chamadas Festas da Ilha, actualmente, prende-se com a desarticulação da autoridade tradicional naquela circunscrição.
A comuna está já há algum tempo sem soba e, segundo a anciã, a sua desarticulação está também a condicionar a realização do tradicional Kakulu. “Não é inadmissível ter, durante muito tempo, uma localidade sem uma autoridade tradicional.
A ilha encontra-se nestas condições. Não tem soba, não se diz nada, e todo o trabalho de que esta edilidade tivesse que fazer parte fica pendente e a situação complicase cada vez mais”, disse.
A anciã realça que a Ilha de Luanda nunca passou durante vários anos sem um regente tradicional, e, com a sua desactivação, torna-se impossível realizar a tradição, especialmente o Kakulu e outras actividades a ele associados.
A anciã salientou que o ritual do Kakulu já foi orientado por três sobas: Menezes, Napoleão e Miguelito, ambos já falecidos, com mestria de Francisco Mangodó, que também já não está entre nós.
Sublinhou que, com o passamento físico destas quatro figuras tradicionais, as actividades das “mamãs ligadas a tradição do Kakulu”, ficaram suspensas.
Questionada quanto aos efeitos resultantes do não cumprimento do Kakulu, em ambiente de Festa da Ilha, a anciã referiu que estes se reflectem com maior incidência no surgimento e expansão de calemas gigantes, na fraca captura do pescado, nos acidentes em alto mar, desaparecimentos e afogamentos.
Indagada ainda quanto à possibilidade de se vir a realizar proximamente uma Festa da Ilha, semelhante às das últimas décadas de 89 e 90, referiu que tudo é possível, desde que haja comprometimento, espírito de entrega e responsabilidade de todos quanto nela estejam envolvidos.
Direcção da Cultura e Turismo garante resgatar a mística da Festa da Ilha
Enquanto isso, o director municipal da Cultura e Turismo de Luanda, Domingos Fungo, questionado quanto aos motivos que estão na base do fracasso de um dos maiores eventos culturais da Ilha de Luanda minimizou a situação, adiantando que a instituição está a trabalhar internamente com a Administração Municipal para resgatar, no próximo ano, a mística da Festa da Ilha.
Domingos Fundo realçou que sempre trabalharam com os parceiros que os têm apoiado directa ou indirectamente nas actividades que o município tem levado a cabo, pese embora um ou outro já não os tenha dado satisfação.
O responsável garantiu que, tão logo tiverem os resultados deste aturado trabalho, passarão a informação aos órgãos de comunicação. “Estamos a trabalhar com a Administração do Distrito Urbano da Ingombota para chegarmos a um meio-termo, de modo a entendermos o que está na essência do decréscimo desta festividade”, disse.
Realçou, igualmente, que o processo está a ser estudado, de modo que se possa resgatar a antiga Festa da Ilha e saber como era a organização, uma vez que a intenção é trabalhar em parceria com as associações e as comunidades. “Estamos a fazer de tudo para alavancar e buscar esta mística festividade da Ilha.
Enquanto Administração do Município de Luanda, vamos, a partir do próximo ano, tudo fazer para que possamos então ter aquela festa costumeira ao povo da ilha”.
Questionado quanto a uma eventual auscultação às comunidades, referiu que Administração o tem feito em todas as comunidades dos sete distritos que compõem o município de Luanda.
Uma destas sessões, segundo o director, ocorreu em Julho do ano transacto, no distrito urbano da Ingombota, e reuniu moradores daquela circunscrição, em particular os munícipes da Ilha de Luanda, orientado pela sua administradora municipal.
Domingos Fungo referiu que o evento sempre teve o apoio institucional da Administração e, numa palavra de apreço aos munícipes da Ilha, garantiu que a festa vai acontecer e, enquanto Administração, darão todo o apoio no que for a sua obrigatoriedade.
Demanda
Questionado sobre a possibilidade da Ilha vir a acolher um evento de grande dimensão, semelhante ao das últimas décadas de 80 e 90, tendo em conta o surgimento de novas edificações na área, admitiu que se torna difícil avaliar a referida circunscrição, sobretudo no que à demanda se refere, uma vez que a Ilha ficou durante muito tempo sem receber o evento de tão grande dimensão.
“A Ilha cresceu muito em termos populacional e de infra-estruturas.
As festas ficaram um pouco paradas e, quando ressuscitarmos este monstro, causará uma fluidez ao evento que queremos nós pensar positivo”, disse Domingos Fungo.
O responsável afirmou igualmente que a Administração tudo fará para adaptar a Festa da Ilha a uma nova realidade acostumada ao povo da Ilha.
Ritual
Já em relação aos rituais da Ilha, defendeu que fossem realizados e levados por um soba. Mas a grande preocupação de momento reside na ausência desta autoridade.
“Esta é uma situação que também nos preocupa, porque é a partir do soba que estabelecemos o nosso elo. Não tendo a ilha um soba, fica difícil, para nós, estabelecer esta ligação quanto ao ritual”, justificou.
O director disse estarem a trabalhar com a comunidade local para que se possa ter a eleição do referido soba, de modo que as relações possam fluir normalmente.