Não sei quantos arquitetos precisamos para construir a paz, mas para a construção da arte, precisamos apenas de um pincel e um quadro vazio para que a paz seja desenhada.
Estou no mercado do quilómetro 30 e estático feito o arquiteto da independência no Primeiro de Maio, apenas o cérebro processa e os olhos vão ao encontro de todos, fotografando e pintando cada um de acordo às cores e posições.
Reparo tudo a volta, vejo o corpo magro do cobrador encolhido na porta principal do azul e branco simbolizando a sua lotação máxima, voz desafinada do lotador é, deveras, algo belo, sublime nos meus ouvidos.
Era, apesar da cacofonia do mercado, a voz que os ouvidos precisavam para radiar a arte fotográfica que olhos faziam. Lá via-se todos, aquele espaço era a verdadeira angolanidade que, de certa forma, fica sempre fora da atenção daqueles que pintam grandes obras, como se feitiço, negro, palanca ou carapinha dura fosse a única forma que caracteriza esse povo.
Cada um buscava o seu ganhapão de diversa maneira. Era lindo ver a mulher com a vida na boca e a esperança nos passos voandando de um lado para o outro sem se importar com o sol que lhe grelhava a pele, ela tinha a barriga e o amanhã dos filhos naquele gesto único e belo, sei que, pelo cansaço que o dia lhe congrega no corpo, a noite terá de se submeter enroladinha sobre a charrua que vai desflorestando-a aos poucos.
“Kwaliceça, ove, kwaliceça! Ndapandula!” eram gritos daqueles que tinham a vida na força grelhada do carro da mão. Para estes, o futuro não lhes traria esperança de um amanhã luxuoso, bastava-lhes acalmar o kunene que a vida segue.
Sentia o fumo dos pinchos, a poeira dos táxis, o volume alto do lingala dos meus (des)compatriotas e o sorriso radiante do sol, constituiam uma bela sintonia de arte, o meu povo é feliz à sua maneira, apesar daqueles que fazem de tudo para nos matar a felicidade, concluo. Estendi alguns passos, meti-me no meio daquela gente toda, activei o meu caça-palavra, meus ouvidos colhem tudo.
Ouvi uma jovem pregadora que esteve a dar os seus discursos evangélicos no mercado, atirando o seguinte: “a mulher tola nunca sentirá o membro de deus no seu interior, nunca será descodificada”.
Fiquei perplexo, não sei que “membro de deus no seu interior” e o que é ser “descodificada”. Caminhei com as palavras presas na cabeça. O dia foi morrendo nos meus passos e as palavras nasciam cada vez mais.
Como entender o membro de deus dentro da mulher, sendo ela deus entre nós? No morrer do dia, era esta a outra obra que atraía os meus olhos: o tamanho da queda de kalandula que alimentava aquela bela serra leba que se dobrava numa palanca negra bípede no seu mais belo gingar. Cada passo desenhava a dimensão do seu belo quadril.
Os olhos alongaram o tempo, percebi que dentre as belas coisas que se passavam naquele mercado, havia, dentre elas, a maior, aquela que o Adão-romano procura.
Muitos daqueles quadris vendiam pássaros nas horas de ninho, bem ali por cima das bancadas de tomates. Cada pássaro dependia da sua gaiola, feliz era aquele que encontrava uma avestruz para depenar, tinha o dia ganho e o mercado do 30 no cérebro.
Por: KHILSON KHALUNGA