As famílias angolanas estão desestruturadas. Não sou apenas eu quem o diz. Todos o dizem. E ainda que não o quiséssemos dizer, a realidade está aí para o atestar: filhos a venderem a casa dos pais à revelia, avôs a violentarem os netos, pais a sacrificarem os filhos para obterem uma promoção no serviço e mães abandonando as famílias para seguirem líderes religiosos que se autoproclamam os únicos representantes legítimos de Deus nesta terra sedenta de milagres.
É, portanto, uma realidade incontornável e que serve de justificação para tudo. Nos diversos debates que desfilam pelas nossas televisões e rádios, os painelistas concluem sempre em uníssono que a causa de todos os males que nos assolam é a profunda desestruturação familiar.
Não vou contra a corrente, mas tento ir mais longe. Pergunto-me porquê que as famílias angolanas se desestruturaram tanto ao ponto de criarem uma sociedade caótica onde predominam o egoísmo, o desrespeito, a imoralidade, a corrupção, os vícios, a violência, o a ambição desmedida, a luta sem regras pelo dinheiro e pela fama e outros tantos males.
Existem, sem dúvidas, factores que têm empurrado as famílias para longe daquilo que deveriam ser.
Uma espécie de causa das causas sobre as quais quase ninguém fala. Talvez tenha sido inadvertidamente, mas a realidade é que criámos uma sociedade hostil para as famílias.
As famílias, por cá, são como bolas numa tômbola, a serem chacoalhadas de cima para baixo, à espera de um golpe de sorte que as leve para uma condição melhor.
A correria louca das nossas cidades afasta as famílias e rouba-lhes o tempo que devia ser usado para a salutar convivência.
As enormes distâncias, o trânsito sempre engarrafado e o transporte público que mais nos deixa à espera do que nos transporta fazem com que muitos pais abandonem os lares ainda de madrugada e só regressem quando já é noite.
Não admira, por isso, que os amigos dos nossos filhos os conheçam melhor do que nós, e que os nossos filhos conheçam melhor as figuras públicas do que nós, seus próprios pais.
A legislação laboral também não ajuda quando concede apenas um dia de licença de paternidade, impedindo o pai de estar presente nos primeiros dias de vida do seu filho.
Mas a legislação vai ainda mais longe e concede apenas um dia de descanso semanal. Dos sete dias que tem a semana, pais e mães têm apenas o domingo para aliviar a mente dos seus filhos das coisas erradas que aprenderam e substituir por tudo quanto é bom e útil. Mas há quem julgue ser suficiente.
A nossa prática laboral é ainda mais tirana. Conheço muitas empresas que não têm hora de fecho. Esquecem-se, os gestores, que os seus funcionários são pais e mães que precisam de tempo para educar os seus filhos e, consequentemente, a sociedade.
No entanto, as autoridades não punem e os trabalhadores não podem reclamar, até porque, como diz o ditado “em terra de alto desemprego, quem tem trabalho, mesmo que roce a escravidão, é rei”.
No sector informal, a realidade é ainda mais drástica para os pais e encarregados de educação. Quem depende de pequenos negócios não tem horário de entrada ou de saída, nem folgas, nem feriados, nem subsídio de férias, nem décimo terceiro salário.
Que tempo têm estes pais então para bem cuidar dos seus? O lazer saudável em família é uma miragem. Não há nos nossos bairros parques ou jardins públicos, nem centros comunitários onde os pais se possam divertir com os seus filhos sem que isso lhes custe mais de metade do seu salário.
Quanto às finanças, não há quem alivie o fardo das famílias. Não há crédito familiar, nem descontos para famílias numerosas e o abono familiar que deve servir para ajudar as famílias nos encargos com os filhos é de apenas oitocentos Kwanzas por cada filho e por mês.
Não sei para o que serve tal valor num país em que uma viagem do Zango à cidade pode custar mais do mil Kwanzas.
Mas há quem julgue ser suficiente. Enfim, já nem vou falar da educação que não se dá aos pais, mas que se pede que estes dêem aos filhos, nem dos nossos musseques que não ajudam na hora de ensinar o conceito de dignidade.
Sou chefe de família e digo por minha própria experiência: a desestruturação familiar começa com uma sociedade que não é amiga das famílias, com uma sociedade que as empobrece, que as explora, que as afasta, que as desgasta e, pior, que não as educa.
Precisamos de repensar a nossa sociedade para que esta seja capaz de dar às famílias o tempo e os recursos necessários para que possam cumprir o seu papel.
Se a desestruturação familiar é a causa dos nossos problemas, dar às famílias as ferramentas para se reestruturarem será o melhor (talvez o único) meio para construirmos uma sociedade melhor.
Por: Sérgio Fernades