Dois grandes problemas acompanharam e estão a acompanhar o desenvolvimento da retórica crítica em relação à ligação entre os tribunais superiores e o poder executivo. Evidentemente, estas abordagens ganharam mais força com as sucessivas polémicas envolvendo o Tribunal de Contas e o Tribunal Supremo, no início do ano.
Os dois problemas que faço referência são, designadamente, a (i) Judicialização excessiva do assunto e a (ii) Dogmatização equivocada do princípio da separação dos poderes.
O que tem sido convencionalmente aceite como solução para o problema é, na verdade, o problema em si. Não podemos culpar os juristas pela monopolização do debate académico sobre este tema.
Parece que os especialistas de outras áreas das ciências sociais ‘autoexoneraram-se’ do papel de eternos estudiosos dos factos sociais. Ou estão a emitir as suas opiniões com fins de defender meramente interesses político-partidários.
A judicialização excessiva desta questão é um problema, porque os problemas no sistema judiciário têm sempre solução política, nunca jurídica. A solução política ataca as causas. A solução jurídica ataca os efeitos.
O Direito é, na sua essência, vontade política. Seguindo a visão de Francis Fukuyama, renomado cientista político, para toda a base evolutiva dos Estados, desde os primitivos até os Estados modernos, tudo foi possível somente porque a solução política sempre foi priorizada. Inclusive, o princípio da separação dos poderes é uma solução política.
Tal como Maquiavel nos ensinou, a solução política deve estar em conformidade com a natureza humana, nunca deve ter a intenção de transformá-la.
O segundo problema deve constituir a nossa maior preocupação em relação a esta assunto. A separação dos poderes é uma impossibilidade em si.
O que é possível é a interdependência de funcões entre os diferentes poderes e a separação do exercício das funções específicas de cada poder.
Por conseguinte, a posição do Presidente Lourenço ao recomendar à antiga Presidente do Tribunal de Contas que se demitisse foi bastante assertiva. Agiu dentro destes dois pressupostos.
Pois, Charles de Secodant, Barão de Motesquieu, quando elaborou a doutrina da separação dos poderes – fruto da abstração que fez sobre a forma como o Estado exerce poder sobre a comunidade – foi com o objectivo de estabelecer um meio optimizador de se exercer o Poder Político respeitando as liberdades políticas, sem comprometer o interesse nacional.
Portanto, os três poderes não são ilhas isoladas umas das outras, são apenas diferentes funções que o mesmo Estado exerce, que devem ser exercidas por diferentes pessoas no cumprimento de uma única agenda.
Ademais, foi o próprio Montesquieu que desenvolveu o sistema de freios e contrapesos.
Os poderes devem supervisionar uns aos outros. Este sistema é formado pela faculdade de estatuir e a faculdade de impedir. A primeira é o poder de ordenar ou corrigir o que foi ordenado por outro.
A faculdade de impedir consiste em anular uma resolução tomada por outro. Neste caso, o Poder Executivo controla outros poderes com a faculdade de impedir, ao passo que o Poder Legisltivo controla outros poderes com a faculdade de estatuir. Ao poder judiciário, Montesquieu não atribuiu nenhuma destas faculdades.
Por isso, encarar o Poder Judiciário como super exclusivo, fechado em si mesmo, por conseguinte, sem a influência de um outro para orientar ou indicar caminhos para resolver os seus problemas, é muito perigoso.
O Poder Judiciário dee acompanhar os programas e directrizes definidas pelo Poder Executivo, que é, essencialmente, um Poder Político. O Poder Judiciário não pode ter um programa paralelo ao do Poder Político.
Pode ter um subprograma que está em harmonia com o programa do poder político, nunca um alternativo ao deste.
Em qualquer país sério, o Poder Judiciário age amiúde em alinhamento com o Poder Político. Para não citar a Rússia, China, Arábia Saudita, Ruanda ou Turquia, para quem prefere as referências ocidentais, um dos grandes exemplos é os Estados Unidos da América. Está cada vez mais provado que a administração Bush-Cheney mentiu para invadir o Iraque, por tabela, cometeram crimes de guerra neste país do Médio Oriente.
Até hoje, o Iraque não consegue ser o que era antes da invasão norte-americana. Por quê é que o Poder Judiciário norte-americano não age contra George Bush e Dick Cheney? Um exemplo mais recente é o Presidente Joe Biden.
Tudo indica que cometeu crimes federais. Nos Estados Unidos, por lei, titulares de cargos federais devem devolver documentos oficiais e os classificados quando seu mandato termina.
Mas documentos confidenciais da época que Joe Biden era vice-presidente dos Estados Unidos, na Administração Obama, foram encotrandos no seu escritório particular.
Por quê que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos ou a Suprema Corte, o Senado ou Casa dos Representantes dos Estados Unidos não age contra Joe Biden? A pergunta dos dois exemplos têm o mesma resposta.
O Poder Judiciário da maior potência global e ocidental não pode agir em desarmonia com o Poder Político.
Particularinzando o caso de Joe Biden: juridicamente deve-se abrir um processo contra Biden. Politicamente representará um desastre para os Estados Unidos, mormente no actual contexto em que o mundo se encontra.
Tal como defende Reinaldo Reis: “o Estado, conceitualmente, inclusive o Estado democrático, é urna unidade de decisão.
Isto não significa que deva haver uma organizacão política monolítica, mas que mesmo quando as decisões são tomadas a partir da complexa estrutura existente, as eventuais discrepâncias devem ser relegadas a um segundo plano em nome da unidade de decisão e de comando (2013, p.164)”.
É cada vez mais evidente que o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Natanyahu, percebeu esta armadilha de empoderar excessivamente o poder judiciário. Entretanto, o método que encontrou para desfazer esta situação dividiu a sociedade israelita. Por conseguinte, o país ficou fragilizado, como resultado sofreram um ataque fulminante do Hamas.
Um país onde não há unidade de decisão entre os diferentes poderes é um país instável politicamente, economicamente estagnado e sem projecção de poder no sistema internacional.
Por esta razão, tendo em conta as ambições do progresso de Angola, temos de preservar esta qualidade existente no nosso Estado, que é a potência que o Poder Político tem no âmbito da sua actuação interna. Pois, a posição de muitos juristas angolanos representa uma tentativa de hegemonizar o Poder Judiciário em relação a outros poderes. Isto não pode acontecer.
Porque, por um lado, os titulares deste poder não são eleitos pelo povo. Por outro, é impossível fazer a aaccountability dos seus actos. Consequentemente, não há consequências a nível da opinião pública dos seus actos, como acontece com os titulares de outros poderes.
O Poder Judiciário deve continuar a exercer a sua função tradicional, que é a administração da justiça.
Entretanto, sempre que nele se verificarem problemas que podem comprometer a estabilidade, credibilidade internacional e o exercício normal do poder do Estado, deve-se amiúde criar soluções políticas para se ultrapassar os problemas.
Por: EDMUNDO GUNZA