Quão gritante não será o tamanho do nosso espanto quando nos dermos conta de que somos, no final de tudo, aquilo que tanto procuramos.
Que reside em nós as respostas para as muitas questões que todos os dias levantamos. Olho para a realidade actual das sociedades africanas, cada um procurando se libertar de uma espécie de nébula que sobre si paira, de um nevoeiro que nos obstrui a capacidade de enxergar com maior clareza, de uma espécie de labirinto em que fomos atirados, freneticamente buscando por uma chave mestra que desbloqueie a barreira que nos impede de desvendar o tão bem guardado mistério da nossa miséria.
Tal não será a nossa surpresa, quando nos dermos conta de que sempre tivemos em nossa posse esta mesma chave. Aliás, quão maior não será a nossa epifania quando nos apercebermos de que mais do que possuirmos a chave, nós mesmos somos a representação dessa chave. Esta descoberta jamais acontecerá, contanto que tenhamos a coragem de procurar assimilar quem de facto somos.
Ora, está cientificamente comprovado que a vida humana começou neste continente, daí que África seja considerada berço da humanidade. Questiono-me, entretanto, se realmente compreendemos as implicações que esta verdade carrega.
Nas comunidades africanas, os anciãos possuem um valor inestimável, por esta razão eles representam em muitos casos, em linguagem metafórica, um cajado.
Isto porque a sua existência garante sustento a comunidade em função da sabedoria acumulada e, quando morrem, é razão mais do que suficiente para profunda consternação e tristeza porquanto simboliza o advento de desestabilização no núcleo da mesma.
Daí que se diga, no caso das comunidades Ovimbundu: “ombweti yateka”, isto é, o cajado partiu.
Portanto, se concordamos que aos anciãos devem ser reconhecidas a devida importância e veemência, também deve o mundo à África, analogamente, reconhecer a sua relevância cimeira e inegável no grande esquema das coisas, na vanguarda do conhecimento, da ciência, tecnologia, filosofia, arte e da religião, porque se reconhecemos que África é o berço da humanidade, automaticamente reconhecemos que África é a anciã do mundo.
Acima de tudo, se o mundo se recusar em reconhecer tais coisas como, aliás, o vem fazendo nos últimos séculos, que ao menos compreendamos e reconheçamos nós mesmos a nossa riqueza, grandeza, sabedoria, e tenhamos a coragem de seguirmos o nosso próprio caminho, segundo os nossos princípios, códigos e filosofias.
Quando isto acontecer, teremos saído com sucesso do labirinto, teremos dissipado a nébula que nos cobre e teremos acedido à chave da verdade que desde sempre possuímos.
Para ser sincero, não me surpreende que os outros não reconheçam o nosso contributo na construção dos seus mundos, que não reconheçam que nós partilhamos com os seus patriarcas grande parte da sabedoria que os permitiu dar vida as suas civilizações. É uma realidade da vida, gratidão não se exige, por mais incômodo que seja.
O que não se concebe é a recusa de grande parte de nós em sermos nós, de acedermos de coração aberto a este rico manancial deixado pelos nossos ancestrais.
Uma infeliz verdade a nosso respeito é que estamos cheios de tabus e preconceitos a nosso próprio respeito. Tudo é motivo de suspeita, desconfiança.
Tudo é macumba, tudo é feitiço. Porém, a verdade é que o problema não é tão grave quanto aparenta. Tampouco incontornável. Somos apenas ignorantes a respeito de algumas coisas, e a ignorância extingue-se com a luz do conhecimento.
Conhecimento este a respeito de nós mesmos que não possuímos, por um lado porque não procuramos, por outro lado porque não somos convidados o suficiente para tal.
Contudo, este conhecimento, este esclarecimento, esta luz está mais acessível do que se imagina. Embora seja difícil perceber, ela reside em nós mesmos.
Esta profunda sabedoria africana pode ser condensada em uma expressão: “Ubuntu”, ou seja, eu sou porque nós somos. Isto significa que todos os esforços e planos que tiver de traçar serão feitos tendo por escopo o benefício de toda a comunidade.
Ubuntu pode ser facilmente identificado na nossa sociedade angolana, com maior expressão nas zonas suburbanas. Quando vemos um ancião na rua, dizemos: bom dia, pai; apesar de se tratar da primeira vez que estabelecemos contacto com aquela pessoa.
Quando mais novo, lembro que se estivéssemos à falta de sal em casa, pão, legume ou coisa outra, pedíamos, sem hesitar, ao vizinho e este nos concedia sem rodeios nem cerimônias porque o mesmo também vinha ao nosso encontro quando estivesse com escassez de alguma coisa.
Fazíamos isto, porque a filosofia Ubuntu está-nos no ADN e ela nos ajuda a compreender que o vizinho é a extensão da nossa família, somos uma comunidade e em função disso, eu não posso me sentir bem se o meu próximo estiver infeliz.
Por exemplo, o vizinho podia corrigir o meu filho sem receios porque tinha consciência de que o meu filho também é seu filho e na ausência do pai biológico, ele deve exercer o papel de educador porque a índole do filho do vizinho tem impacto não só em casa deste, mas também no núcleo da comunidade.
Nós percebemos estas diferenças fundamentais entre nós e outros povos, principalmente quando viajamos pra Europa. Quantas vezes não ouvimos relatos de irmãos africanos sobre a cultura da individualidade característica do povo europeu… Sobre como um vizinho é capaz de passar meses sem ver o outro, ou sequer saber os nomes uns dos outros, quanto mais pedir por empréstimo coisas uns aos outros, é simplesmente impensável!
Quando ouvimos este tipo de relatos por parte dos nossos irmãos, é sempre carregado de um tom de incompreensão, de estranheza e saudades do modo de vida caloroso e espírito comunitário próprios dos seus países africanos.
Que isto seja um indicador claro de que afinal não estamos tão “atrasados” e que não há nada de errado em sermos quem e como somos.
Por: EDUARDO PAPELO