Os “disfuncionamentos” da OMC e as ‘derivas liberais’ da UE motivaram a aceleração na criação da Zona de Livre Comércio Continental (ZLEC) em África, que visa ‘resistir às potências que a exploram’, disse ontem o antigo secretário executivo da Comissão Económica para África (CEA) das Nações Unidas (2012/16), Carlos Lopes
O economista e sociólogo guineense Carlos Lopes, contactado telefonicamente desde Lisboa pela Lusa, lembrou a partir de Genebra que a decisão do lançamento da Zona já para Março deste ano foi tomada em fins de Janeiro na 30.ª Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da União Africana (UA), realizada em Adis Abeba, e aprovada pelos 55 Estados membros da organização.
Segundo Carlos Lopes, antigo secretário executivo da Comissão Económica para África (CEA) das Nações Unidas (2012/16), os promotores tiveram em conta as limitações da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da União Europeia (UE) para criar um ‘grande mercado’ que permitirá desenvolver as trocas comerciais entre os 55 Estados membros, sendo esta uma forma de África se emancipar das antigas potências coloniais e da China, dinamizando, paralelamente, uma indústria ainda ‘balbuciante’.
Na sua última edição, a revista francesa Le Nouveau Magazine Littéraire é clara na avaliação à tomada de posição de África, considerando que, após séculos de inércia comercial, ‘os africanos inventaram uma arma comercial para resistir às potências que a exploram’. Se a decisão está já aprovada, falta, na prática, implementá-la no terreno, ressalvou Carlos Lopes, que contextualizou melhor o panorama internacional.
‘Evitemos euforias. Dizer hoje em dia que o Brexit é uma boa escolha para a Reino Unido é errado. Quanto à estratégia isolacionista de (o presidente norte-americano, Donald) Trump, é, para já, de difícil leitura. Para África, o livre comércio deve permitir, finalmente, desenvolver o comércio inter-regional, que constitui actualmente apenas 16% do volume global das trocas (comerciais)’, salientou.
Para Carlos Lopes, África, desde a criação da sua organização continental em 1963, deu prioridade às questões políticas, deixando de lado o plano económico e, apesar da existência das zonas monetárias do Franco CFA ou do Rand, as trocas comerciais dominantes ficaram nas mãos de outros continentes, com as ‘consequentes perdas de oportunidades comerciais’.
‘Para dinamizar as trocas comerciais entre africanos, teremos de harmonizar o sistema tarifário, as regras de origem ou normas sanitárias, conceber sistemas bancários compatíveis e mecanismos de investimento e, acima de tudo, repensar a logística. Uma fábrica de iogurtes no Senegal, por exemplo, poderá exportá-los para a Mauritânia, embora, hoje, ainda seja mais simples comercializar produtos vindos de outros continentes’, frisou. Por essa razão, prosseguiu, são muitos os sectores que podem beneficiar com a ZLEC, tendo também em conta a pressão da urbanização africana, que cria uma procura crescente de produtos alimentares ‘sofisticados’.
O sector agro-alimentar, em que as importações de outros continentes representam pouco mais de 70%, irá beneficiar com o levantamento das barreiras alfandegárias e dos apoios ao comércio interafricano. ‘África tem três vias para acelerar a sua industrialização.
O primeiro tem a ver com o principal motor da criação de emprego que deve acompanhar o crescimento demográfico. Tem de se aumentar a produtividade agrícola, para acabar com a perenização da pobreza. Para tal, tem de se ligar a agricultura à industrialização e isso passa pela criação de cadeias de valor regionais’, sustentou.
MAIS ECONOMIA E MENOS IDEOLOGIA
‘Dito de outra forma, África tem de ter um projecto de integração eminentemente económico e deixar um pouco de lado as proclamações ideológicas. Mas a ZLEC não pode prejudicar as identidades nacionais.
Que lições se podem tirar do fracasso, para já provisório, do impacto da ideia federalista no continente africano, nas suas culturas, religiões e modos de vida?’, questionou. Para Carlos Lopes, o ‘erro’ da Europa é o de privilegiar um modelo de integração económica neoliberal, pois, mais do que se fazer uma comunidade de cidadãos, retirouse uma parte da soberania sem compensação política.
‘O banco central (europeu), por exemplo, cuja missão é garantir a solidez do mercado financeiro, acabou a proteger os bancos privados cujo comportamento muitas vezes não esteve de acordo com a ética exigida.
O nosso projecto tem uma natureza diferente. Não há transferências de soberania, mas a afirmação de uma solidariedade económica nas nossas relações com o resto do mundo’, salientou.
Sobre os ‘disfuncionamentos’ da OMC, Carlos Lopes salientou que, apesar de ser uma das instituições mais democráticas que conhece no papel — ‘o peso da minúscula República de Palau é suposto ser igual ao da França’ -, na prática, obriga os pequenos Estados a aceitarem as regras dos grandes.
‘Enquanto a União Africana quer aplicar uma taxa de 0,2% sobre as importações não africanas para se financiar e ter completa autonomia, vozes dentro da OMC opõem-se a tal medida em nome do proteccionismo.
A ZLEC não é nem será uma «míni-OMC». Há muitas zonas de livre comércio, mas a que os africanos querem criar visa essencialmente as tarifas comuns, regras de origem harmonizadas e uma capacidade unificada de negociação com países terceiros’, concluiu.