Na madrugada de 1 de Janeiro, enquanto milhões de brasileiros celebravam o Ano Novo, a festa acabou cedo no complexo prisional de Aparecida de Goiânia: nove presos foram brutalmente assassinados, dois deles decapitados, numa rebelião que viria a marcar o tom do primeiro mês de 2018.
Este episódio foi o primeiro de muitos de um Janeiro sangrento no Brasil, com os tiroteios a multiplicarem- se nas favelas do Rio de Janeiro, o massacre de 14 pessoas numa festa na periferia de Fortaleza e um novo choque entre facções rivais que deixou mais dez mortos numa prisão pública no interior da mesma cidade, capital do Ceará. A violência sempre esteve presente no maior país da região, mas no meio da crise fiscal em muitos dos seus estados, de cujo orçamento depende a segurança pública, começam a se tornar visíveis os níveis críticos.
“O sistema de segurança está falido”, admitiu na Quarta-feira passada o ministro da Defesa, Raul Jungmann. Nesse mesmo dia, uma das principais vias de acesso ao aeroporto internacional do Rio, a Linha Amarela, teve a circulação interrompida por um confronto entre polícias e traficantes de drogas. Na longa fila de veículos parados no meio do fogo cruzado, cenas de pânico: alguns motoristas abandonaram os seus carros apavorados, enquanto que uma mulher tentava proteger com o seu corpo os dois filhos pequenos.
Corrupção policial
“Precisamos de tomar as medidas necessárias antes que seja tarde demais e que lamentemos por estarmos a repetir a trajetória de outros países”, afirmou Jungmann ao canal Globo News, citando em particular a situação do México. A questão é complexa. Há razões estruturais como a desigualdade e a corrupção sistêmica, somadas ao acesso cada vez maior a armas de grande potência por grupos dos traficantes, que tingem de sangue o país, numa guerra impiedosa pelo controlo do mercado de drogas. Tudo isso no meio de uma “lógica de guerra” contra o crime e uma Polícia que teve o pagamento dos seus salários atrasados em vários Estados, como o Rio, e que cada vez mais aparece envolvida com as facções criminosas. “A penetração do crime em todas as polícias tem de ser combatida”, enfatizou Jungmann.
Patinho feio
A Constituição de 1988, elaborada depois do fim da ditadura, também tem parte de culpa no fracasso das políticas de segurança pública. A Magna Carta praticamente entregou toda a responsabilidade aos Estado, tanto em termos orçamentários como de estratégia. “A segurança pública era o ‘patinho feio’. Estávamos a sair de uma ditadura e ninguém queria nada com a segurança pública. Por que a saúde e a educação foram atribuídas à União? Porque eram importantes, podiam dar votos. Hoje estamos a pagar esta conta”, afirmou na semana passada o ex-secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame. “Não há dúvidas de que o Brasil precisa de um novo pacto federativo, a segurança pública tem de ser um tema federativo”, afirmou à AFP Arthur Trindade, professor da Universidade de Brasília e ex-secretário de Segurança do Distrito Federal.
Além da questão orçamentária, Arthur Trindade enfatiza que a Secretaria Nacional de Segurança, subordinada ao Ministério da Justiça, emprega poucos funcionários num país com 208 milhões de habitantes. E também que não existe uma lei que estruture as polícias, nem um sistema de estatísticas confiável para planear as acções. São organizações como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública que fazem esse trabalho. No seu último relatório, a ONG cifrou em 61.619 os assassinatos cometidos no país em 2016, sete homicídios a cada hora, um recorde que reflecte tanto o aumento da letalidade policial como do assassinato dos agentes policiais, e que implica uma taxa de 29,9 homicídios para cada 100.000 habitantes, acima dos 21 calculados no México.